As principais tendências e desfiles da semana de moda masculina de Milão
Com muita alfaiataria fluida, pele à mostra, florais e um toque de alta-costura, as apresentações para o verão 2024 criam novas narrativas para discussões e ideias sempre em pauta.
Os desfiles de verão 2024 da semana de moda masculina de Milão terminaram na segunda-feira (19.06), reforçando – ou parafraseando – algumas ideias em discussão há algum tempo. Tipo a desconstrução da imagem convencional do homem.
Vem disso as principais tendências da temporada: ternos leves e fluídos, camisas bem soltinhas – de preferência de seda –, bordados florais, rendas, transparências e microcomprimentos, principalmente em shorts e bermudas de alfaiataria.
Tudo bem que é uma construção chumbada tão fortemente que só para mexer em alguns tijolos é necessário um esforço tremendo. Ainda assim, a demolição parece um tanto estagnada.
Valentino e as emoções à flor de pele
Tudo isso ficou evidente já no primeiro desfile da semana de moda masculina de Milão: o da Valentino. Fazia alguns anos que a marca não desfilava na cidade. E também fazia tempo que não rolava uma apresentação só masculina.
Valentino, verão 2024. Foto: Getty images
O retorno em dose dupla aconteceu no pátio central da La Statale, uma universidade pública milanesa, para a qual a casa romana fará uma considerável doação para financiar bolsas de estudos. A escolha da locação não foi à toa, tem a ver com a noção de formação de identidade e intelecto de jovens que podem perpetuar o presente ou transformá-lo por completo.
O paralelo quem fez foi o diretor de criação Pierpaolo Piccioli a jornalistas após a apresentação. “É uma forma de iniciar um diálogo contínuo sobre o que faz um homem hoje”, nas palavras do próprio. Ele disse ainda que, por muitos anos, a masculinidade esteve conectada a ideias de força e poder. Para evoluir, segundo o estilista, é preciso abraçar a sensibilidade e a vulnerabilidade.
Valentino, verão 2024. Foto: Getty images
Daí a aparência juvenil do casting, tipo bons meninos universitários com seus blazers, camisas com gravatas, bermudas de alfaiataria bem curta, sapatos e meias três quartos. As proporções generosas, com formas amplas e caimento afastado do corpo reforçam a sensação de fragilidade e ingenuidade. Os tecidos finos, as blusas de seda com laços soltos na gola, as transparências, a pele à mostra e as combinações de cores têm o mesmo efeito. Some aí detalhes e decorações com pegadas e delicadezas de roupas de alta-costura, segmento até hoje restrito à moda feminina.
A abordagem couture não é uma novidade no trabalho de Pierpaolo para o masculino da Valentino. O romantismo tampouco é assunto inédito nas coleções assinadas por ele. Mas o assunto está quente, né?
E tem os florais…
As flores são as principais decorações do verão 2024 da Valentino. O motivo, muito usado na história da marca e frequentemente resgatado pelo estilista, é mais um artifício para falar da sensibilidade que guia a coleção. E sim, a personagem Miranda Priestly, do livro e filme O diabo veste Prada, já dizia que florais na primavera não são nada revolucionários. No entanto, eles aparecem de maneiras inesperadas nos desfiles masculinos de Milão.
Foram poucas as marcas que optaram pela representação botânica em estampas – ou apenas em estampas, como na Prada. Lá, os desenhos orgânicos que decoram algumas camisas são acompanhados de franjas impressas como a mesma imagem para dar profundidade e movimento ao print. Em outros looks, porém, o desabrochar é trabalhado em dobraduras bordadas às peças ou como recortes e aplicações no próprio tecido.
São essas últimas interpretações, mais discretas e monocromáticas, que deram as caras em outras coleções, como na da Valentino, Dolce & Gabbana e Emporio Armani.
Sensibilidade couture
Os bordados florais são a mais recente interpretação de uma tendência que já vem rolando nas coleções masculinas há algumas temporadas. Para tornar os produtos exclusivos e luxuosos, algumas marcas começaram a empregar técnicas de alta-costura em suas propostas de prêt-à-porter para homens. Os melhores exemplos estão a Dior Men e a Saint Laurent. Pierpaolo Piccioli, da Valentino, é outro forte expoente da proposta.
Na semana de moda masculina de Milão, outros nomes entraram no jogo. A Dolce & Gabbana abordou o tema com uma versão sensual e romântica de sua expertise com underwear e alfaiataria. Na Emporio Armani, transparências, rendas e bordados sobre bases escuras ou acetinadas trouxeram uma outra camada para a nudez masculina nas passarelas.
Dolce & Gabbana e a nudez não objetificada
Não é errado lembrar da Dolce & Gabbana como aquela marca suprsexy, de vestidos rendados bem justinhos, decotes generosos e muita lingerie. No masculino é igual: muitos corpos sarados, cuecas e sungas diminutas e uma alfaiataria precisa moldada para exibir e ressaltar o que está por baixo. Tudo verdade, mas está na hora mudar essa percepção.
