Casa de Criadores sem filtro: Martielo Toledo, Projeto Mottainai, Diego Fávaro, Guma Joana e Studio Ellias Kaleb

O que rolou dentro e fora das passarelas no primeiro dia da semana de moda.


Entrada final do desfile da Projeto Mottainai na Casa de Criadores.
Projeto Mottainai. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite



A Casa de Criadores não é para iniciantes. Desculpem o paradoxo. O evento, que nasceu, cresceu e chegou aos 25 anos com o título de principal lançador e incubador de talentos da moda nacional, demanda um olhar um pouco diferente – mais um tanto de boa vontade, sejamos francos. Tipo quebra de paradigma, sabe como?

A 51ª edição da fashion week (carinhosamente apelidada por esta redação como edição de natal) começou na segunda-feira, 05.12, pós-4×1 do Brasil contra a Coreia do Sul, debaixo de chuva, com muita umidade e calor. Assim como na temporada anterior, o evento aconteceu próximo à Praça da Sé, no Centro de São Paulo, mas agora com mais espaço e estrutura nos camarins e nos salões de entrada.

O primeiro desfile estava marcado para às 19h, mas a primeira modelo só pisou na passarela depois das 20h. Tudo bem, atrasos acontecem, ainda mais em dia de jogo de Copa do Mundo, com a cidade em absoluto caos de fim de ano. André Hidalgo, criador e diretor da porra toda (perdão o linguajar, mas é sem filtro), até chamou a repórter Giuliana Mesquita na chincha para explicar que a demora era por conta da partida de futebol e que não se repetirá nos próximos dias. A gente acredita – e espera, do fundo dos nossos corações. 

Modelo de trench coat, camiseta preta com estampa vermelha e saia bege pregueada no desfile de Martielo Toledo, na Casa de Ciraodres.

Martielo Toledo. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite.

Quem abre os trabalhos é quem abriu os trabalhos em 1997, na primeira edição da Casa de Criadores: Martielo Toledo. Foi a sua marca homônima a primeira a desfilar no lançamento da semana de moda. A coleção é uma mistura do que foi apresentado 25 anos atrás, atualizações de peças daquela época e algumas outras novidades. Há jaquetas de couro com aparência desgastada, macacões utilitários, coletes oversized, camisetas com rostos pixelados, tipo xerox, e moletons estampados que, de tão atemporais, poderiam estar em qualquer edição do evento. 

Modelo com blusa de tricô franzido e calça jeans no desfile da Projeto Mottainai, na Casa de Criadores.

Projeto Mottainai. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite.

Outro destaque da noite é a estreia do Projeto Mottainai, de Pablo Monaquezi. Com blazers cropped e minissaias estruturadas, a ideia é pegar peças vintages ou usadas, quase sempre de silhueta longa, e transformá-las em conjuntinhos usados com camisetas estampadas com silk ou pintadas à mão. E de preferência com aquela cara de fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, meio Helmut Newton, meio Margiela, mais um lookinho Miu Miu revistado e sucesso garantido nas pistas de techno, como atestaram os aplausos das clubbers presentes. 

O casting, com alguns nomes bem conhecidos na indústria, a boa oferta de produtos e a atenção à construção das peças e às tendências do momento mostram que há bastante comprometimento ou pelo menos muita vontade em fazer negócio dar certo. E tem dado. O bom relacionamento e vida social agitada do fundador, sem dúvidas, ajuda muito. 

Só falta achar algo que faça com que aquelas roupas, que muita gente já deve estar querendo comprar, se diferenciem do que existe por aí. Em outras palavras, que encontrem uma identidade. E isso, sabemos bem, leva tempo. A marca ainda está na sua infância e passou por um divórcio complicado de seus pais (disso não podemos falar).

Modelo com saia e top jeans no desfile de Diego Fávaro, na Casa de Criadores.

Diego Fávaro. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite.

Depois de três anos longe das passarelas, Diego Fávaro volta à Casa de Criadores com uma coleção 100% feminina. Não que gênero seja um conceito rígido na moda, mas foi com roupas masculinas que o estilista fez sucesso e carreira – mesmo tendo conquistado sua vaga no evento com roupas para elas. Agora, a mulher pensada por Diego passeia entre um estilo mais patricinha e um mais mandraka, com calcinhas asa delta brotando de calças de cintura baixa e vestidos bem justos.

