Helmut Lang e a reinvenção do casual
Conheça a trajetória de Helmut Lang, estilista austríaco que marcou os anos 1990 com minimalismo e funcionalidade.
“As outras crianças da escola se vestiam como hippies, mas eu não tinha permissão para usar jeans.” O dono da frase, acredite se quiser, é Helmut Lang. O estilista austríaco, conhecido justamente por elevar básicos como a regata branca e a calça jeans à categoria de luxo, nos anos 1990, não podia usar esses itens. A sua infância e adolescência, ele revelou em diversas entrevistas ao longo da carreira, foi um período rígido, trágico, e que ajuda a entender o seu processo criativo.
“Essa época foi tirada de mim. Não sei ao certo, mas acho que, por isso, me tornei designer de moda, porque fui negado à minha própria identidade”, ele reflete em entrevista a uma revista estadunidense. Se não o levou à moda, o desejo por uma identidade, ajudou a determinar o caminho que ele percorreu nessa indústria. Durante os 19 anos que esteve à frente de sua marca homônima, Lang colaborou para definir uma estética muito própria, funcional e utilitária, minimalista e artística, de um jeito que definiu a década de 1990 e segue influenciando marcas e designers até hoje.
Helmut Lang no aceno final de seu desfile de outuno 1997 em Paris. Foto: Getty Images
Da contemplação à rebeldia
Nascido em Viena, em 1956, Lang tinha menos de seis meses quando o casamento de seus pais chegou ao fim. Criado pelos avós maternos (a sua mãe faleceu poucos anos depois de seu nascimento), em um vilarejo dos alpes austríacos, o designer teve uma infância introspectiva na natureza. “Nas montanhas, existe uma beleza refinada, que não é sobre dinheiro”, ele explica a simplicidade da natureza, sua ideia de luxo, que mais tarde fundamentaria o seu estilo.
A experiência idílica, no entanto, acabou aos 10 anos, quando ele voltou à capital para viver com o seu pai e a madrasta. Segundo ele, era ela quem o impedia de usar jeans e o obrigava, entre outras coisas, a vestir apenas os paletós agigantados e os chapéus muito grandes, herdados do pai. Diante desse cenário, ele decidiu sair de casa assim que completou a maioridade.
A partir daí, testou todo tipo de roupa, mas se pegou pensando em algumas bem específicas, típicas do cotidiano estadunidense, mas que não eram encontradas facilmente nas ruas de Viena. Ele então comprou os tecidos, levou à costureira e explicou o que buscava. O visual fez sucesso e alguns conhecidos pediram cópias. Mais pedidos chegaram até que, em 1977, ele abriu um ateliê.
Um autodidata vai à Paris
Sem educação formal como estilista, Lang fez do seu ateliê a própria faculdade, observando, consultando e repetindo o trabalho da sua equipe de costura. Atento aos detalhes e devoto ao ofício (mais tarde chamaria os seus lançamentos de “sessões de trabalho”, e não mais de coleções, como é costume), ele não demorou para causar uma boa impressão entre a elite austríaca, que solicitava o seu sob medida.
Em 1986, ele se apresentou em Paris pela primeira vez, mas fora de um calendário de moda oficial. No Centro Pompidou, participou da exposição “Vienne 1880-1939: L’Apocalypse Joyeuse“, que traçava uma linha do tempo da arte moderna vienense. No ano seguinte, entrou oficialmente para a semana de moda da capital francesa.
O seu design simples e funcional ganhou destaque em meio aos trajes ornamentais e fantasiosos, que prevaleciam por todos os anos 1980. As suas cores sóbrias e cortes retos foram uma prenuncia da reviravolta que a moda passaria nos anos seguintes, quando o grunge e o minimalismo se estabeleceriam.
A estética de Helmut Lang
Apesar de ajudar a definir uma era, Helmut Lang se esquivava dos rótulos. Quando a crítica considerava o seu trabalho sóbrio e austero, atribuindo essas características às suas origens centro-europeias, ele rebatia. “O meu jeito de trabalhar não tem nada a ver com nacionalidade. É muito mais sobre uma disposição pessoal do que um cenário cultural ou geográfico”, afirmou à ArtForum, em 1995.
Kate Moss nos bastidores de desfile da Helmut Lang em 1998 Foto: Getty Images
Ele também descartou o título de “dono do glamour pós-grunge”. Mas o seu visual refinado com uma dose de ruído fizeram com que a crítica especializada o considerasse aquele que conseguiu vestir os punks e ravers crescidos, os rebeldes que viraram adultos. Uma imagem contribuída pelo seu time, em especial o beauty artist Guido Palau e Melanie Ward, stylist com quem trabalhou por 13 anos. É ela a responsável pela descoberta de Kate Moss, modelo que estava sempre nos desfiles e campanhas da marca, assim como Cecilia Chancellor, Stella Tennant e Amber Valetta.