Desde a temporada retrasada, a de verão 2023, Domenico Dolce e Stefano Gabbana estão mergulhando nos arquivos da casa que fundaram, com especial dedicação às coleções dos anos 1990 e 2000. Naquela estação, a dupla comentou sobre a saturação de imagens sem sentido e, em consequência, a necessidade de voltar à essência de quem são e do que fazem. Discurso, vale dizer, repetido por um tanto de outras marcas desde que a moda se diz cansada dos excessos que ela mesma alimentou e devorou simultaneamente.
Dolce & Gabbana, verão 2024. Foto: Divulgação
Para o verão 2024, o mote de Domenico e Stefano é olhar para o passado, porém com resultado menos apegado ao passado. Eles continuam cortando a alfaiataria impecavelmente, mas se aventuram em modelagens ousadas, como os tops que parecem um híbrido de colete e blazer – com as mangas e o forro substituídos por painéis de organza transparente. Rolou também camisas oversized com ombros caídos e cavas tão baixas que quase batem na cintura, dando efeito de uma manga presunto.
Dolce & Gabbana, verão 2024. Foto: Divulgação
Mais interessante é como a dupla expõe o corpo masculino. Se antes a nudez aparecia de forma objetificada, quase pornográfica, agora não é bem assim. A pele 100% à mostra é rara. Quase sempre ela está coberta por uma fina camada de tecido translúcido, muitas vezes decorado com bordados ou ajustado com faixas de drapeados acetinados. Até o underwear comunica mais conforto e intimidade do que sexo.
Microshorts
E já que estamos falando de corpo, não tem como ignorar a onipresença dos shorts e bermudas supercurtos nos desfiles masculinos de verão 2024 em Milão. Você deve ter visto, lá no começo, o ator Jacob Elordi na entrada da apresentação da Valentino. Depois, na passarela só dava comprimentos míni. Na Prada, JW Anderson, DSquared2 e Charles Jeffrey Loverboy, eram poucas as barras abaixo do meio da coxa.
Prada e a arquitetura das roupas
A gosma verde caindo do teto de metal. Você deve ter lido e assistido vários conteúdos sobre isso, a tal metáfora perfeita para a arquitetura fluida do verão 2024 masculino da Prada. O que isso quer dizer? Nem isso nem aquilo, mas também um pouco disso e daquilo. Confuso? Provavelmente é intencional. Há sete temporadas (quatro anos), os codiretores de criação Miuccia Prada e Raf Simons falam sobre uniformes, redução e busca pela essência funcional das roupas.
Prada, verão 2024. Foto: Getty Images
A proposta da vez é deixar partes desse uniforme mais leves e confortáveis para a livre movimentação. O item principal é a camisa. Seu tecido de algodão é a base de quase todas as peças da coleção. Os blazers de ombros marcados (as ombreiras são removíveis) são feitos sem pences internas, enchimentos e forros. Basicamente uma camisa com lapela de paletó.
As mangas são superlongas e as cinturas, bem marcadas por bermudas de alfaiataria. É um mix da silhueta forte dos anos 1940, com resquícios militares, com a imagem de uma criança vestindo roupas de adulto. De novo, é a ideia de ingenuidade e vulnerabilidade.
Prada, verão 2024. Foto: Getty Images
É uma coleção cheia de possíveis hits. Apesar de não tão forte como outras da dupla, traz ideias interessantes, embora repetidas. Diferentemente de outras marcas, o pragmatismo na dissecção de uma única peça – a camisa – permite experimentações mais palatáveis e interessantes do que elucubrações contextualmente pertinentes, mas praticamente ineficazes.
Mas se queremos mudanças, por que continuamos vivendo de repetições e nostalgias?
Uma das inspirações do verão 2024 da Valentino é o livro Vida pequena, de Hanya Yanagihara. Trechos do romance aparecem estampados em bolsas, camisas e casacos. Um deles é o seguinte: “We are so old, we have become young again” (somos tão velhos, que nos tornamos jovens de novo). A citação, compartilhada aos milhares nas redes sociais, diz muito sobre o estado das coisas e da moda principalmente.
Valentino, verão 2024. Foto: Getty Images
Os microshorts, por exemplo: são tendência forte nesta temporada, assim como foram em estações anteriores. O mesmo para a alfaiataria desconstruída, o romantismo e a sensualidade velada. O que muda agora? Uns dizem que é o contexto, outros que é o nome e tem aqueles que acreditam ser questões de linguagem.
