Do Egito Antigo a Beyoncé: estampas de oncinha e leopardo carregam história e simbolismo

Padronagem é usada desde os primórdios para simbolizar poder e status de realeza.


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Se tem algo polêmico e que divide opiniões dentro da história da moda é a estampa de oncinha (em termos mais chics, ela é também é chamada de animal print), mas para além do ame ou odeie, a verdade é que esse ícone é cheio de significados. Recentemente, um debate sobre a estampa ganhou fôlego em volta de Beyoncé: a cantora usou a padronagem em seu álbum visual, Black is King, e a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz escreveu em um artigo no jornal Folha de São Paulo que a cantora havia errado ao glamourizar no filme a negritude com estampa de oncinha — a antropóloga, no caso, é uma mulher branca (ou seja, sem nenhuma vivência de como é ser negra).

“Duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamourizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal”, escreveu Schwarcz em seu texto.

“Acho que o que falta na análise é um cuidado ao tratar desses assuntos que são tão caros a nós, à nossa população negra. Ela não pesou nem pensou na dimensão daquela criação da Beyoncé para nós negras, como seria uma coisa muito importante para nossa autoestima e história”, afirma a pesquisadora de moda e colunista da ELLE Hanayrá Negreiros.

Mas afinal, que conexão a bendita estampa pode ter com a cultura negra? Basta passear pela linha do tempo da história da moda para ver que o uso desse padrão nasce atrelado a muitos signos desde as deusas e princesas egípcias até chegar à modernidade e à diva do pop.

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Beyoncé em Black Is King

Foto: Divulgação

Para a empresária de moda e criadora de conteúdo Ana Paula Xongani, o animal print sempre marcou presença no vestuário, na vida real ou em grandes produções.

”No audiovisual, além do clipe Black is King, obra prima de Beyoncé, tem Um príncipe em NY, com o Eddie Murphy, por exemplo. E isso não é aleatório, pois mostra não apenas respeito, mas conhecimento da cultura africana. As peles dos animais são oferecidas a reis e rainhas como um artigo raro, de luxo, pouco encontrado. Na indumentária africana, essas estampas ocupam lugar de realeza e sacerdócio”, explica Ana Paula, que é também apresentadora do programa “Se Essa Roupa Fosse Minha”, do GNT.

No álbum visual, ao vestir-se de onça da cabeça aos pés, Beyoncé resgata o costume de antigos líderes africanos que usavam pele para demonstrar autoridade. Na antiguidade, existia uma crença sobre usar a pele dos animais para adquirir as características deles. Quem explica isso é a pesquisadora de têxteis africanos Wanessa Yano, que aponta também que “o leopardo e a onça são apreciados pelas realezas por sua ampla habilidades de caça”.

“‘A onça transmite beleza, força, intensidade, resistência e persistência. Muito mais que isso, é um animal que impõe respeito, é representativo e foi exatamente assim que nos sentimos com o filme Black is King, representados”, pontua a consultora de imagem e estilo nigeriana Nianga Lucau. ”Beyoncé, ao usar oncinha em Black is King, representa um código claro e direto. Afirma majestade, beleza e poder”.

Fazendo uma volta ao passado, é possível ver que a estampa animal aparece em diversas culturas sendo associada a figuras de poder. A deusa egípcia da sabedoria, Seshat, por exemplo, muitas vezes é retratada vestindo uma pele de leopardo, assim como o deus grego do vinho e das festas Dionísio. Na mitologia chinesa, por sua vez, a deusa Xi Wangmu, conhecida como a Rainha Mãe do Ocidente, é retratada com uma cauda de leopardo.

O caminho ao mainstream

Na década de 1930, com o fascínio pelas estrelas de Hollywood, as roupas usadas no cinema por Johnny Weissmuller, como Tarzan, e Maureen O’Sullivan, como Jane, fizeram o público feminino desejar estampas de animais loucamente. O mercado começou a produzir blusas, casacos e acessórios para as consumidoras que desejavam não só a peça em si, mas o que elas representavam: uma sensação de aventura e uma independência de espírito. Algo que não era comum para representações de mulheres naquela época.

No final da década de 1940, em 1947 precisamente, Christian Dior leva para a passarela tecidos estampados imitando a pele de onça. Foi o primeiro designer a não usar pele verdadeira em um desfile de moda. ”If you are fair and sweet, don’t wear it”, disse o francês se referindo às roupas estampadas. Lanvin também foi outra estilista que se destacou por fazer vestidos estampados em crepe de seda seda e rayon.

Entre 1940 e 1950, o print começou a ser visto como algo sensual graças às pin-ups, que usavam roupas curtas, lingeries e espartilhos feitos com a estampa. Um dos nomes responsáveis pela nova interpretação da padronagem foi a pin-up mais famosa da época, Bettie Page. As mulheres desejavam poder e a aparência feroz para demonstrar independência. Elas queriam ser sensuais, demonstrar o sex appeal que antes não podiam por serem constantemente reprimidas (também vem um pouco dessa época a leitura de que a estampa é algo “vulgar”).

