Quem é Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful

Para o estilista que revolucionou a moda masculina com sua marca, a Mr. Wonderful, “a moda não é pequena para ninguém. A moda é arte viva e está sempre acompanhada de uma veia política”.


Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful.
Luiz de Freitas Foto: Divulgação



Lançado no início de agosto, o livro Eu, Luiz de Freitas, Mr. Wonderful (Bem Cultural Editora), de Dininha Morgado, ganha duas noites de autógrafos em São Paulo: no Espaço do Cinema da Faculdade de Cinema da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), no dia 10 de setembro, e na 27ª Bienal Internacional do Livro de SP, no dia 11.

“Este não é um livro sobre moda. É o relato de um artista à frente do seu tempo que, com propósito e talento, construiu uma indústria com identidade criativa brasileira feita para o mundo”, escreve a autora, que trabalhou por mais de uma década ao lado do estilista e colheu depoimentos do conterrâneo mageense para construir a biografia.

Luiz de Freitas, o fenômeno Mr. Wonderful, também foi homenageado no Volume 01 da ELLE Men Brasil. O texto completo, publicado em julho de 2022, você confere a seguir:

Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver

Ipanema, verão, década de 1980. Eu e Mônica Sampaio saímos da praia, ali, na Teixeira de Melo, em direção à Visconde Pirajá. Paramos em frente à Mr. Wonderful. Eu, um gay paulista de férias, como fazia desde 1970, Mônica, uma jovem negra baiana, que cruzou meu caminho nas areias mais democráticas do Brasil. Ela fica apaixonada por uma jaqueta, e eu, por um colete com grafismos. Ambos sem grana, nem pensávamos que era possível entrar na loja. 

A loja, no caso, tinha uma decoração que simulava um ambulatório, com móveis antigos de hospital. Era uma “clínica da moda’’, como dizia o dono. Segundo ele, para vender roupas tão fora do padrão para os homens da época, era necessário um “tratamento’’ para plantar suas ideias. E deu certo. Até os anos 1990, o negócio cresceu e ganhou um ponto de venda também em São Paulo. Porém, com as dificuldades do Plano Collor, nessa mesma década o estilista foi obrigado a encerrar suas atividades.

Capa do livro Eu, Luiz de Freitas, Mr. Wonderful (Bem Cultural Editora), de Dininha Morgado.

Capa do livro Eu, Luiz de Freitas, Mr. Wonderful (Bem Cultural Editora), de Dininha Morgado. Foto: Divulgação

Para as novas gerações, que passaram a conhecer os anos 1980 pelo sucesso de Stranger things, a Mr. Wonderful era a marca de Luiz de Freitas, estilista que revolucionou a moda masculina com uma proposta arrojada, numa época marcada pelo espírito de abertura após os anos de escuridão da ditadura militar. 

A partir do final dos anos 1960, com o surgimento da Jovem Guarda, da Tropicália, das manifestações estudantis por liberdade e do movimento hippie, a moda passou a buscar referências nas ruas, em contraposição à alta-costura parisiense, que ditava as tendências e os costumes até então. 

De maneira autoral, Luiz de Freitas colocou cores e estampas no armário do homem, que antes vivia na monotonia do branco, azul e cinza. Além disso, trouxe uma nova silhueta, como o triângulo invertido de suas jaquetas, de ombros bem marcados, usadas com ousadas leggings estampadas. Entre os tecidos favoritos estavam o lamê, o cetim e tudo mais que fosse transparente, brilhante ou ambos.

Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful, e Lampito, a Miss Divine.

Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful, e Lampito, a Miss Divine. Foto: Reprodução

Ele era o melhor modelo de suas criações e chamava a atenção por onde passava, por seu estilo, seus chapéus e o bom humor. Suas criações eram vendidas em Portugal, Holanda e Nova York. Seus clientes? Prince, Fred Mercury, Rod Stewart, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Caio Fernando Abreu, Lennie Dale, do Dzi Croquettes, Rudolf Nureyev e Jean Paul Gaultier. 

Luiz veio de uma família de operários e, antes de se aventurar com as roupas, trabalhou como mecânico de automóveis. Mas a moda sempre foi o grande fascínio do estilista, nascido no interior do Rio de Janeiro. E desde muito cedo. Aos 9 anos, costurou seu primeiro vestido, feito para sua irmã na máquina da madrinha. Se mudou para a capital fluminense em busca do sonho de trabalhar com criação. 

