O que o tema do MET Gala 2025 nos faz pensar sobre moda e raça no Brasil?

O dandismo foi reivindicado pela população negra no século 20, mas deu seus primeiros passos no Brasil após a abolição da escravatura. De Dapper Dan à Djavan, investigamos o impacto da diáspora africana na moda nacional.


met gala 2025
José do Patrocínio. Foto: Reprodução



O MET Gala 2025 será no dia 5 de maio e se concentrará nas construções políticas e estéticas do dandismo negro. O tom da discussão é tão atual que ela sequer soa inédita. Tudo isso já se ouviu – e pouco nos interessa o veredicto final sobre as intenções por trás do tema. Melhor é ampliar as lentes e refletir sobre o que esse assunto pode nos fazer pensar. E falando de Brasil, essa conversa ganha contornos ainda mais profundos.

Dandismo negro

Intitulada Superfine: Tailoring Black Style, a mostra será a primeira do museu dedicada exclusivamente à moda masculina desde Men in Skirts (2003). O ponto de partida é o conceito de dandismo negro, inspirado pelo livro Slaves to Fashion: Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity (2009), da escritora Monica Miller – ela é também cocuradora da exibição ao lado de Andrew Bolton, curador-chefe do Costume Intitute. A proposta é investigar como o vestuário e o estilo foram ferramentas de construção e afirmação das identidades negras na diáspora atlântica. 

met gala 2025 Retrato de Beau Brummel

Beau Brummel. Foto: Reprodução

Desde o fortalecimento do movimento Black Lives Matter, a partir de 2020, com a morte de George Floyd, o MET reconheceu a necessidade de incluir narrativas antes negligenciadas pela moda e adquiriu 150 peças de estilistas racializados.

Um dandy é alguém que se veste de forma extremamente elegante e refinada, que usa a moda, em especial a alfaiataria, como forma de se comunicar e fortalecer sua presença social no mundo. No início, o termo se aplicava apenas aos homens brancos europeus. A figura mais emblemática desse visual é Beau Brummell, personagem central da sociedade britânica no início do século 19 que se tornou influente na nobreza sem jamais ter possuído títulos ou heranças familiares. Foi tudo através das roupas que vestia.

met gala 2025 Dapper Dan ELLE

Dapper Dan na capa do #Volume1 da ELLE Men Brasil Foto: Tiago Chediak

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Só no século seguinte o dandismo foi reivindicado pela comunidade negra, reconfigurando códigos de poder historicamente negados. Nessa história toda, o estadunidense Dapper Dan é um ícone indiscutível. Estilista e símbolo do hip-hop, exala refinamento irretocável que vai das roupas ao tom de voz. O artista foi uma das capas do Volume 1 da ELLE Men Brasil, em 2022. 

Considerando o passado escravocrata do Brasil, relacionar o dandismo com uma figura negra de séculos passados beira o delírio. Não haviam espaços de nobreza, sequer frestas, onde homens pretos pudessem se encaixar. Isso só muda no período pós-abolicionista, quando a emancipação começa a engatinhar e o movimento negro se fortalece enquanto coletivo com voz ativa. 

“O dandismo negro é uma ferramenta de afirmação identitária que também está intimamente ligado à intelectualidade. Quando vamos buscar na história sobre nossos primeiros dandys negros, surgem nomes como José do Patrocínio e Luís Gama. Ambos jornalistas, escritores, oradores. E, claro, abolicionistas”, explica o pesquisador de moda e roteirista Felipe Vasconcelos. “Nos retratos e pinturas que temos deles, é possível reparar nas gravatas, nas cartolas bem feitas, no acabamento das lapelas.”

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Capa do álbum Galanga Livre, de Rincon Sapiência. Foto: Divulgação

Trazendo a conversa para o tempo presente, o rapper e poeta Rincon Sapiência é uma ótima ilustração dessa imagem de dandy. Ele é músico, estiloso e se veste bem, mas não é só isso. “Rincon carrega esse estilo no significado de seu sobrenome artístico. Ele é um grande pesquisador musical, que escreve e pesquisa sobre movimentos afrodiaspóricos. A intelectualidade caminha ao lado”, comenta Felipe. 

Racialização da moda brasileira

Desde o movimento abolicionista, o vestuário foi uma ferramenta para a reivindicação da humanidade e da dignidade do povo negro. No samba e no pagode, figuras como Cartola e Pixinguinha injetaram cor e leveza na alfaiataria tradicional – camisas estampadas, ternos em tons de rosa e verde. Nos anos seguintes, influências internacionais, como a dos Panteras Negras, ecoaram na formação de movimentos como o Black Rio, em diálogo direto com o soul e o funk dos Estados Unidos. 

“A cultura afro-brasileira impactou a moda masculina ao ampliar o uso de cores, estampas e cortes mais soltos, que valorizam diferentes tipos de corpos, algo comum em muitas culturas africanas. Ainda popularizou acessórios como lenços, colares, brincos, turbantes e chapéus, essenciais para a vaidade masculina em países como Nigéria e Congo”, fala Kathleen Miozzo, pesquisadora de moda e curadora à frente do portal Check The Tag

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Gilberto Gil na capa do #Volume19 da ELLE Brasil. Foto: Mar+Vin

A crescente presença de religiões de matriz africana também adensou essa construção: elementos como o branco ritualístico das sextas-feiras, as guias adaptadas em colares e pulseiras e o uso de turbantes passaram a dialogar com a alfaiataria formal, reafirmando origens e a espiritualidade em uma moda cada vez mais racializada.

