Você precisa conhecer Aída dos Santos

Única brasileira nas Olimpíadas de Tóquio-1964, ela embarcou sem apoio, sem patrocínios e sem técnico. Agora, recebe seu Uniforme que Nunca Existiu.


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“Não sei se o número 22 dá sorte, mas foi com ele que competi no Japão”, relembra Aída dos Santos. Em 1964, durante a ditadura militar no Brasil, a ex-atleta embarcou para as Olimpíadas de Tóquio sem técnicos, sem uniforme e sem equipe. Mas o que não faltava para a única mulher na delegação brasileira daquele ano era talento e dedicação. Do outro lado do mundo, a jovem fluminense fez história e ganhou o quarto lugar no salto em altura – o melhor resultado individual de um competidor brasileiro por mais de três décadas. Agora, 57 anos depois, a Centauro se uniu a Carol Barreto e sua equipe para homenagear Aída e recontar sua vivência por meio de um uniforme feito exclusivamente para ela.

Três peças compõem O Uniforme que Nunca Existiu: uma jaqueta e calça oficiais da delegação e um collant de treino. Eles foram projetados por Carol, criadora do projeto ModAtivismo, que une moda a ativismos feministas e antirracistas, junto à sua equipe, composta por Adriele Regine, Nanci Machado, David Santos e Anderson Paz. A ex-atleta foi receber os itens na pista de atletismo do Estádio Olímpico Nilton Santos, o famoso Engenhão, no Rio de Janeiro. O momento foi eternizado em um conteúdo audiovisual pela agência TracyLocke e produzido pela Lady Bird, com direção de cena de Giorgia Prates.

”Em Tóquio, eu desfilei com um uniforme que já havia usado no campeonato ibero-americano, em 1962, na Espanha’‘, relembra. ”Mas, agora, ganhei meu uniforme novo”, anima-se. Segundo ela, foi emocionante receber as peças e seu desejo é que sua história seja exemplo e inspiração para outras pessoas. Foram produzidas apenas 20 tiragens e o valor arrecadado com as vendas será repassado para ONGs parceiras da marca.


O Uniforme Que Nunca Existiu – Aída dos Santos (Completo)

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Com a ação, a marca não pretende necessariamente reparar um problema do passado, mas sim oferecer outra forma de contá-lo. A varejista também diz acreditar no processo transformador do esporte, compreendendo-o como um meio, não um fim. ”O esporte tem esse viés e nós somos apenas um canal, um viabilizador”, explica o gerente executivo de marketing da Centauro, Gustavo Milo. ”Esse uniforme talvez não conserte a história do passado, mas é um fruto para o futuro”, completa. Ele pontua que a repercussão tem sido muito positiva e o vídeo já alcançou 14 milhões de visualizações.

Milo procurava para o projeto uma designer e pesquisadora que, assim como Aída, fosse genuína em suas vivências e narrativas. Não por acaso, chegou a Carol Barreto e, na primeira conversa, sabia ser a pessoa certa. Para ela, que é artista visual e designer, ”ocupar esse espaço para honrar a narrativa dessa mulher (Aída), em extensão às narrativas de centenas de mulheres de suas próprias terras”, foi o motivo que a fez aceitar o convite.

Em sua visão, ”o vestuário de esporte é um produto de imperativo racista, assim como qualquer produto de vestuário”. Segundo ela, que também é docente do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a opressão pode ser observada na tabela de medidas, que normalmente pressupõe corpos de mulheres brancas e magras, além de padrões estéticos, como o cabelo liso. ”O esporte é parte central de minha vida, mas só consegui comprar uma touca (de natação) numa loja de bairro, nos Estados Unidos”, diz Barreto, que hoje pratica ciclismo.

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A ex-atleta olímpica Aída dos Santos ao receber seu novo uniforme, no Engenhão.

Buscando romper esses padrões, as roupas para Aída partiram totalmente das medidas da própria ex-atleta, que se enquadra no tamanho G convencional. ”Fizemos uma modelagem ampla, com ombreiras, uma gola maximizada e um gorro enorme e maleável, que, por exemplo, veste meu cabelo”, explica sobre a projeção da jaqueta.

Nas peças, a designer buscou representar as cores da bandeira nacional com o azul escuro e o dourado. Os desenhos dos bordados fazem alusão ao local onde a Aída nasceu e cresceu, no Morro do Arroz, na periferia de Niterói. O 22 destacado na frente foi o memo usado por ela na competição e se tornou número da sorte. Ao criar, Carol diz que compreendeu Aída como ”uma super heroína e uma rainha, então não foi como desenhar uma roupa de esporte, mas sim um figurino”. Quanto às referências visuais e artísticas, ela destaca os zoot suits, modelos de ternos usados por personalidades negras do jazz americano, nas décadas de 1930 e 1940, que combatiam as dinâmicas racistas de seu contexto.

Foram realizadas apenas duas grandes conversas com a ex-atleta, para mantê-la afastada do processo de desenvolvimento e preservar sua surpresa no final. Em uma dessas, Carol aproveitou para perguntar como ela imaginava o uniforme. A resposta foi, no mínimo, sensível: ”Carol, pelo que sinto de você, sei que esse uniforme virá com amor, e se vem com amor, é o uniforme certo”, relembra a designer, que afirma ter sido transformador a experiência humana de conhecer Aída e gerir o projeto.