Depois de juntar algum dinheiro com bicos em outras áreas, passou a desenhar para as butiques locais e, aos poucos, viu seu nome ganhar notoriedade. Na virada das décadas de 1970 e 80, depois de sua primeira viagem internacional, voltou um tanto chocado com a fama de machista dos homens brasileiros e decidiu fazer algo a respeito. Nascia assim a Mr. Wonderful.

Look da Mr. Wonderful, marca do estilista Luiz de Freitas.

Look Mr. Wonderful. Foto: Reprodução

Nos anos 1980, a moda carioca vivia sua fase áurea, com o grupo Moda Rio, formado por Maria Candido Sarmento (da Maria Bonita), George Henri, Mauro Taubman (da Company), Simão Azulay (da Yes! Brazil) e Gregório Faganello, entre outros. Sem contar Humberto Saade (da Dijon) e Glória Kalil, que trouxe a marca Fiorucci para o Brasil. Cada um deles, à sua maneira, traduziu um jeito carioca de ser.

Para ter uma ideia, todo adolescente dos anos 1980 pedia de presente uma mochila ou um tênis da Company, uma camiseta ou um jeans da Fiorucci. As intelectuais usavam Maria Bonita, enquanto um jeans com o logo metalizado da Dijon era o equivalente ao conceito atual de jeans premium. Já os artistas e as celebridades, esses vestiam Luiz de Freitas. 

Do ponto de vista cultural e da irradiação de novos costumes, Ipanema está para as décadas de 1970 e 80 como Copacabana está para os anos 1950. E se a Bossa Nova tomou conta das rodas de classe média alta das melhores casas, butecos e boates de Copa, a turma do Desbunde (o grupo de artistas e intelectuais com ideias libertárias, que viviam à sombra da ditadura militar) tinha nas areias do Posto 9 seu endereço fixo. À beira-mar, rolava tudo-ao-mesmo-tempo-agora: surfe, música, filosofia, teatro, sexo, drogas e rock’n’roll.

Luiz de Freitas na loja da sua Mr. Wonderful, no Rio de Janeiro.

Luiz de Freitas na loja da sua Mr. Wonderful, no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

Na frente da loja da Mr. Wonderful, na “Visconde, quase esquina da Garcia”, morava Itaguaçu Ferreira, estilista e consultor de moda. Ao contrário de mim e de Mônica, ele era um habitué. “Minha casa era em frente à loja dele”, relembra Itaguaçu. “Acompanhei vitrines e lançamentos, além de frequentar seus desfiles. Falar de Luiz de Freitas é falar de moda de vanguarda e de um estilo marcante no tempo em que a criação de moda aqui estava dando seus primeiros passos. O Brasil deve a ele a palavra ‘estilista’ em toda a sua dimensão.”

Itaguaçu Ferreira fez parte de um grupo seleto de marcas cariocas e paulistas que começou a viajar à Europa para pesquisar tendências e buscar inspiração. Antes disso, as novidades eram apresentadas em eventos como a Fenit (Feira Nacional da Indústria Têxtil), a primeira grande vitrine de moda no país, criada por Caio Alcântara Machado em 1958, com a Rhodia como a principal patrocinadora, e pelas revistas O Cruzeiro e Claudia Moda. Essa união de forças definiu os rumos do mercado nacional até 1970. 

Durante esse período, quase não havia uma discussão sobre autoria, cópia e inspiração. A grosso modo, a moda no mundo era ditada pela alta-costura francesa e o resto que se adaptasse. Nesses termos, o público-alvo era a classe média alta, que tinha capital para seguir as tendências e ler revistas, mas nem tanto para comprar roupas importadas, como a classe alta. A solução era consumir de lojas e costureiros locais, que, quase sempre, se mimetizavam pelo que vinha da França.

Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful, e Lampito, a Miss Divine.

Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful, e Lampito, a Miss Divine. Foto: Reprodução

“Tem uma diferença entre moda no Brasil, ou seja, usar ou produzir qualquer marca por aqui, e moda do Brasil, roupas que levam em conta a nossa identidade, como as feitas pelos pioneiros Zuzu Angel e Luiz de Freitas”, explica João Braga, estilista, professor e autor do livro História da moda no Brasil: das influências às autorreferências.

