Como a pandemia e a vacinação estão afetando o varejo de moda

Executivos e especialistas comentam as mudanças e avanços na maneira como se vende e consome roupas, acessórios e experiências.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Em novembro de 2019, o descobrimento de um novo vírus chamou a atenção das autoridades. Em março do ano seguinte, a pandemia foi declarada pela Organização Mundial da Saúde. No ocidente, a Covid-19 estourou durante as semanas de moda de Milão e Paris. Alguns desfiles foram cancelados e jornalistas e compradores retornaram a suas casas antes do previsto.

Nas semanas seguintes, lockdowns e quarentenas foram decretados em diversos países. Com lojas fechadas, as vendas despencaram. Com medo de um vírus sobre o qual pouco se sabia, consumidores viram seus interesses e hábitos de consumo virarem de cabeça para baixo. Aos poucos, adaptações foram acontecendo, principalmente no fronte digital.

Em muitos sentidos, a pandemia foi um acelerador para uma série de tendências e movimentos de mercado: a moda foi forçada a tomar posições e fazer adaptações que normalmente se desenrolariam ao longo de anos.

Com as restrições físicas, o varejo de moda se viu obrigado a migrar para o digital. No Brasil, segundo dados do Euromonitor, menos de 5% das compras eram feitas via e-commerce antes da pandemia. Em 2021, esse número cresceu para 11%.

Marcello Bastos, diretor do grupo Soma e sócio-fundador da Farm, conta que o impacto só não foi maior, porque a empresa já estava razoavelmente avançada no processo de digitalização. “Vendemos 80% do que vendíamos só através do digital”, diz o executivo.

“O consumidor pode pesquisar no digital, visitar e experimentar nas lojas físicas e optar por comprar na flagship e receber em sua casa direto da loja.” Marcello Bastos

Segundo ele, a Farm teve um aumento de 117,5% (de 2019 a 2021) na base de clientes geral, com a maioria vindos do online (mais de 60% da base ativa de clientes compra no digital). O papel do e-commerce no share de mercado das marcas do grupo Soma também aumentou, para a Farm as vendas pela internet subiram de 25% para 55% das vendas totais.

Segundo pesquisa da consultoria estadunidense McKinsey&Company, em todas as regiões do mundo houve um aumento do consumo online de até 30%. Outro dado afirma que as compras digitais representam 23% das vendas totais do mercado de luxo. A estimativa é que até 2025 esse valor chegue a 30%.

Em entrevista por e-mail, o porta-voz da ASOS, multimarca britânica e gigante do varejo digital, aponta que “a pandemia trouxe grandes mudanças no comportamento do consumidor, que continuarão a influenciar o mercado por muitos anos”.

A Farfetch, outro grande player do varejo de luxo online, registrou um aumento de 2 milhões de novos consumidores só em 2020. “Também notamos um novo perfil de consumidor que estava acostumado a comprar em lojas físicas e que, com a pandemia, está explorando o e-commerce”, diz Gabriela Matiuzzo, diretora de marketing da empresa para a América Latina.

“Eles estão mais interessados em obter informações sobre as características e detalhes da peça que estão comprando. Observamos um aumento de 54% na demanda local de clientes que entraram em contato com a Farfetch para solicitar informações sobre os produtos”, continua ela.

E aí veio a vacina…

Com o avanço das campanhas de vacinação em determinadas partes do mundo, números de novos casos, hospitalizações e óbitos caíram consideravelmente. A melhora no cenário pandêmico permitiu que algumas restrições fossem suspensas e, com isso, parte do comércio pode correr atrás do tempo – e dinheiro – perdido.

Apesar de ter registrado um de seus piores trimestres em 2020, com retração de 23% mundialmente (dados da consultoria Bain&Co.), o mercado de luxo experienciou uma recuperação estrondosa. Nos relatórios referente ao primeiro trimestre de 2021, o Grupo LVMH (dono de marcas como Louis Vuitton, Dior, Givenchy e Fendi) registrou um crescimento de 30% em relação ao mesmo período de 2020. Já a Kering (Gucci, Saint Laurent, Bottega Veneta), apresentou crescimento de 60% em relação à primeira metade de 2020.

Em território nacional, o quadro não foi diferente. Impedida de viajar para o exterior, a elite brasileira começou a consumir mais luxo no próprio país. De acordo com dados do Euromonitor, o Brasil é um dos países em que o setor de luxo teve menos retrações durante a pandemia – dado que joga luz sobre a desigualdade social no país. No último ano, mais de 15 milhões de brasileiros voltaram a viver abaixo da linha da pobreza extrema. Ao mesmo tempo, o número de bilionários no Brasil subiu 44%, acumulando um patrimônio de 212 bilhões de dólares.

Dados recentes mostram que muitas pessoas não estão substituindo a experiência de compra física pela digital. Uma pesquisa da IPV indicou crescimento de 11% no fluxo de consumidores em lojas de moda brasileira em julho de 2021, em relação ao mês de maio. Denise Door, diretora de marketing da RetailTech AMARO, endossa: “Das 100 transações de varejo de moda feminina, 89 ainda ocorrem em lojas físicas. Por isso, investimos tanto no modelo omnichannel. Queremos estar presentes na jornada completa da nossa consumidora, seja no app, no site, nos guide shops”.

“Não acreditamos que o poder das lojas físicas vai diminuir ou acabar, é sobre conjugar essas experiências”, reforça Marcello. “O consumidor pode pesquisar no digital, visitar e experimentar nas lojas físicas e optar por comprar na flagship e receber em sua casa direto da loja, por exemplo.”

