Tudo o que você precisa saber sobre o little black dress

Do luto ao luxo: o vestido preto de básico não tem (quase) nada.


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Foto: Cortesia | AZ Factory



O “vestido preto básico” talvez seja a mais curiosa das ironias que nascem da subjetividade da moda. De símbolo de poder, luxo e austeridade à melancolia e até mesmo sensualidade erótica, as diversas associações que essa peça recebeu durante sua existência fazem dela tudo, menos básica.

Mais do que uma simples roupa monocromática, ela é uma declaração, um pronunciamento – sejam esses discretos ou exagerados. Foi com alguns vestidos pretos no desfile de primavera-verão 2014, por exemplo, que Marc Jacobs se despediu da Louis Vuitton depois de 16 anos à frente da maison. Foi também, com a sua própria interpretação da peça que Alber Elbaz, agora nocomando de sua própria marca, a AZ Factory, retornou, em janeiro de 2021, ao cenário da moda (do qual estava afastado desde 2016, quando deixou a direção criativa da Lanvin).

Vestido preto

AZ Factory.Foto Cortesia | AZ Factory

Vestido preto da AZ Factory.

É bem verdade que o début definitivo do little black dress (LBD, como foi carinhosamente apelidado o vestidinho preto) é obra de Coco Chanel e que sua forma mais pop se materializou no modelo de Hubert de Givenchy e Edith Head para Audrey Hepburn no filme Bonequinha de Luxo, de 1961. Entretanto, as raízes do vestido preto são mais profundas na história. Longe de ser um acaso ou uma epifania, essa peça definiu políticas, escandalizou sociedades e acompanhou tragédias ao longo de sete séculos.

Buscar entender o vestido preto básico é um exercício íntimo – quase indecente – que revela a construção efêmera e gradual da simplicidade. O potencial de eterna reinvenção da moda surge na experiência dos criadores em explorar silhuetas, fendas, decotes e comprimentos, bem como nas escolhas de quem se dispõe a vivenciá-las.

As Asas do Corvo

Cristóbal Balenciaga, o espanhol que entrou para a história como o costureiro dos costureiros, é uma dessas figuras que sintetiza a ideia de renovação na moda. Na primeira metade do século 20, entre o azul de Lanvin e o rosa-choque de Schiaparelli, Balenciaga manteve-se fiel ao preto. Não por medo de arriscar, mas pela certeza de que na cor – ou na ausência dela – tinha tudo que precisava.

A aristocracia espanhola dos séculos 16 e 17 representada nos quadros de Velázquez, Coello, Zurbarán e Goya, compunham boa parte da fonte de inspirações de Balenciaga. Pesadamente vestidas de preto, essas figuras evocavam poder e riqueza. Além de custoso, esse pigmento escuro (conhecido como asa de corvo) era obtido apenas através da fervura e fermentação de troncos de árvores da América Central – na época, sob ocupação espanhola.

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Vestido Balenciaga de 1955.Foto: Getty Images

Quando Balenciaga nasceu, esses séculos de afluência hispânica já faziam parte de um passado distante. E nem mesmo as inquestionáveis ligações com a austeridade católica (fé da qual o costureiro compartilhava fervorosamente) tinham apelo para suas criações. Seu fascínio pela neutralidade do preto residia na oportunidade que a cor conferia à construção de quaisquer narrativas, fossem elas esteticamente provocadoras ou puramente estruturais. Um aficionado pelo rigor da costura, ele se aproximava mais do último caso. Para a pesquisadora e professora Maria Thereza Laudares, “o uso da cor preta por Balenciaga fazia com que o corte e a modelagem de suas criações se destacassem. Com ele, a construção das roupas falava mais alto do que as cores e estampas”.

Começar a discutir o vestido preto a partir de Cristóbal Balenciaga pode ser um equívoco cronológico, uma vez que seu ateliê em Paris abriu as portas apenas em 1937, mais de uma década depois do lançamento do LBD de Coco Chanel. No entanto, essa perspectiva contribui para o entendimento de que, ao contrário de básico, esse vestido já tão consagrado é, na verdade, a própria base.

Óleo sobre – e para – as telas

O gradual declínio da relevância estética espanhola a partir do século 18 – consequência de guerras e mudanças dinásticas – devolveu ao vestido preto seu sentido antigo: o de luto – fosse ele verdadeiro ou apenas metafórico. No Reino Unido, a rainha Vitória passou as últimas quatro décadas de sua vida fiel a essas peças, em uma interminável e dolorosa lamentação pela morte precoce de seu marido, em 1861.

Em Paris, outra mulher de preto que chamava a atenção era Virginie Gautreau, a Madame X do retrato de John Singer Sargent. Exposto em 1884, o quadro revelava pose e decote questionáveis para uma mulher da alta-sociedade parisiense, que mal entrara na animada Belle Époque e assistia de perto aos rigores vitorianos dos ingleses.