Tecidos como o algodão e o linho, que carregam uma herança histórica e se adequam ao clima tropical, formam a base sobre a qual essas expressões se constroem, ganhando novas camadas de significado com tingimentos, desconstruções e artesanias. Estampas e tecidos africanos como o ankara e o kente capulana foram incorporados ao vocabulário da moda negra brasileira, misturando tradição e contemporaneidade.

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As padronagens coloridas e as silhuetas suntuosas são uma das heranças mais identificáveis, frutos da diáspora africana que logo ganhou interpretações locais. Vale lembrar que a sofisticação dos homens e mulheres negras nunca foi muito próxima de uma estética sóbria. As escolas de samba – com seus mestres elegantérrimos deslizando sobre oxfords cintilantes cobertos de cristais – que o digam. 

Mano Brown com suas correntes de ouro pesadas, Neguinho da Beija-Flor e seu terno azul royal, Djavan recitando as mais belas poesias de gravata bem ajustada, como um gentleman. Gilberto Gil no editorial que estrelou uma das seis capas do Volume 19 da ELLE Brasil. Todos eles, de certa forma, fazem parte do imenso coletivo que o MET contempla este ano. 

Produto interno

Na trajetória da moda brasileira, técnicas como o fuxico, o crochê, os bordados e as rendas, historicamente marginalizadas dentro de um imaginário elitista pautado por estéticas eurocentradas, vêm sendo resignificados por estilistas negros. Durante muito tempo, esses elementos foram considerados pouco elegantes”, diz Kathleen.

Com o fortalecimento das heranças afro-brasileiras, essas técnicas passam a habitar novos espaços de prestígio, como os desfiles da São Paulo Fashion Week. “Hoje, vejo o fuxico sendo usado de forma moderna no desfile de Weider Silveiro, o crochê e as rendas em João Pimenta”, completa. 

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Campanha da DOD Alfaiataria. Foto: Divulgação

O estilista Jubba Sam, à frente da DOD Alfaiataria, é outro nome que merece atenção. O nome da marca, aliás, são as iniciais da expressão ‘Dapper or Dandy’, uma leve provocação que questiona a linha tênue entre elegância e extravagância. 

A individualidade da negritude

Apesar de muitas experiências serem compartilhadas entre pessoas negras, existe um mito ainda enraizado que pressupõe certa homogeneização. Em Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, a escritora Lélia Gonzalez discute essa ideia através do conceito de “preconceito de marca”. Segundo ela, o traço mais forte dessa ideia consiste em enxergar pessoas negras como “gerais e indistintas”. Já bell hooks define esse fenômeno como “o outro genérico”, um ser sem nuances e peculiaridades. 

Trata-se de um assunto recorrente na literatura negra que se conecta bem ao tema da exposição desde ano do Costume Institute do MET. O espírito de autenticidade e a necessidade de se sofisticar, tão presentes no dandismo, são reafirmações constantes de identidade, de humanidade – é da natureza humana se singularizar. Somos todos feitos sob medida. 

O dress code do MET Gala 2025, Tailored to you (feito sob medida para você), se conecta ao tema da exposição, ao mesmo tempo que propõe uma leitura mais ampla. A alfaiataria pode ser o pensamento imediato, mas o ‘sob medida’ parece clamar um toque de autenticidade. Trazendo a pauta para o lado de cá, as cantoras Alcione e Elza Soares já são eternizadas pelas roupas suntuosas que sempre vestiram de maneira muito própria. Antes delas, a escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), inspirou toda uma geração de mulheres negras com sua elegância, tão potente quanto sua sensibilidade para a escrita.

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Luís Gama. Foto: Reprodução

Enxergar um povo inteiro como um bloco uniforme ressoa como um eco empoeirado de um tempo que já deveria ter sido superado. No entanto, um tema da atual edição do evento, tem viés quase educacional. “O negro do Rio de Janeiro não tem a mesma vivência do negro de Manaus. O negro britânico e o estadunidense compartilham experiências diversas. A moda pode ser um veículo muito forte para representar isso”, pontua Kathleen.

A importância de ações que incentivam o protagonismo negro na moda é imensa. E nem é preciso ir até Nova York, basta comparar as passarelas da SPFW antes e depois da instituição da cota racial, implementada em 2020. 

“Muitos criadores negros vêm de origens periféricas e enfrentam dificuldades como acesso à linha de crédito e matéria-prima, o que impacta diretamente a criatividade e a constância na produção de coleções”, argumenta Felipe. “O racismo ainda é uma barreira estrutural na moda brasileira, que se mostra pouco tolerante a expressões pretas. Quando há uma aparente aceitação, muitas vezes ocorre apropriação: marcas e eventos usam estéticas negras como vitrine para públicos majoritariamente brancos, sem realmente promover histórias negras.”

Para que novos ícones negros surjam na moda, é preciso que eles sejam vistos e também se vejam. É preciso redistribuir poder, crédito e narrativa. E isso, às vezes, tem que ser alavancado por quem já está em cima. 

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