Dona da própria história

Ela começou em outro esporte: no vôlei. Por insistência de uma amiga, acabou trocando a modalidade pelo atletismo e também porque, diz, ”na época, negro não praticava vôlei”. Fez uma primeira aula no salto em altura e obteve sucesso, mas não era fã da prática e também não conhecia suas possibilidades. Mesmo assim, continuou. ”Praticava não porque eu gostava, mas porque eu queria estudar e diziam que se eu praticasse, e fosse uma boa atleta, ganharia uma bolsa de estudos”, relembra Aída, que depois pegou gosto pelo esporte em geral: ”esporte, para mim, é cultura”.

Depois de ganhar várias competições regionais, estaduais e nacionais, conseguiu a altura necessária para embarcar rumo às Olimpíadas de 1964, mas foi obrigada pelo Comitê Olímpico da época a repetir outras cinco vezes a sua marca – o que é totalmente incomum, já que basta uma para se classificar. Mesmo assim, foi com a cara e a coragem, mas desamparada pelo país que representava. De Tóquio, Aída diz que não tem as melhores lembranças. Foi dureza. Outra língua, sem nenhum suporte, sem técnico e sem uniforme, era vista como uma turista por outros brasileiros da delegação, que não se importavam com ela.

O jeito que a ex-atleta encontrou para treinar por lá foi observar outros competidores. ”Tinha de esperar elas treinarem e guardarem seus materiais. Aí, fazia meu treino. Se estava certo ou errado, não sei, mas pensava que tinha de fazer pelo meu país, por quem ficou no Brasil. Eu até podia me fazer de turista, mas me esforcei para poder competir. Foi difícil e sacrificante, mas valeu a pena”, diz ela, que à época tinha 27 anos. Mas porque Aída não teve nenhum amparo? Ela ainda não tem a resposta. “Desconfio que seja pelo fato de eu ser mulher e negra, e só haviam homens na delegação”, relembra.

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Aída dos Santos conquistou, em 1964, o melhor resultado individual de um competidor brasileiro por mais de três décadas.

Em meio à dura realidade, a força de Aída estava em si mesma e em seu potencial. Se os míopes duvidavam que ela era capaz, sabia muito bem o que podia realizar. ”No dia do embarque, um técnico me falou que eu iria competir na Olimpíada, mas não iria à final, mas sim apenas até as eliminatórias”, relembra. O que ele não esperava era que a competidora realizaria a melhor marca de uma mulher brasileira em Olimpíadas até Atlanta, em 1996. ”Ele me motivou. Se não acreditam, então, vamos testar.”

A ex-atleta chegou a competir na Olimpíada seguinte de 1968, no México. Naquele ano, mais três mulheres integraram a delegação brasileira. No evento, ela conquistou o vigésimo lugar, número bem abaixo de seu convencional, mas que pode ser explicado por uma lesão que ocorreu em um dos saltos. Sua marca anterior, contudo, demorou a ser ultrapassada e se manteve como o melhor resultado latino-americano por anos.

Entre campeonatos e treinos, Aída, que acredita na educação como forma de ”vencer na vida”, cursou três graduações: geografia, educação física e pedagogia. Lecionou nas duas primeiras e foi supervisora na última. O esporte ela nunca abandonou. Hoje, é atleta de vôlei master e usa seus 1,72 metros como ponteira. Teve três filhos e todos foram introduzidos em diversas atividades: ginástica, natação, sapateado… mas acabaram onde a mãe começou, no vôlei. Inclusive a filha, Valeskinha, campeã olímpica como central brasileira em Pequim, no ano de 2008.

Protagonista de sua própria história, Aída é também campeã em transformar realidades. Ela não ganhou exatamente o ouro em 1964, mas, no fim, seu legado brilha muito mais do que qualquer medalha. Por exemplo, o seu Uniforme que Nunca Existiu era para ser mais um projeto da Centauro, mas tem provocado mudanças na varejista.

Gustavo Milo explica que o projeto “fez meu time e eu abrirmos os livros de história. Agora, mais pessoas sabem sobre a origem do uniforme e o que o povo africano e negro passou em outros países e no Brasil”. Ao admitir que existe um ”teto de vidro” na empresa, ele reforça o compromisso dela em firmar os pilares de diversidade racial e inclusão. ”Não é só sobre superação, mas como a gente evolui com a sociedade. Será que mudou de 1960 para 2021? Qual é o nosso papel daqui para a frente?”, questiona.

A presença de mulheres no esporte não é recente, só ainda invisibilizada, fruto do sexismo que rege boa parte das competições. Casos de assédio e abusos, infelizmente, são reportados com frequência. Agora, soma-se a eles o fator racial. Pessoas negras no esporte ainda enfrentam o racismo estrutural, que dinamiza todas as relações sociais. Relatos do tipo não faltariam para incluir nesta matéria. Aída acredita que essa realidade discriminatória, porém, está mudando, mas ressalta ainda ver bastante chão pela frente.

Carol acredita que mudanças aconteceram nessas últimas quase seis décadas, mas todas impulsionadas por grupos e pessoas negras, que constróem e lutam por suas demandas ao mesmo tempo em que honram sua ancestralidade. Como impacto imediato do projeto, ela aponta a identificação de outras mulheres negras. E define: “estamos deixando de narrar histórias de dor e visibilizando as de sucesso. E expressar outros feitos históricos é mais importante do que reproduzir histórias de insucesso”.

Este texto foi atualizado em 29 de julho de 2021.

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