53 anos depois, a Balenciaga finalmente volta à alta-costura
Sob direção criativa de Demna Gvasalia, marca volta à semana mais luxuosa da moda e abre caminhos para modernização de um setor ainda apegado às tradições do passado.
Em maio de 1968, o couturier Cristóbal Balenciaga encerrou as atividades de sua marca. Hoje, 53 anos depois, os mesmos salões onde o estilista espanhol apresentou algumas das criações mais influentes da história da moda foram reabertos – como se nada, apenas o tempo, tivesse acontecido por lá. A reforma e reinauguração do espaço foi apenas um elemento na estratégia de relançamento da linha de alta-costura da Balenciaga, hoje pertencente ao grupo Kering e com direção criativa de Demna Gvasalia.
Seria exagero dizer que era o momento mais aguardado na moda em 2021? Talvez. Ainda assim, foi, sem dúvidas, um dos principais acontecimentos da indústria neste ano. Até pela expectativa e constantes adiamentos. O anúncio sobre tal movimento foi feito em janeiro de 2020, porém, por razões óbvias, não pôde acontecer até agora. E, desculpem o linguajar, timing is a bitch. Não havia momento melhor para a reestreia.
Começando por algo bem simples e extremamente desejado por muitos: a vacina. Depois de mais de um ano com apresentações digitais, desfiles presenciais foram liberados novamente. Sem deixar a internet de lado, a apresentação foi transmitida ao vivo, e o vídeo foi um dos que melhor lidou com a importância da presença física – mesmo no online.
Antes do desfile começar, era possível ver – e ouvir – os convidados tomando seus lugares, cumprimentando os coleguinhas e fazendo conversinhas mil. Havia uma trilha sonora discreta, meio jazz, meio lounge music, que, de repente, é interrompida. Fica só o som do pipipi popopó até que a artista, modelo e musa de Demna, Eliza Douglas, invade uma das salas, de terno preto levemente oversized, silhueta meio languida, meio estruturada, uma pequena faixa branca nos punhos e uma rosa vermelha em mãos.
Do nada, o silêncio. No lugar do falatório e murmurinhos, só o barulho do caminhar e dos tecidos se movimentando sobre o corpo. Se a moda ainda não tinha seu próprio ASMR de luxo, agora tem.
Desfile com trilha sonora foi uma invenção um tanto tardia – os primeiros datam da década de 1970. Antes, eram só entradas cantadas numericamente e, por vezes, com narração sobre as peças que compunham cada look. Aqui, os números só aparecem nas fotos e a descrição veio por escrito. Ainda assim, para quem ainda não tinha catado o que significava a restauração do espaço nos moldes originais, ficou evidente o que estava acontecendo.
O olhar para o passado e sua remodelagem ou alteração para o presente é o que mantém a moda em movimento. Demna já havia trabalhado com elementos da alta-costura nas coleções de prêt-à-porter da Balenciaga. Desde seu début, era possível linkar as golas projetadas para cima das camisas e jaquetas com silhuetas criadas por Cristóbal Balenciaga, em si. O volume arredondado dos sobretudos (ou jaquetas bomber e esportivas) também se conectam aos arquivos da maison. As referências, contudo, eram filtradas por um olhar e estética bastante contemporâneos, muitas vezes trabalhados em peças comuns do cotidiano de todo mundo.
Na alta-costura, esse método de trabalho foi um pouco diferente. Em entrevista ao site The Business of Fashion, o diretor de criação conta que começou a desenhar a coleção pelos vestidos de festa. Inicialmente, era o que mais imprimia couture para ele. Esses modelos são adaptações de designs e silhuetas originais do fundador da marca. Porém, dada hora, Demna sentiu falta de sua essência, do que sempre gostou de fazer e do que lhe garantiu sucesso.
Daí, surgem os jeans (feitos manualmente com um tear vintage encontrado nos EUA, e com botões de prata), os tricôs de cashmere e as camisetas – segundo o estilista, as peças mais difíceis e demoradas desta coleção. No caso, elas são de seda e dubladas com o mesmo material que Cristóbal Balenciaga usava para conseguir as estruturas arredondadas tão característica de sua silhueta.
Desde de janeiro de 2020, quando foi anunciada a volta da marca para a alta-costura, Demna falou algumas vezes sobre seu desejo de modernizar esse segmento. Com isso, muita gente imaginou peças feitas a partir das mais avançadas tecnologias, tecidos inovadores e por aí vai. Não foi bem o que aconteceu. Na verdade, foi o completo oposto. Praticamente toda esta coleção é feita à mão, como exige as normas da Fédération de la Haute Couture et de la Mode. E isso não quer dizer que o estilista tenha negado a proposta inicial.
Jeans couture não é novidade desde 1988, mas a maneira como eles foram feitos e apresentados tem lá seu ineditismo (ainda mais considerando o casting). O mesmo vale para as camisetas. De acordo com o diretor criativo, a ideia de introduzir tais peças estava ligada ao preço delas. Altíssimo, não se iluda, porém menor do que o de um vestido inteiramente bordado que, provavelmente, só seria usado por uma consumidora não tão simbólica da clientela com quem Demna conversa há tempos. Modernizar, vale dizer, é diferente de democratizar.
Em uma temporada em que técnica e construção estão no centro das atenções, Demna Gvasalia tem lugar de fala garantido. Antes mesmo de assumir o cargo de diretor criativo da Balenciaga, em 2015, ele já dizia que seu trabalho era mais sobre roupa do que moda. É importante lembrar que essas palavras não são sinônimos. Enquanto a primeira expressa um tipo de materialidade, é o objeto em si, o produto, a segunda está mais ligada à linguagem, a uma construção imagética baseada num sem números de fatores.
Em 2014, quando lançou a Vetements, marca que comandou até 2019, Demna não estava interessado em contar histórias, mas em reescrever o que se entendia por algumas das peças mais básicas e comuns de nossos guarda-roupas: a calça jeans, o casaco de moletom, a camiseta. Um ano depois, quando foi contratado pela Balenciaga, a moda entrou para equação. Suas primeiras coleções eram quase como estudos antropológicos sobre a maneira de se vestir de determinado grupo de pessoas: turistas, executivos, políticos e até clubbers quarentenadas, ansiosas pela próxima rave.
Agora, com a alta-costura, o casamento entre esses dois lados é não só perfeito, mas também extremamente sofisticado. Na entrevista já citada, o estilista diz que não sente necessidade de provar nada a ninguém. Já seu CEO, Cédric Charbit, acredita que é, sim, necessário mostrar para o mundo que Demna pode ir muito além de um moletom e um tênis de gosto duvidoso. E isso é importante para conquistar consumidores de altíssimo poder aquisitivo, talvez um tanto carentes por uma couture um pouco fora do padrão (ou quase). Enquanto isso, seguimos ansiosos pelo que está por vir. Ah, mas isso só ano que vem. É que a alta-costura da Balenciaga não quer abrir mão do maior luxo do momento: o tempo.
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