No aniversário de Yves Saint Laurent, relembre a coleção “Escândalo”
Criticado em sua época, o desfile realizado há 50 anos pelo estilista, que completaria 85 anos em agosto, foi pioneiro ao repensar o lugar da alta-costura na moda.
Quando Yves Saint Laurent apresentou sua coleção Libération, encerrando a semana de alta-costura de verão de 1971, seus anos como “príncipe da moda” pareciam, inquestionavelmente, terminados. Os modelos inspirados no guarda-roupa feminino dos anos 1940 escandalizaram as clientes e imprensa que haviam sobrevivido à ocupação nazista. Por outro lado, apresentaram a fantasia da haute couture a uma nova geração desencantada com as velhas convenções e ansiosa por redescobrir a autonomia e irreverência feminina.
Cinco décadas mais tarde, a sensibilidade de Saint Laurent em ressignificar a mais alta expressão de sofisticação se mantém relevante. Sua ideias de diálogo entre as diferentes manifestações de estilo revelam uma paixão (ou talvez necessidade) pela constante reinvenção. Mais do que escandalosa, Libération foi revolucionária.
As Pombas da Rue Spontini
A inspiração para a coleção foi Paloma Picasso, filha do célebre pintor espanhol e, então, no auge de seus 21 anos. Apaixonada pelo cinema dos anos 1940 e frequentadora regular de brechós e feiras de antiguidades, ela encontrou Yves Saint Laurent pela primeira vez enquanto usava um turbante rosa com plumas cinzas, um vestido comprado na Portobello Road (rua londrina famosa pelas lojas de segunda-mão) e sapatos plataforma. Seus lábios, pintados de vermelho, lembravam os das mulheres que vagavam à noite nas ruas de Paris, conquistaram de imediato o estilista.
Deliberadamente provocador, Saint Laurent decidiu transformar a estética ousada em uma série de 84 looks. Não para sua jovial e despojada boutique de prêt-à-porter (a SAINT LAURENT Rive Gauche, fundada em 1966), mas para a luxuosa, seleta e matronal maison de alta-costura. Casacos e blazers de lapelas e ombros exagerados desfilaram no salão do ateliê na Rue Spontini junto com vestidos curtos, calças, sapatos plataformas, chapéus e turbantes. Meias-calças em tons de azul brilhante, amarelo-canário e rosa vibrante também chamaram a atenção.
Fotos da coleção “Escândalo”, no livro Yves Saint Laurent: The Scandal Collection, 1971 (2015).Foto: Reprodução
Fotos da coleção “Escândalo”, no livro Yves Saint Laurent: The Scandal Collection, 1971 (2015).Foto: Reprodução
Uma das jaquetas, em cetim turquesa, combinou motivos de fitas carnavalescas, flores e uma excêntrica rosa dos ventos. Todos bordados com lantejoulas. Os vestidos figuraram em uma série de estampas sucessivamente ousadas. Uma versão marmorizada do camuflado, encomendada nos ateliês de Lyon, estampou um vestido em crepe da China. O drapeado ao redor do quadril, enfeitado com uma enorme flor preta, realçava o comprimento reduzido da peça.
Os últimos modelos desfilados, com desenhos no estilo de antigos vasos gregos, surgiram em dois temas diferentes. O primeiro, que evocava guerreiros em batalha, foi criticado pela infeliz associação com o exército nazista (o mesmo foi dito do vestido camuflado). O segundo trazia corpos nus – em sua maioria masculinos – em posições sugestivas, rodeados por folhas de hera (símbolos de Dionísio, deus do prazer e das orgias) e ocasionais pombas brancas (associadas à Afrodite, a deusa do amor).
A imagem da ave também pode ter sido uma sutil referência à musa do desfile (Paloma em espanhol significa pomba), mas nem as referências à Antiguidade Clássica foram suficientes para desviar a atenção do público do fato de que, indiretamente, a coleção também fazia alusão ao estilo das prostitutas de Paris.
Manifesto à Juventude
Os 180 convidados presentes no desfile, pelo menos aqueles que não saíram horrorizados antes do fim, terminaram a apresentação impacientes para comentar com o mundo sobre a ofensa que haviam testemunhado. Na época, Saint Laurent defendeu suas criações e aproveitou para alfinetar seus críticos mais conservadores. Em entrevista à edição francesa da ELLE, em março de 1971, comentou que a alta-costura “não tem nada a oferecer senão nostalgia e tabus. Como uma senhora idosa. (…) O que importa é que mulheres jovens, que não têm ideias pré-concebidas sobre esses estilos, querem usá-los. Os outros vão ter que copiá-los depois”.
Enfurecida por sentir que Yves havia profanado um “tesouro nacional” (a alta-costura), a parcela mais velha da imprensa e da clientela também acusava o estilista de insensibilidade. Nascido na Argélia, em 1936, ele se mudou para Paris apenas em 1954, uma década após o fim da ocupação nazista na cidade. Mais do que ingênua, a nostalgia promovida pela coleção fazia referência a um passado hostil e recente.
O professor e historiador de moda João Braga reitera a recepção do evento: “O desfile foi considerado de extremo mau gosto pelas pessoas que viveram os horrores da guerra. A realidade do início da década de 40 era repleta de penúrias, incluindo um rígido racionamento de tecidos.”
Paloma Picasso, Marisa Berenson e Loulou de La Falaise no desfile de 1971.Foto: Musée Yves Saint Laurent Paris
Enquanto isso, as moças mais jovens, filhas das mesmas clientes escandalizadas, enxergavam a coleção de outra forma. Celebravam a praticidade das roupas femininas que a escassez da guerra provocou e que estava esquecida há mais de duas décadas. “Yves Saint Laurent fez dos nossos impulsos irracionais a moda do momento e uma simbiose ainda mais audaciosa que ele proclamou ser um manifesto à juventude”, disse Paloma Picasso em entrevista para o livro Yves Saint Laurent: The Scandal Collection, 1971 (2015).
Libertação
Comercialmente, a coleção Libération foi um fracasso. Apenas 304 peças foram vendidas, em comparação com as 729 da temporada anterior. Seu impacto estético e ideológico, porém, transcende sua recepção negativa. Seu nome, em referência à liberação de Paris do exército alemão, foi ressignificado. Em sua genialidade profética, Yves Saint Laurent libertou a alta-costura do cruel destino da obsolescência.
Enquanto novos modelos de consumo ameaçavam a relevância das roupas feitas sob medida, ele desafiou as regras e abriu o exclusivo universo da haute couture ao diálogo com a juventude e com o que acontecia nas ruas.
Sobre sua coleção Escândalo, Saint Laurent comentou: “O que eu quero fazer? Chocar as pessoas. Fazê-las pararem e pensarem”. A moda, com toda certeza, não parou. E nem conseguiria. Mas meio século depois, continua interessada em novas formas de provocar, existir, refletir. Urgências da vida que Yves explorou.
Lembra deste desfile? é uma série do site da ELLE Brasil que relembra algumas das principais coleções da história da moda e explica a sua importância para o contexto da época.
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