É tudo muito desejável, muito agora. Porém, quando colocamos em perspectiva a coleção desfilada nesta segunda-feira, 05.12, e todo o repertório do estilista, fica difícil achar um denominador comum. Parece que a linha feminina e masculina são, na verdade, marcas diferentes.

Modelo com top dourado tomara que caia e jeans de cintura baixa e boca de sino no desfile de Guma Joana, na Casa de Criadores.

Guma Joana. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite.

Na ala mais performática, temos Guma Joana e Studio Ellias Kaleb, que usam o recurso do catwalk em câmera lenta para trazer todo um drama às apresentações com castings majoritariamente formados por pessoas trans. E é aí que eu digo que a Casa de Criadores não é para iniciantes.

Tem a prova de resistência de acompanhar um desfile em que cada modelo leva quase cinco minutos para completar todo o trajeto da passarela, algumas delas com instrumentos de sopro estridentes e desafinados, na Ellias Kaleb. Tudo isso em meio ao derretimento e sudorese descontrolada, que fez com que alguns dos convidados (tipo estes que vos escrevem) parecesse muito mais abominável do que as criaturas das profundezas dos oceanos que servem de referência para a analogia de Guma Joana de como pessoas trans são vistas e tratadas por grande parte da sociedade.

Tem também a prova de resistência de fazer um desfile como você bem entende, sem se preocupar com a aceitação e compreensão da plateia ou do mercado. Na CdC, a usabilidade das roupas nem sempre é colocada em primeiro plano. Alguns conceitos tradicionais são deixados de lado em favor e em busca de outras expressões necessárias e não menos válidas por suas limitações técnicas. 

Modelo com vestido jeans e babados verdes na barra no desfile da Studio Ellias Kaleb.

Studio Ellias Kaleb. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite.

No entanto, são pontos que não podem ser ignorados a longo prazo. E isso vale para quem faz e para empresas e instituições que desejam incentivar, apoiar e investir na renovação do setor. As demandas de mercado não são tão flexíveis assim e, para sobrevivência de todos, são necessários alguns ajustes – o que nem sempre se consegue sozinho. Principalmente quando se fala de clientelas e populações marginalizadas e estigmatizadas há décadas.

Criticar a roupa de uma pessoa transsexual, de uma travesti por má qualidade ou algum conceito retrógrado de moralidade e pudor é fácil. Difícil é dar oportunidade para essas profissionais crescerem, empreenderem e terem as mesmas condições daqueles que conseguem de quase um tudo com mais facilidade pela adequação às construções sistêmicas da sociedade. Ou muito menos até, como um mínimo esforço para entender porque algumas coisas são como são e não mudam.

A Casa de Criadores foi e é uma importante vitrine para criadores em ascensão. Empresas apoiadoras, patrocinadoras ou só de olho no evento já chamaram muitos estilistas selecionados por André Hidalgo para uma série de projetos comerciais. Ainda assim, são poucos os negros e transexuais escolhidos. A justificativa apoiada na baixa qualidade do trabalho não cola mais. Afinal, quando essas pessoas tiveram a oportunidade e o treinamento para algum tipo de melhora?

Pois é… Mas quem tem amigo tem tudo. É com o apoio e incentivo daqueles mais próximos ou nem tanto que muita marca e estilista arranjam forças, disposição, fundos e coragem para fazer um desfile na Casa de Criadores. A abertura e sensibilidade de André Hidalgo contam muito também. A questão é até onde e quando isso será sustentável, em todos os sentidos da palavra, se nada mudar.

Para terminar, neste primeiro dia faltou alguma coisa. Não sei se é o cansaço de fim de ano, os quatro outros que passamos sob o governo Bolsonaro, ou sei lá o que, mas faltou energia na passarela. A semana de moda sempre se destacou por apresentações carregadas de emoções de todos os tipos. Hoje, era só calor. As performances em câmera lenta, as pretensões artísticas e conceituais tiraram o brilho de desfiles que, em temporadas passadas, colocavam no chinelo qualquer um, independentemente do poder de investimento e do renome. Timing, né? A bitch. Talvez sim, talvez não. Veremos. Tem mais cinco dias pela frente.

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