A chancela de ícone sedutor veio mais de uma década depois quando a atriz americana e sex symbol da época, Jayne Mansfield, surgiu usando um biquíni com estampa de onça em 1955 e aí não só mulheres, mas homens também começaram a se interessar por ela.

Jayne Mansfield
Jayne Mansfield

Corbis | Getty Images

Apesar de alternativas como os tecidos estampados, nos anos 1950, as pessoas ricas queriam se cobrir de pele animal para mostrar status e grande poder aquisitivo. Os casacos eram o símbolo máximo de poder e luxo. Peles de coelho, raposa, zibelina e vison também eram usadas, mas as peles de leopardo superavam o uso, eram sempre as mais procuradas.

A proibição do comércio de pele de animais em extinção foi um dos fatores que impulsionou a popularização do animal print, mas ela só aconteceu de fato na década de 1960 quando a estampa caiu nas graças do mainstream e a demanda por peles explodiu, fazendo com que milhares de animais fossem mortos para satisfazer o desejo da moda.

Nessa década, os nomes que influenciaram a moda do animal print foram principalmente Jackie Kennedy, Britt Ekland e Jean Shrimpton. Dianne Von Furstenberg, conhecida pelo seu emblemático vestido envelope, também contribuiu criando uma versão dele em 1974 com estampa de oncinha.

De sensual à subversiva

O surgimento do glam rock trouxe ares de subversão à moda, e peças como macacões de spandex fizeram sucesso celebrando a fluidez de gênero que começou a ser proposta naquela época. Sid Vicious e Debbie Harry foram os ícones punks responsáveis por bagunçar o status quo junto com a estilista Vivienne Westwood. Eles pegavam alfinetes para personalizar as peças, usavam roupas íntimas de animal print e faziam questão de deixá-las bem visíveis. Além de usarem calças, blusas e outras peças sempre rasgadas para chocar. A estilista britânica e todo o resto da cena punk de Londres abraçou a estampa como um símbolo de subversão e rebeldia.

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Sid Vicious, do Sex Pistols

Redferns | Getty Images

Inspirada pelo movimento punk, uma profusão de tipos e materiais surgiram, muitos de baixa qualidade, o que pode ter ajudado a percepção da estampa passar a ser lida pela sociedade como algo de menor valor ou mesmo “cafona”. Independentemente da reputação, a padronagem virou um clássico da cultura pop, e é usada até hoje para representar pessoas que querem demonstrar poder.

A fotógrafa e idealizadora da série de retratos “From Mobutu to Beyoncé”, Émilie Régnier, acredita que o animal print proporcionou um meio de diálogo entre a moda africana, a alta-costura e o streetwear. “[A estampa] tem conotação sexual ou, pelo menos, erótica porque estava ligada à África”, aponta Régnier. “Se uma mulher estava vestindo leopardo, significa que ela tinha uma sexualidade selvagem. Tornou-se uma das estampas mais utilizadas na alta-costura, e da alta-costura se democratizou para o streetwear, voltando ao continente africano livre de seu simbolismo inicial”.

Na atualidade, dezenas de cantoras pops adotam as estampa em figurinos de shows e no dia dia: pense em Shania Twain, Mel B, Rihanna e, finalmente, Beyoncé, que é é grande fã do visual felino e sempre esbanja poder e estilo com seus looks estampados grifados. Temporada após temporada, o animal print surge como tendência, mas a verdade é que a estampa é um clássico. Graças ao seu poder de adaptação aos mais variados estilos, ela sempre está presente nas passarelas, pronta para ser reinventada, como quando Tom Ford fez ternos com ela em fundo e paetês vermelho cereja.

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Mel B tinha como marca registrada o uso de estampa de oncinha e leopardo em seus tempos de Spice Girls.

Redferns | Getty Images

Os designers adoram explorar sua complexidade e simbolismo para tentar capturar, nem que seja um pouquinho, a essência de um animal que é atrelada ao perigo, sedução, beleza e ao, mesmo tempo, inocência: a inocência da selvageria dentro da natureza intocada.

Ainda sobre o álbum visual da ex-líder do grupo Destiny’s Child, Ana Paula Xongani afirma categoricamente que ”o figurino de Black is King coloca a estampa de oncinha no lugar de onde nunca deveria ter saído”.

Ninguém precisa gostar de Black is King e menos ainda do figurino usado no filme (se é que isso é possível), é verdade. O perigo é quando alguém com outra realidade, outra vivência, quer falar sobre o que é certo ou errado para representar a negritude. Gosto não se discute, lugar de fala sim.

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