Destaque também para o seu interesse tecnológico, explorando novos tecidos e materiais de performance, vindos do universo esportivo. Calças metálicas, vestidos de borracha, jaquetas de plástico bolha ou mesmo blusas que mudam de cor em contato com o corpo passaram a andar lado a lado de camisas e calças de alfaiataria. Para o designer, a experimentação “é o que move tudo para frente.”
Talvez, por isso, sua inovação não se limitasse às roupas. Lang foi o primeiro a fazer uma apresentação digital de um desfile, em 1998. Foi ele também o pioneiro no marketing alternativo, usando como publicidade as partes de cima dos táxis amarelos de Manhattan.
Publicidade aparece no filme Como Perder um Homem em 10 Dias, lançado em 2003. Foto: Reprodução
Na mesma época, ele se mudou para Nova York e a sua influência era tanta, que ele mudou o calendário tradicional. Nova York deixou de ser a última capital e passou a abrir a temporada de moda internacional por sua causa.
O apreço do designer pela artes se fez presente em seu marketing. Nas campanhas, realizou colaborações com artistas como Louise Bourgeois e Jenny Holzer. Frases provocativas e íntimas de Holzer, como “I smell you on my skin” (cheiro você em minha pele, em português), estamparam páginas de jornais e revistas para divulgar o perfume homônimo da marca.
Campanha do perfume Helmut Lang com a artista Jenny Holzer. Foto: Reprodução
Outro ponto importante de seu design era a sensualidade não óbvia. A verdade é que ela era mais uma consequência do que um desejo. Os recortes inesperados nos braços e abdômen, bem como as tiras e transparências são todos esses elementos provenientes do universo do montanhismo e de outros esportes, mas que acabavam ganhando leitura fetichista.
“Para mim, é importante fazer roupas que caibam bem no corpo, e são as silhuetas, os materiais e as cores que criam essa sensualidade. Eu nunca penso ‘quero fazer algo sexy”, Helmut Lang
A premissa do seu trabalho era resolver o dilema fundamental do vestuário do cidadão contemporâneo. O seu legado, não à toa, foi uma ode às roupas casuais, mas inteligentes.
O acordo com a Prada e a saída da marca
No ápice de seu sucesso, em 1997, a sede da marca mudou de Paris para Nova York. Neste mesmo ano, aconteceu o lançamento da Helmut Lang Jeans, braço da etiqueta dedicado ao denim. As suas lavagens não-convencionais, como aquelas que imitavam um jeans sujo de respingos de tinta, foram largamente copiadas.
Sua influência era inegável, mas seu alcance enquanto marca solo era difícil. Por isso, para ampliar as suas possibilidades e entrar em novos mercados, a marca vendeu 51% de seu negócio para o Grupo Prada, em 1999. A ideia era que o grupo ficasse à frente dos acordos comerciais, e que o estilista se concentrasse na direção criativa.
A incorporação pelo grupo Prada levou as lojas da Helmut Lang para Singapura e Hong Kong, ampliou licenciamentos, como os de perfumes, e fechou a Helmut Lang Jeans.
As vendas começaram a cair após o início dos anos 2000 e, em 2005, o designer resolveu sair da marca que leva o seu nome, além de se aposentar do ofício de estilista. Nesse mesmo ano, Helmut Lang virou artista plástico.
Helmut Lang: a pessoa e a marca hoje
Desde então, Helmut se dedica principalmente a fazer esculturas. Boa parte do acervo de roupas da sua marca foi doado a museus mundo afora. Outra parte – cerca de seis mil peças – foi destruída em função de um incêndio. As cinzas, porém, foram transformadas em matéria-prima para a elaboração de esculturas, exibidas na galeria The Fireplace Project, em Nova York, no ano de 2011. A intenção era destacar a “transitoriedade dos esforços criativos”.
Obra com o arquivo queimado da Helmut Lang. Foto: Getty Images
A marca Helmut Lang, por sua vez, está desde 2009 sob o comando da holding Fast Retailing Co., também dona da Uniqlo e J Brand. Em maio de 2023, o estilista vietnamita Peter Do, vencedor do prêmio LVMH de 2014, chegou à direção criativa da label. A sua primeira apresentação acontece durante a semana de moda de Nova York, no dia 08.09.
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