Entre bordados e tanques de guerra: o desfile-protesto de Zuzu Angel

Há 50 anos, a costureira denunciava as atrocidades da ditadura militar com uma coleção mais atual do que nunca.


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Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel



A data de hoje não é comemorativa. Há exatos 57 anos, o Brasil entrava num dos períodos mais obscuros e repressores de sua história: a ditadura militar. Em meio à barbárie e violência, a cultura foi uma importante ferramenta de resistência, e a moda não se exclui disso. Mas entre aqueles que faziam das roupas uma forma de protesto, havia uma estilista, em especial, que se destacou nessa luta. Seu nome é Zuzu Angel.

O ano de 2021 marca não somente o centenário de nascimento da mineira que debutou na moda em 1966, mas também o aniversário de meio século daquele que se tornaria o momento mais célebre de sua carreira: um desfile, em 1971, em protesto à ditadura militar no Brasil.

A apresentação aconteceu em setembro, em Nova York, e veio poucos meses depois de um acontecimento trágico: em maio, seu filho mais velho, Stuart, foi preso pelos militares e desapareceu. Desesperada e censurada, Zuzu encontrou o espaço para manifestar sua dor em outro hemisfério, mas ainda assim não muito longe de casa (mais sobre isso em breve).

Zuzu Angel e modelo com look apresentado em sua cole\u00e7\u00e3o de protesto em Nova York.Zuzu Angel e modelo com look apresentado em sua coleção de protesto em Nova York.Foto: Reprodução

Mais brasileira que todos os seus contemporâneos, a costureira (ela gostava de ser chamada assim) foi assassinada em 1976, em uma batida de carro orquestrada para parecer um acidente. Décadas mais tarde, o Ministério da Justiça reconheceu a responsabilidade de agentes do Estado no ocorrido.

Naturalmente, a figura de Zuzu não se reduz à uma só coleção, mas neste momento de Brasil (ou Brasis), sua força política e sua presença no imaginário coletivo continuam tão atuais e necessárias como nunca. Como disse Ronaldo Fraga, em seu mais recente desfile (virtual): “É preciso redescobrir Zuzu Angel”.

Manifesto de Dor

A perda do filho atingiu Zuzu no auge de seu sucesso. Aclamada no Brasil e nos Estados Unidos desde 1968, encantava a clientela com calças, blusas e vestidos de algodão, linho e brim. A tropicalidade leve de suas criações refletia seu estado de espírito: não se preocupava em demasia com questões políticas (em verdade, contava até com a primeira-dama Yolanda da Costa e Silva entre suas clientes).

Ronaldo Fraga, que homenageou a costureira em mais de uma ocasião na São Paulo Fashion Week, comenta: “Zuzu foi a primeira a falar de identidade e legitimidade brasileira. E foi pioneira ao utilizar os materiais daqui”. Em 2001, o estilista comoveu convidados com seu desfile Quem matou Zuzu Angel? e, mais recentemente, em novembro de 2020, apresentou Zuzu vive!, uma conversa imaginada com a personagem em um apartamento vazio. As peças, uma perspectiva criativa própria sobre as criações da costureira e aquelas que o próprio estilista fez 20 anos atrás, foram desfiladas digitalmente por “Zuzus Angeis” 3D.

Desfile de

Look da coleção Quem Matou Zuzu Angel, de Ronaldo Fraga.Foto: Agência Fotosite

Desfile de

Zuzu e Ronaldo carregam muitas similaridades, mas não compartilham o mesmo despertar político. Para ele, o interesse pela militância surgiu ainda na adolescência. Para ela, nasceu da dor. Stuart Angel, seu primogênito de 26 anos, protestava contra o governo no Rio de Janeiro, quando desapareceu. Sua tortura e morte só foram reveladas anos depois, por meio de uma testemunha, mas, nesse intervalo, Zuzu nunca deixou de procurar o filho.

Foi com essa motivação que a costureira decidiu apresentar um desfile-protesto, em Nova York, longe da censura militar. Ainda assim, o fez dentro da casa do cônsul brasileiro, para deixar claro o diálogo com o Brasil.

Nos modelos desfilados, Zuzu trocou seus tradicionais motivos alegres por estampas e bordados com desenhos coloridos, mas que evocavam cenários sombrios. Pássaros em gaiolas, quepes, aviões, tanques militares, soldados e canhões eram algumas imagens nos vestidos que cruzaram a passarela. Entre eles, vestidos de linho branco com diferentes comprimentos de manga e um intenso longo com saia godê, em gorgorão de algodão vermelho-escuro, e a imagem de um anjo bordada na frente com canutilhos, miçangas e paetês.

O fim da apresentação trouxe a criadora em um vestido longo preto e cabeça coberta por um manto, além de um cinto com cem crucifixos e, no pescoço, um enorme pingente de porcelana em formato de anjo. Zuzu expunha não somente seu luto para o mundo, mas sua indignação.

Os Anjos de Hoje

Cinquenta anos mais tarde, ainda é incerto se o Brasil está livre da mesma intolerância que matou os Angel. Para Ronaldo Fraga, as Zuzus de hoje são as mães e ativistas, e “os Stuarts têm traços indígenas e negros”. O estilista lembra ainda que “na época, muitos não saíram em defesa de Zuzu. Ela virou a doida que só vivia reclamando e procurando o filho”.

A falta de apoio e empatia que afetou a costureira não é incomum hoje – tempo em que as redes sociais proporcionam ambientes de tanta hostilidade quanto de aproximação. Mas, como Zuzu provou, a moda é capaz dar voz não apenas às dores, mas aos anseios mais profundos por mudanças. “Sempre tratei os desfiles como uma forma de manifesto, porque te permitem revelar sua face mais potente. É a moda que provoca, denúncia e sinaliza pontos que muita gente não enxerga”, defende Fraga.

Sim, é preciso redescobrir Zuzu Angel. Mais do que isso, é preciso incentivar, entre as novas gerações, a descoberta da mesma resiliência que não desistiu de Stuart há cinco décadas, e que não pode desistir do Brasil agora.

Lembra deste desfile? é uma série do site da ELLE Brasil que relembra algumas das principais coleções da história da moda e explica a sua importância para o contexto da época.

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