Se você sente que já viu um pouco disso antes, não se preocupe. Deve ter visto mesmo. É que chegamos a tal ponto de aceleração na (re)produção e consumo de imagens e informações, que tudo já nasce datado, é a obsolescência imediata. Vide proliferação de “cores” nas redes sociais, que, no fundo, é só um jeito diferente de se referir a algo já existente. É tanta coisa que perdemos parâmetros, referências e qualquer indício ou possibilidade de novidade real-oficial.
JW Anderson, verão 2024. Foto: Getty Images
Um possível reflexo desse B.O é o movimento de olhar para dentro, recuperar memórias afetivas, lembranças da infância e muita nostalgia. Bem como fez a JW Anderson no verão 2024 – e em coleções anteriores. “São aqueles detalhes ou objetos que você viu tanto que fazem parte da sua vida”, disse Jonathan Anderson a jornalistas após a apresentação. O desfile recupera elementos que fizeram parte de sua infância para transformá-los em roupas apenas levemente familiares.
Aliás, faz um tempo que rola uma obsessão infantil na moda masculina. De um lado, tem a história da visão de mundo livre das opressões e obrigações da vida adulta. Do outro, há uma negação de crescimento, amadurecimento e – a palavra mais temida – envelhecimento.
Pesquisas recentes apontam que os jovens estão fazendo cada vez menos sexo. As causa são várias: superexposição à pornografia, apps de pegação e namoro, redes sociais e por aí vai. No entanto, tem uma outra explicação pouco discutida e muito interessante. Ela é baseada em escritos do começo do século 20 da psicanalista Sabina Spielrein. Grosseiramente resumido, seu ponto é que a reprodução sexual é uma forma de aniquilação/morte do ser.
JW Anderson, verão 2024. Foto: Getty Images
Será que a atual recusa de sexo não é uma resistência à vida adulta? E se for, não seria uma maneira de se manter sempre jovem e, por consequência, insubstituível por uma geração mais nova? Agora imagine que você é uma marca centenária, que há anos lucra com a venda de um mesmo produto ou um meso tipo de produto. Você ia gostar da novinha que chega roubando toda a atenção e clientes? Pois é.
Moda é sobre novidade. Ou diz que é. Pode até ser que era. Sai o velho, entra o novo. E o novo, pelo menos em tese, não tem precedente, não tem base de comparação. É novo e ponto. Por isso, causa desconforto, estranhamento, repulsa. Demora um tantinho para nos acostumarmos com o desconhecido.
Só que em tempos de lucro acima de tudo e crescimento antes de todos, o imprevisível não é bem-vindo. E nem bem-quisto por quem vive com medo de ser substituído, passado para trás, ser considerado antigo. A solução? Reescrever o passado de maneira atual. Criar uma narrativa para validar o antigo como novo. Elaborar um storytelling para falar do óbvio como uma grande revelação.
Prada, verão 2024. Foto: Getty Images
É só colocar o prefixo neo em um termo clássico ou o sufixo core em algum nome esquisito.E vamos de revivals dos anos 1990, anos 2000, de recuperação de essências, histórias e limpezas visuais. Tava demais. Era muito meme, viralização. Tava na hora de voltar ao que realmente importa, tipo reset para recomeçar do “zero” mais uma vez.
O movimento não é de todo ruim. É necessário, aguça a criatividade, cria desejo. Em alguns casos, resulta em propostas interessantes, a exemplo da Prada. Acontece que nem sempre o discurso inovador é consistente. É difícil levar a sério as falas de Miuccia Prada e Raf Simons sobre a relação libertadora entre roupa e corpo quando a maioria dos modelos são altos, magros e aparentemente recém-saídos da puberdade.
Valentino, verão 2024. Foto: Getty Images
A marca não é a única nesse balaio. Se a representatividade já é sofrida nas semanas de moda femininas, nas masculinas é pior ainda. Em Milão, os castings tiveram praticamente nenhuma diversidade de corpos e idades. Na Valentino, teve um único modelo mais velho. E é no mínimo curioso que uma coleção que se propõe desassociar a força da imagem do homem tenha feito isso com o instrumento número um dessa representação de poder: o terno. Ok, coberto de flores, em cores improváveis e com microshorts. Mesmo assim, são ternos.
Na Dolce & Gabbana, os tons neutros, as delicadezas e aparente intimidade das peças sugerem uma reconexão com o próprio corpo e ser – e da marca com o que ela faz de melhor. Em conversa com a imprensa, Domenico Dolce e Stefano Gabbana bateram na tecla da diferença entre moda e estilo. O segundo, de acordo com a dupla, é sobre ter identidade forte e uma fundação firme – à prova das nuances do tempo.
E o mais simbólico dessas histórias malucas de repetições narradas como novidade, é o convite para o desfile: um cartão de crédito de metal. “O cartão de crédito é um indicador, um símbolo de identidade. Você é o único dono, é sobre você ser quem você é”, disse Stefano Gabbana.
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