Na semana de moda de Paris, nem toda armadura é para guerra
Elementos militares, detalhes utilitários e novas tecnologias marcam os desfiles da Dior e Balmain. E mais: Off-White apresenta o último desfile desenhado por Virgil Abloh e, na Saint Laurent, alguns dos melhores casacos da temporada.
Considerando o tempo que leva para produzir uma coleção, é um pouco forçado afirmar que as marcas participantes desta temporada tenham pensado em suas apresentações – e mais ainda em suas roupas – como uma resposta à guerra que se desenrola na Ucrânia. A conversinha de inconsciente coletivo, zeitgeist também não cola. Tabuleiro, peões e todas as outras peças desse jogo sangrento já estavam dados há um tempo, e ninguém parecia muito interessado. Ainda assim, a moda não existe num vácuo. Seu entendimento depende de contextos, de conexões e interpretações.
Isso ajuda a explicar por que tanta gente viu os coletes tipo armadura da Dior e da Balmain como um reflexo do clima bélico das últimas semanas. A ideia de roupa como proteção ganhou força nos últimos anos. Pandemia, crises sociais e mais um tanto de coisas fizeram com que buscássemos cada vez mais conforto e segurança no que vestimos. No entanto, trata-se de uma das funções mais básicas e primordiais do que colocamos sobre o corpo. Um pedaço de tecido pode servir para nos proteger do frio, da chuva, do vento, do sol, do atrito, do impacto, do olhar do outro, de julgamentos.
Acontece que, muitas vezes, o que parece fortaleza é, na verdade, prisão.
O cenário do desfile de inverno 2022 da Dior consistia em uma sala vermelha com retratos da série The Next Era, da artista Mariella Bettineschi, pendurados na parede. As imagens são reproduções de pinturas de mulheres na história da arte do século 17 ao 19, todas assinadas por homens (Rafael, Caravaggio, Vermeer e por aí vai). Na versão da italiana, porém, as personagens têm seus olhos recortados e/ou duplicados para questionar a visão que condicionou – e ainda condiciona – as mulheres.
Cenografia do desfile de inverno 2022, da Dior.Foto: Kristen Pelou
É um conceito bem próximo ao de Maria Grazia Chiuri, a primeira diretora de criação da Dior. Desde que assumiu o cargo, seu principal foco de trabalho tem sido o New Look. Apresentado por Christian Dior em 1947, logo após o fim Segunda Guerra Mundial, o visual foi uma proposta ousada de retomada do glamour, delicadeza e feminilidade. Só que de um ponto de vista e julgamento de um homem, fato que foi é alvo de muitas críticas, principalmente devido às formas algo limitantes daquela saia e jaqueta.
Chiuri quis mudar esse entendimento desde o início da sua jornada na marca. Aos poucos, suavizou a silhueta, soltou as estruturas que definiam a cintura, apertavam os bustos e prendiam os ombros. Também tirou volume e comprimento da saia, trouxe tecidos mais leves e confortáveis. Nada, porém, foi tão radical quanto o que vimos na terça-feira, 01.03. Pela primeira vez na história, as estruturas internas e os enchimentos da jaqueta Bar, parte essencial do New Look, vieram do lado de fora. Algumas partes lembram os acessórios de proteção de jogadores de futebol americano, com peitoral rígido e ombreiras. Outras se parecem air bags ou coletes infláveis.
Em busca de soluções tecnológicas para tornar as roupas femininas mais funcionais em relação aos corpos das mulheres, a Dior se juntou à empresa de inovação italiana D-Air Lab, especializada na fabricação de roupas e acessórios de proteção para alpinistas, esquiadores alpinos, motociclistas e astronautas. O resultado são tecidos que regulam temperatura, umidade e transpiração, estruturas infláveis alteram silhueta e mobilidade e ainda ajudam no controle térmico e sapatos com tiras antitorção.
Na passarela, muitas das inovações vieram carregadas de ares futuristas. Teve quem achasse exagero, mas se assim não fosse, o impacto não seria o mesmo. Muitas peças carregam as mesmas tecnologias internamente. Na moda, é aquela coisa: o que os olhos não vêem, o coração não sente. É improvável que muito do que se apresentou seja comercializado, ainda assim foi um passo corajoso, ainda mais vindo de uma estilista que há tempos parecia acomodada em sua zona de conforto.
Dior, inverno 2022.Foto: Divulgação
A parceria high-tech serve ainda como ponto de partida para uma série de roupas com apelo utilitário e esportivo. As formas mais amplas contrastam com outras coladas ao corpo, com destaque para o corset, item-chave da temporada. Os jeans e os os trench-coats também são propostas que devem agradar as consumidoras e ainda ajudam a reforçar a mudança estética, mais atual e menos fantasiosa, que a Chiuri vem trabalhando nas últimas coleções.