EXPERIÊNCIA E RELACIONAMENTO

Se, há cinco anos, o papel das lojas físicas no varejo era obter o máximo de receita por metro quadrado, hoje, elas se tornam parte de uma estratégia de relacionamento e experiência direto com o consumidor.

“O cliente percebeu que ele não precisa ir à loja para comprar, mas ele ainda quer sentir o tecido. Ele fica frustrado quando o tamanho ou a modelagem não são adequadas. Essa experiência do consumidor se define tanto na sensorialidade quanto na experiência de marca”, diz Izabel Dezon, especialista em tendências e sócia-fundadora da a consultoria DEZON.

Pós-vacina, comprar em uma loja deve ser uma experiência multi-sensorial que ativa os sentidos, do aroma do local à música e bebidas servidas, e estreita os relacionamentos entre consumidor e marca.

“É errado pensar em um mundo real e digital, isso já está junto, as experiências que temos no digital também influenciam como nos comportamos e estruturamos no mundo real.” Olivia Merquior

É o caso da Louis Vuitton, que restaurou sua loja no distrito de Ginza, no Japão. A nova fachada, com design do arquiteto Jun Aoki, parece uma obra de arte nas ruas de Tokyo. Do lado de dentro, a loja foi redesenhada por Peter Marino. Ao longo de seis andares, os consumidores podem interagir com uma série de instalações de arte, ter atendimento exclusivo em áreas VIPs ou tomar um café com os primeiros chocolates originais da grife.

Outros exemplos nacionais são a Anselmi, marca de tricôs que proporcionou experiências de imersão e uma aula de chás para suas clientes, e Misci, de Airon Martin, que inaugurou o Varal, bar e restaurante junto à nova loja da etiqueta.

Nos grandes grupos, a projeção é positiva. Marcello aposta em uma explosão do varejo físico a curto prazo. Só em 2021, a Farm planeja abrir 16 novas lojas (12 delas, de rua), mesmo depois de um ano com resultados mais baixos.

“Em tempos de instabilidade e muita ansiedade, varejistas estão tentando criar uma conexão mais profunda com consumidores, promovendo um estilo de vida mais lento”, diz Sofia Martinelli, expert de futuro do WGSN. “A marca Bearaby, por exemplo, criou uma experiência de compra lenta, perguntando sobre o estado de espírito do consumidor e garantindo se aquela não era uma compra por impulso.”

“Comprar uma roupa em uma loja online é mais ou menos o mesmo que fazer uma compra de supermercado online”, fala Izabel. “Os produtos estão em display e você só aperta alguns botões, ainda não tem uma grande experiência.” Nesse sentido, a busca por ampliar as possibilidades da experiência digital é um ponto de atenção importante para os players do mercado.

A Farfetch criou a ferramenta Virtual Try-On, em que o usuário do aplicativo escolhe o produto que quer provar, aponta a câmera do celular para o seu pé e pode ver uma simulação do tênis ajustado ao seu corpo. Além disso, o marketplace também inaugura o recurso Visual Search no app, que possibilita ao cliente inserir fotos no aplicativo da Farfetch e receber uma busca personalizada de itens similares.

Outras tecnologias que têm chamado atenção e apresentam promessas para o varejo, são as tendências imersivas: o metaverso e a realidade estendida (XR). O primeiro diz respeito a um universo imersivo e digital, que pode ser criado em diversas plataformas. É possível, por exemplo, simular as possibilidades de uma loja física, diretamente em algum um dispositivo. Já a segunda, que se divide entre a realidade virtual (VR) e a realidade aumentada (AR), as possibilidades do consumo físico podem ser expandidas artificialmente.

A Farm planeja recriar suas principais flagships e a Casa Farm no formato 3D, para que os clientes possam visitar, andar e comprar as peças virtualmente, como se retirassem direto das araras físicas. Recentemente, a Prada criou uma ativação de realidade aumentada em uma de suas lojas em São Paulo, com um jogo original, onde os maiores pontuadores receberam prêmios em produtos da marca.

“É errado pensar em um mundo real e digital, isso já está junto, as experiências que temos no digital também influenciam como nos comportamos e estruturamos no mundo real”, diz Olivia Merquior, fundadora do Brazil Immersive Fashion Week e especialista em moda digital. “É o efeito boomerang. Começamos a desejar trazer para o real as cores, texturas e formatos das experiências digitais”, continua ela. “Pensar em realidade virtual ainda é meio chato, porque depende de um dispositivo pesada, mas os óculos de realidade aumentada já são uma história muito próxima. Em breve, poderemos ter estampas que se movimentam quando olhadas a partir de um desses aparelhos.”

O CONSUMIDOR TAMBÉM MUDOU

No varejo pós-vacina, o comportamento do consumidor também ganha novos aspectos. Segundo Sofia Martellini, os consumidores mais dispostos a comprar são mais otimistas, têm maior poder aquisitivo e querem voltar a se vestir de forma mais positiva e até extravagante – tendência chamada de Joyful Expression, pelo WGSN.

“Já outros, ainda estão receosos, não apenas em relação ao vírus, mas também com o impacto financeiro que a pandemia trouxe. Esses consumidores compram principalmente por necessidade ou funcionalidade. Buscam por peças que tenham valor agregado, como itens que possam ser usados em diferentes situações ou de diferentes formas.” continua Sofia.

Para a pesquisadora Izabel Dezon, a volta pode ser bem gradual, já que o consumidor continuará com receio de retomar as atividades, mesmo após a vacina, e o fará de forma mais controlada, frequentando ambientes com grupos pequenos e restrições e experiências mais privativas. Por outro lado, os mercados de ticket médio mais baixo, atingem públicos que não necessariamente tiveram o privilégio de exercer o lockdown, portanto, podemos ver uma volta mais aberta e mais liberal, salvo algumas exceções.

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