Em entrevista, Natasha Soares fala como o Pretos na Moda está mudando a SPFW

Tratado do coletivo firmou parceria com o evento ao estipular que, no mínimo, metade dos castings sejam compostos por modelos negras, indígenas ou asiáticas. Em conversa exclusiva com a ELLE, sua co-fundadora fala mais sobre os impactos e desafios da iniciativa.


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A mais recente edição da São Paulo Fashion Week, que aconteceu entre os dias 23 a 27 de junho, com 43 marcas no line-up oficial, foi histórica. Pela primeira vez, nos 26 anos da semana de moda, 61% dos modelos (118 do total de 193) eram negros, indígenas ou asiáticos. Os dados são do coletivo Pretos na Moda, grande responsável pela mudança.


É que desde a SPFW N50, em novembro de 2020, um tratado articulado pelo coletivo está em vigor no evento. Ele propõe que, no mínimo, 50% dos castings das grifes participantes sejam compostos por pessoas negras, indígenas ou asiáticas. Já em sua primeira vigência na Semana, a participação de modelos não-brancos teve um crescimento expressivo.

Contudo, os números se explicam também pelo formato online do evento e equipe reduzida. Neste ano, por exemplo, nenhuma marca tinha mais do que 16 modelos – e ainda assim, segundo o Pretos na Moda, duas delas não cumpriram as estipulações do tratado. Foram elas: Neith Nyer e Walério Araújo.

Contados pela reportagem, Walério afirmou que três modelos de seu casting eram profissionais e as outras participações eram de figuras públicas e artistas. Francisco Terra, da Neith Nyer, respondeu que a marca fez uma participação no evento com um desfile da Paris Fashion Week, onde o tratado não lhes foi imposto. E acrescentou: ”Dos 25 perfis, apenas quatro eram caucasianos. A diversidade racial na França passa também pelas minorias árabes, indianas, leste-europeias, e latinas”.

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Imagem: Elle Brasil com dados de Pretos na Moda.

As marcas Carol Bassi e Rocio Canvas desfilaram com apenas uma modelo, analisada pelo coletivo como branca, mas não foram enquadradas como descumpridoras. Isso porque, após o evento, foi acordado entre a SPFW e o Pretos na Moda que as grifes com casting de uma só pessoa ficam livres para optar ou não por um modelo racializado.

Rocio Canvas não respondeu o pedido de entrevista da reportagem. Em matéria sobre sua estreia na semana de moda, Carol Bassi relatou à ELLE que o vídeo da coleção já estava finalizado quando o convite para a participação nessa edição foi formalizado. Segundo a etiqueta, foi informado a SPFW que não haveria tempo nem meios para produzir de um novo material. O filme em questão foi, então, enviado à organização da fashion week e aprovado.

A ELLE teve acesso ao Manual das Grifes, enviado pela SPFW para cada uma das marcas participantes. O documento deve ser assinado por um responsável das mesmas. Nele, a sessão ”CASTING” estipula que ”a definição, negociação, contratação e pagamento do casting de modelos de cada desfile é de responsabilidade exclusiva da GRIFE, não tendo o SPFW participação na escolha/contratação. Independentemente da liberdade de definição do casting acima, é obrigatório que a GRIFE mantenha um mínimo de 50% (cinquenta por cento) de modelos entre negros, afrodescendentes, asiáticos e/ou indígenas, do total dos modelos participantes em seu desfile/material audiovisual. Caso a grife não atenda essa determinação, a mesma não fará mais parte do line-up do SPFW.”

Contatada repetidas vezes por e-mail para comentar os casos acima, a SPFW não retornou à reportagem e não respondeu se as marcas descumpridoras do tratado serão impedidas de desfilar na próxima edição, como indica o manual.

Histórico embranquecido

Ao olhar para o passado do evento, vemos como as dinâmicas da branquitude estão presentes durante seus 26 anos de existência. Uma reportagem da Folha de SP, de 2008, apontou que dos 344 modelos que desfilaram na edição daquele ano, apenas oito 2,3% (oito do total) eram negros. Um ano depois, em 2009, a SPFW assinou junto ao Ministério Público um termo de ajustamento de conduta, dizendo que se comprometeria em pedir às marcas um casting no mínimo 10% racializado com pessoas negras, afrodescendentes e indígenas.

Dez anos depois, o número aumentou minimamente. Uma matéria do mesmo veículo analisou que, entre os 976 looks desfilados em 2018, apenas 28% (280 do total) foram vestidos por pessoas negras. Tais números não acompanham a realidade brasileira, em que os pretos e pardos representam 56% da população, segundo o IBGE.

Vale destacar ainda que o line-up segue a realidade dos castings. Na penúltima edição do evento, a N50, apenas 9,9% das marcas que desfilaram (três de 31) eram de pessoas negras ou indígenas. Já na N51, 34% (14 de 43) grifes são geridas por pessoas pretas ou pardas. Um dos fatores que explica o salto é a estreia do Projeto Sankofa, que inseriu oito novas marcas racializadas no evento, e está com uma campanha de financiamento coletivo em aberto para continuar existindo.