Nos anos 1980, João era estudante de belas-artes na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. A cidade sempre teve proximidade e atração pelo Rio de Janeiro, e um dos professores do João era proprietário de uma loja multimarcas, que vendia, entre outras grifes, peças da Mr. Wonderful. 

Naqueles tempos, João começava a fazer camisas tão coloridas e vibrantes quanto as de Luiz de Freitas. Anos mais tarde, por meio de conhecidos em comum, se tornaram amigos. A identificação entre as criações de Braga e Luiz era tão grande que ele ganhou um corner só seu nas lojas Mr. Wonderful do Rio de Janeiro e de São Paulo. 

Luiz de Freitas, o Mr. Wonderful

Luiz de Freitas. Foto: Reprodução

Se por um lado, o processo de abertura política lenta e gradual estava em curso, por outro, a partir de 1973, a crise internacional do petróleo, que fez o custo do barril subir 400% em três meses, causou impactos duradouros na economia nacional. Com o PIB em baixa, o Brasil entrou na década de 1980 com uma inflação de 230% ao ano, dívida externa elevada e indústria defasada. 

Para completar, no cenário que foi descrito como “1980, a década perdida”, ser homessexual virou um estigma devido ao surgimento da aids. O termo “peste gay” ganhou fama no mundo todo e diversos setores da sociedade civil consideraram que a doença era uma resposta da natureza – ou de Deus – aos “pecados” cometidos por essa população.

Um dos depoimentos mais lindos e completos sobre o Luiz de Freitas está em Nasci gay, livro digital escrito pelas jornalistas Ruth Joffily e Laura Oldenburg:  “Eu trabalhei diretamente pela causa gay: nos anos 1980, fundei um movimento chamado Fale Aids, que tinha sede no centro do Rio e não existe mais. Na época, estavam discutindo a questão das células T4 e o Governo só queria dar medicamentos o chamado coquetel – àqueles que estavam com as taxas muito baixas. Resolvi fundar o movimento justamente para poder doar os remédios. Era só isso o que nós fazíamos: distribuir o ‘coquetel’”. O livro nunca foi publicado por falta de interesse e apoio de algumas editoras contadas na época.

Carlos Tufvesson, estilista e militante do movimento LGBTQIA+ carioca, lembra de um desfile feito por Luiz de Freitas no Barra Shopping. “As apresentações eram sempre apoteóticas, mas nesse ele encerrou com 30 pessoas soropositivas na passarela homens, mulheres e crianças –, que entraram com uma faixa dizendo: ‘O Cocktail tem que ser para todos!’ Essa frase é muito representativa do humor do designer, com o trocadilho certeiro entre drink e coquetel para o combate ao HIV.” 

Loja da Mr. Wonderful, de Luiz de Freitas, em Lisboa.

Loja da Mr. Wonderful, de Luiz de Freitas, em Lisboa. Foto: Reprodução

Luiz de Freitas, um dos criativos mais revolucionários da moda nacional de sua época, era um homem preto e gay o que torna seu sucesso ainda mais relevante e honroso, diante das opressões e dos apagamentos sistêmicos de tais comunidades. Ao mesmo tempo, o fato ajuda a explicar seu sumiço e a falta de menção a seu trabalho.

“As pessoas negras não têm um lugar confortável no mundo da moda. A gente é a passadeira no camarim, a costureira. Quando ocupamos um lugar de destaque, é como se isso fosse a exceção”, fala Mônica Sampaio, diretora de criação e fundadora da marca Santa Resistência. Ela conta que o Luiz queria ser convidado para dar palestras, para ser uma inspiração às novas gerações. “Mas as pessoas o tornaram invisível. Pense no que representa ter uma loja de moda afro brasileira atendida por gente preta com turbante e roupas coloridas em Ipanema? Isso não é só moda. É política. Ele mostrou que negros podiam fazer moda.”

Hoje, Luiz vive recluso no bairro de Pau Grande, em Magé (RJ), onde nasceu, assim como Garrincha, craque esquecido ainda em vida depois de sua carreira de sucesso no futebol.

Este texto foi originalmente publicado na ELLE Men Brasil, volume 01, em julho de 2022.

 

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