Na Balmain, release do desfile de inverno 2022 veio com um disclaimer do diretor de criação Olivier Rousteing: “As propostas desta coleção não foram desenhadas como uma resposta direta à recente e horrível invasão de nossos vizinhos, e eu nunca ousaria pensar em comparar o sofrimento que eles estão passando com os problemas que tive nas mídias sociais. Ainda assim, enquanto assistimos às notícias, minha equipe e eu temos em mente a mensagem desta coleção: unidos em solidariedade, podemos contar com o poder da esperança e da verdade para combater o ódio, as mentiras e a agressão.”
Rousteing é um dos estilistas mais ativos e entusiastas das redes sociais, e qualquer pessoa que vive minimamente conectado a elas sabe da necessidade cada vez mais excruciante de explicar o óbvio ou ser o mais literal possível. Depois de algumas estações debruçado sobre alfaiataria e interpretações de elementos esportivos e do streetwear, o diretor de criação volta aos vestidos-armaduras que marcaram suas primeiras coleções na casa. O timing, contudo, não ajudou muito.
Balmain, inverno 2022.Foto: Getty Images
Balmain, inverno 2022.Foto: Getty Image
Quase todos em branco, os looks chegam hiper decorados com matelassês, rendas, bordados, acolchoados e detalhes dourados. As peças mais rígidas se dividem com vestidos de renda curtos e uma espécie de legging e body de pegada futurista/espacial. Tem também um tanto de jeans, algumas jaquetas de tweed em tons pastel e com barras desfiadas e as botas acima do joelho, já uma tendência certa da estação. Contudo, deu vontade de ver um pouco mais de variedade na passarela.
Ah, e a ideia inicial era falar sobre a necessidade de proteção contra discursos de ódio e body shaming tão comuns nas redes sociais. O que pode explicar o samba de uma nota só dessa coleção. Afinal, quando nos sentimos ameaçados, é comum recorrermos ao porto-seguro do que já é conhecido, familiar e, as vezes, até garantido.
Na trilha da Balmain, vez ou outra, a voz de Grace Jones surgia entoando “this is my voice, my weapon of choice” (essa é minha voz, minha arma de escolha). O refrão faz sentido de diferentes maneiras para o que Rousteing quis dizer, mas simboliza perfeitamente o legado deixado por Virgil Abloh, falecido em novembro passado. Na segunda-feira, 28.02, a semana de moda de Paris começou em clima de homenagem com o último desfile da Off-White desenhado por ele.
A apresentação começa com a voz do cantor Pharrell Williams ecoando pela sala. No texto, uma entrevista dada em 2020, ele comenta sobre a indústria da música e como os artistas não “compartilham os códigos”. “Sei que não estou tendo essas experiências para glorificação ou prazer próprio, estou tendo porque preciso dividir os códigos”, diz o artista.
Off-White, inverno 2022.Foto: Divulgação
A fala diz muito sobre o jeito de fazer moda de Virgil e seu legado. Um dos primeiros estilistas negros a comandar uma marca de luxo, o designer fez muito mais do que levar o tal streetwear para as passarelas da alta moda. Com sua Off-White, recentemente adquirida pelo grupo LVMH, e também à frente do masculino da Louis Vuitton, Abloh mostrou outros caminhos possíveis na moda, compartilhou códigos, abriu portas.
O desfile foi dividido em duas partes. Na primeira, a coleção de inverno 2022, vimos os clássicos da moda de rua que ele fazia tão bem, desde calças cargo e até seus moletons largões, jaquetas puffer, botas robustas e acessórios como bonés repaginados. Como em suas últimas apresentações, há uma presença mais forte de alfaiataria e uma maior sofisticação no design e construção das peças.
Off-white.Foto: Divulgação
Da metade para o final, entra em cena a nova linha de sob-medida da Off-White, criada por Abloh e finalizada pela equipe da marca. Com saias volumosas de tule plissado combinadas a camisetas cropped, bordados mil e até um vestido de noiva, essa haute couture a la Virgil é carregada de significados – o principal deles, que você não precisa fazer parte do jogo para jogar.
Quem está acompanhando esta temporada com a gente já sabe que a alfaiataria é uma das principais tendências da estação. Blazers e casacos de ombros marcados são peça-chave do inverno 2022. Na Saint Laurent não é diferente. Na mais recente coleção são os casacos que roubam a cena durante quase todo o desfile. Eles aparecem em diferentes versões: blazers, jaquetas bomber, trench-coat, sobretudo, com corte arredondado nas costas sobrepostos a saias lânguidas e esguias, secos e próximos ao corpo. Quase sempre, vêm sobre justos vestidos drapeados e leggings, mas há também algumas das melhores propostas de ternos – principalmente a releitura do famoso Le Smoking, lançado por Yves Saint Laurent no inverno 1966.
Saint-Laurent, inverno 2022.Foto: Divulgação
Em 2022 comemora-se o aniversário de 60 anos do primeiro desfile do couturier com sua marca homônima. Para ocasião a fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent preparou não uma, mas seis exposições em alguns dos mais prestigiados museus parisienses. Devido à data, era de se esperar uma coleção-homenagem, carregada de história e reinterpretações No entanto – e muito espertamente –, o diretor de criação Anthony Vaccarello focou mais na atitude e valores da maison do que na reedição de peças do arquivo.
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