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Naya Violeta, marca estreante na última SPFW por meio do Projeto Sankofa.Foto: Nathalia Takeuchi e Andreia Takeuchi

Para compreender o impacto de tais projetos, conversamos com Natasha Soares, co-fundadora e atual responsável pelo coletivo Pretos na Moda.

Quem constitui o Pretos na Moda atualmente? Além das pessoas negras, fazem parte também pessoas indígenas e asiáticas?

Oficialmente, somos eu e o Rodrigo Ladeira, fotógrafo. Tive sua ajuda durante o último mês. Algumas pessoas são ativas em períodos específicos, mas nós não temos indígenas e asiáticos. Não é oposição, só não surgiu a ocasião. Pensado foi, mas sou uma só e não dou conta de tudo. Entendemos que o Pretos se propõe a racializar a moda, mas que isso não se restringe apenas ao nosso grupo (de pessoas negras). Temos a intenção de ter mais pessoas e que elas sejam de fato ativas, que possam prestar esse apoio real. Sejam jornalistas, influenciadores de moda, stylists, fotógrafos, maquiadores… Nossa intenção é ter um tratado para todas as áreas. Aos poucos, vamos trazendo mais pessoas. Estamos abertos a parcerias.

Existe algum apoio por parte da SPFW para o Pretos na Moda?

Nenhum, e nenhuma remuneração. É um trabalho que faço pela comunidade.

Como e por quem são feitas as avaliações dos castings das marcas, para avaliar se houve o cumprimento do tratado?

Existe uma pré-avaliação, antes do evento, feita internamente por Luiz Henrique Costa, vinculado à SPFW. Acredito que existam outras pessoas com ele nesse trabalho. Depois do evento, o Pretos na Moda faz outra avaliação. Na última temporada (em novembro de 2020), apenas uma apresentação não cumpriu, que foi a de Alexandre Herchcovitch (em comemoração aos 50 anos do estilista). Buscamos entender o porquê, e, na época, eles haviam colocado no Manual que pessoas com segundo grau de consanguinidade podiam se considerar negras. Explicamos que não é assim. Já nesta mais recente edição, houve marcas que realmente não cumpriram. Uma coisa que trouxemos à tona, especificamente para as marcas, é que se você fala de contratar pessoas negras, por que contratar só pessoas com passabilidade? A intenção é racializar a moda e trazer o impacto de modelos pretos, então vamos contratar todos os tipos de modelos negros, retintos, de pele clara.

Você acredita que a volta do evento presencial vai mudar a dinâmica do tratado, por conta do volume maior de modelos nos desfiles?

Acho que será uma dinâmica mais complicada, porém será mais fácil de averiguar, já que teremos mais pessoas olhando e observando presencialmente. Também já teremos completado um ano de tratado. Acredito que, nessa volta, possamos chegar mais próximos de uma moda inclusiva na passarela. Claro que haverão imprevistos e será diferente do que experienciamos até aqui, já que o tratado foi aplicado no meio digital e de forma reduzida. No presencial, temos um volume grande de modelos, e existe o risco de não ser possível verificar tudo em tempo real.

Como vocês avaliam o impacto da aplicação do tratado? Percebem alguma diferença com a edição anterior, de novembro de 2020?

Acredito que houve uma mudança enorme, que não temos dimensão ainda por causa da falta do presencial. Por serem uma ou duas modelos, agora só entendemos o impacto visual, não o financeiro. Achamos incrível que imageticamente é dessa forma, mas queremos atingir o mercado, inserir mais modelos pretos nas passarelas e provocar mais demanda por seus trabalhos. A intenção era criar esse alívio financeiro e também aumentar a visibilidade e material para que eles possam criar uma carreira internacional. Se colocamos 20 modelos na passarela e dez são negros, a probabilidade deles trabalharem em um lookbook ou campanha é maior, pois já serão conhecidos. Essa é a esperança e a meta. O tratado está vigente em duas temporadas, mas elas foram distintas. Podemos ter como base que esse foi um piloto e, nas próximas edições presenciais, vamos conseguir medir melhor. É a reeducação de todo um sistema. E muitos são relutantes e resistentes. Mas levando em conta que tínhamos 10% de modelos racializados antigamente e, neste ano, a maioria cumpriu o tratado, vemos uma evolução muito grande.

Por fim, como vocês avaliam a responsabilidade da SPFW, além das marcas, em garantir o cumprimento do tratado?

A responsabilidade é totalmente deles. No final, quem assinou foi a SPFW. Quem tem que se certificar é o evento. A marca está na plataforma e a plataforma tem essa regra. Eu não tenho tanto braço quanto parece, quando algo é mal interpretado, chega até mim, mas a responsabilidade não é minha. Tenho responsabilidade de criar a cláusula, mas implementá-la é com o evento.

Este texto foi atualizado em 10 de agosto de 2021.

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