Inverno de fogo: o desfile Joan de Alexander McQueen

Conheça a história de uma das coleções mais lendárias do estilista inglês.


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Alexander McQueen costumava dizer: “Se quer me conhecer, olhe para o meu trabalho”. Nos verdadeiros espetáculos que organizou entre os anos 1990 e sua morte, em 2010, o estilista inglês se preocupou em imprimir seus sentimentos mais íntimos – o que, naturalmente, colaborou para fazer de suas coleções algumas das mais memoráveis na história recente da moda. Não foram raras as vezes em que essas apresentações, intensas e ocasionalmente sombrias, provocaram desconforto no público. Suas referências eram cruas, inconfundíveis e, mesmo no ápice da teatralidade, jamais pendiam para o abstrato.

“Ele [McQueen] era muito prático, físico. Prestava muita atenção aos detalhes e fazia questão de que as roupas vestissem corretamente”, diz o fotógrafo Robert Fairer, em entrevista à ELLE Brasil. Desde 2015, ele publica, ao lado da esposa, Vanessa, livros com as imagens que registrou em backstages e passarelas das principais semanas de moda do mundo. Em março de 1998, ele estava nos bastidores de um dos desfiles mais históricos do estilista britânico: o inverno 1998, batizado de Joan, em homenagem à Joana d’Arc.

Alexander McQueen e Sarah Harmarnee ajustam look de metal em modelo.

Alexander McQueen e Sarah Harmarnee.

“Havia muita energia criativa, ninguém estava à toa. As roupas chegavam e as costureiras continuavam trabalhando, duas ou três horas antes do show começar”, relembra. Trabalhando sob olhar afiado de Katy England, stylist e braço-direito de McQueen, Guido Palau e Mira Chai Hyde arrumavam os penteados das modelos, enquanto Val Garland supervisionava a maquiagem. A poucos metros, Lee (primeiro nome do estilista) e a designer Sarah Harmarnee faziam os últimos ajustes na armadura de metal que ela havia criado para o desfile.

“Quando ele me pediu para fazer a armadura, entrei direto na personagem”, recorda Sarah, que trabalhou com McQueen pela primeira vez na temporada de verão 1997, durante sua estreia no comando da Givenchy. “Joana d’Arc era uma figura que me atraía, porque sempre me interessei por mulheres guerreiras”, continua ela. “Não enxergo as armaduras como um símbolo de agressividade, mas de proteção. Sempre fui obcecada por elas, suas construções e formas esculturais. Cada parte tem seu propósito.”

A relação íntima de Sarah com as suas criações dialoga diretamente com o momento que McQueen estava vivendo em sua própria produção. Recém introduzido ao cenário da alta-costura parisiense, substituindo John Galliano na direção criativa da Givenchy, Lee entrava em um processo de descoberta e aprimoramento.

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É o que observa John Matheson, arquivista, especialista no trabalho de Alexander McQueen e responsável pelo perfil @McQueen_Vault no Instagram. “Os looks em Joan são interessantes, porque carregam a experiência, as técnicas e o refinamento que ele estava começando a adquirir nos ateliês de alta-costura. Antes, havia uma certa crueza e ingenuidade nas coleções.”

Apesar de ter iniciado sua carreira como aprendiz em Savile Row, celebrada rua londrina que reúne algumas melhores casas de alfaiataria da Europa, Lee revisava constantemente suas técnicas. “Muitos cortes que percebemos em Joan são remanescentes da coleção de inverno 1996, Dante, em que ele brincou com jaquetas medievais com brocados. Esse é só um exemplo dos experimentos que ele fazia, sempre se adaptando e revisitando.”

Em Joan, construção, corte e costura foram tão relevantes quanto a narrativa da apresentação, no galpão de Gatliff Road, uma antiga estação de reciclagem no bairro do Chelsea. No teto, luminárias penduradas balançavam e oscilavam. “Era uma passarela quase basáltica, vulcânica, com fundo vermelho e preto. Os panos escuros abriam e você tinha vislumbres de vermelho, por onde as modelos saíam. Elas atravessavam as cortinas como se estivessem nascendo. Foi chocante para algumas pessoas”, lembra Robert Fairer, que deixou os bastidores para fotografar o desfile.

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Oitenta e dois looks cruzaram a passarela. Alguns, em cota de malha prateada, eram referências diretas às armaduras medievais de Joana d’Arc. Outras, em tartan escocês, homenageavam a rainha Maria da Escócia, igualmente perseguida e executada. Matheson explica que o tema da perseguição tem um enorme papel na narrativa do artista, que tinha origens humildes na classe trabalhadora da Inglaterra: “Ele defendia aqueles que não tinham seu potencial reconhecido ou que eram tratados de maneira injusta”.

Outros destaques na coleção foram as peças com diferentes tipos de couro texturizado, bordados manuais e lãs refinadas (indiscutivelmente produtos de suas experimentações em Paris). A renda vermelha, por exemplo, foi o material utilizado em um vestido que, anos depois, seria usado por Lady Gaga no VMA de 2009.

Mas um dos principais pontos do desfile é a androginia. Na beleza, algumas modelos tinham suas cabeças parcialmente carecas, de novo, mais uma referência à musa da coleção. Na moda, boa parte do look era pauta por linhas retas de alfaiataria, incluindo paletós com ombros estruturados, uma peça recorrente na obra de McQueen. Sarah Harmarnee acrescenta: “Não acho que foi uma escolha consciente, não pensamos em brincar com a androginia. Era sobre liberdade. As regras existiam para serem quebradas”.

Irreverências e provocações como essa definiram a apresentação, que também flertou com uma forma de sensualidade, mais agressiva e sombia, combinando lentes de contato vermelhas com transparências, fendas, decotes e comprimentos míni. No final, uma única modelo, vestida com renda vermelha e com o rosto coberto, foi cercada por um anel de fogo. Em um ato performático e teatral, encenou estar sendo consumida pelas chamas, evocando a execução e o martírio de Joana d’Arc.

Alexander McQueen, Katy England e um buquê de flores atravessaram a passarela, encerrando o evento. Os aplausos da plateia e das modelos aliviaram o humor sombrio da coleção. Joan, na verdade, oferece mais do que dor e violência. Moderna e subversiva, combina técnica, narrativa e emoção. Um arranjo que apenas a mente criativa de McQueen poderia orquestrar.

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