 Madame X, de John Singer Sargent

Madame X, de John Singer Sargent.Foto: Metropolitan Museum of Art

Controverso em sua época, o vestido preto de Madame X fez sucesso na Era Dourada de Hollywood, inspirando o célebre figurinista Jean Louis na criação do guarda-roupa glamourosamente sensual de Rita Hayworth, em Gilda, de 1946. Essa versão do LBD, por sua vez, seria a principal referência para Piero Gherardi vestir Anita Ekberg, no papel da ingênua e provocadora Sylvia, na icônica cena na Fontana di Trevi, no filme La Dolce Vita, de Federico Fellini, de 1963.

Dois anos antes, a estrela do cinema estadunidense Audrey Hepburn dava vida à leviana Holly Golightly, em Bonequinha de Luxo, vestindo um modelo Givenchy adaptado pela figurinista Edith Head (o original possuía uma fenda lateral que foi considerada inapropriada pelo estúdio). Comprido e sem mangas, essa peça ilustre da história do cinema faz um curioso contraponto com o vestido preto básico original, criado por Gabrielle ‘Coco’ Chanel em 1926 e responsável por despertar a obsessão contemporânea pelo item.

As muitas faces do vestido preto

Quando Chanel lançou seu LBD (em crepe da China), a cor não era uma novidade. A Grande Guerra e a Gripe Espanhola ainda eram um passado recente e o luto, uma realidade para milhões de famílias. Além disso, a necessidade de mão de obra feminina nas fábricas (enquanto os homens estavam nos conflitos armados) já havia estimulado nas mulheres a busca por cores escuras que escondessem a sujeira industrial.

A revolução proposta por Chanel foi, portanto, uma de ressignificação. Outrora associado às tristezas passadas, o vestido preto despertou os ânimos e tornou-se sinônimo de modernidade. A própria estrutura do vestido atestava o fato: a barra da saia, cinco centímetros acima do joelho, estava em sintonia com a nova mobilidade feminina. O corte reto e a cintura baixa conversavam com o recém disseminado fascínio pelas linhas puras, características do movimento Art Déco.

“A postura inquieta de Chanel, como ela mesma sempre salientou, nos revela a nova condição oferecida à mulher moderna pelo little black dress: la vitesse [a rapidez]. À frente de seu tempo, Gabrielle Chanel representa até os dias atuais o ideal da mulher independente e transgressora, que afirma a representação de sua imagem como uma figura dinâmica e em constante movimento”, comenta Laudares.

Ilustra\u00e7\u00e3o de vestido preto de Chanel.

Ilustração do vestido preto de Chanel, de 1926.Foto: Getty Images

A partir dessa atitude de Chanel, o século 20 assistiu a diversas encarnações do vestido preto básico em passarelas, grandes estreias e eventos. Até Elsa Schiaparelli, a ítalo-francesa responsável por popularizar o rosa-choque, sucumbiu ao seu poder: em 1938, junto com o artista espanhol Salvador Dalí, lançou o vestido-esqueleto, uma versão surrealista da peça, com enchimentos que evocavam os ossos do corpo humano.

Nos anos 1960, a soprano Maria Callas optou mais de uma vez por vestir um simples LBD para cantar Carmen. Yves Saint Laurent, ávido admirador de Callas, tinha o preto como sua cor favorita e, ao longo dos mais de quarenta anos de carreira, reinterpretou incontáveis vezes a peça – entre eles o vestido Belle de Jour, da coleção de alta-costura primavera 1967, que Catherine Deneuve usou no filme que dá nome à criação.

Quando assumiu a Chanel, em 1983, Karl Lagerfeld não hesitou em incluir em seu primeiro desfile de alta-costura um LBD com alças ultrafinas. De forma ainda mais desafiadora – e sem quaisquer alças – a princesa Diana vestiu, em 1994, um modelo consideravelmente mais revelador do que qualquer outro que já tivesse usado. Como, naquela mesma noite, o príncipe Charles confessou em rede nacional ter se envolvido em um caso extraconjugal, a peça ficou conhecida como o vestido vingança.

Princesa Diana com vestido preto.

Princesa Diana.Foto: Getty Images

Elizabeth Hurley com vestido Versace.

Elizabeth Hurley com vestido Versace.Foto: Getty Image

Gianni Versace elevou a sensualidade do item a novos patamares. Em 1993, vestiu a irmã, Donatella, com uma das criações da coleção de outono do ano anterior, inspirada no universo do sadomasoquismo. No ano seguinte, foi a vez da atriz Elizabeth Hurley vestir uma criação do estilista com fenda lateral adornada por enormes alfinetes dourados. O modelo ficou conhecido como THAT dress (aquele vestido).

Desde a virada do século, as possibilidades de significação do vestido preto ganham novas perspectivas ao passo que os movimentos e discussões sociais promovem novas formas de compor o guarda-roupa. Seja decotado ou conservador, curto ou comprido, fluido ou justo, o “vestido básico preto” transparece, incondicionalmente, sua atemporalidade e onipresença. Assertivo e transgressor, expressa personalidade a partir das intenções de quem o cria ou o veste, legitimando seu caráter icônico na moda.

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