Normando e suas raízes modernistas do Pará

Marca de Marco Normando e Emídio Contente olha para a iconografia amazônica para criar uma moda sofisticada, responsável e 100% brasileira.


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Foto: Thiago Santos



CONTEÚDO APRESENTADO POR SOU DE ALGODÃO

Faz quase 10 anos que o estilista Marco Normando deixou Belém, cidade onde nasceu e cresceu, para trabalhar em São Paulo. A mudança se deu devido a um convite de Alexandre Herchcovitch para uma vaga na equipe de estilo de sua marca homônima. “Não pensei duas vezes, larguei tudo que tinha e vim”, diz ele. A capital paraense, contudo, nunca o deixou. Nem o fotógrafo Emídio Contente, seu namorado e, hoje, sócio.

No ano passado, o casal lançou a Normando, grife de slow fashion que tem como um de seus principais pilares a iconografia nacional, principalmente aquela da região da Amazônia. Na coleção de estreia, por exemplo, havia uma camisa verde com corte circular inspirada na vitória-régia, um vestido da mesma cor com um simples traço sinuoso, como o desenho de um rio entre a mata, e roupas inspiradas nas vestes de comunidades ribeirinhas de Belém, a partir de fotos de Elza Lima dos anos 1990 e 1980.

Na base disso tudo, tem a predileção por tecidos naturais, como linho e algodão; a estética e conceito da escola modernista brasileira; uma alfaiataria primorosa de aparência simples, mas construção complexa e a uma visão clara do caminho, estilo e estética a serem seguidos.

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Foto: Emídio Contente

O embrião da Normando surgiu em meados de 2016, durante um edital do governo paraense, chamado SEIVA, do qual Marco fez parte. “Tinha saído do Alexandre [Herchcovitch] e veio aquela pergunta: o que eu vou fazer agora?” relembra. “Não conseguia me ver como um estilista de uma grande empresa, preferia a estrutura e funcionamento de ateliê. Comecei a pensar em projetos autorais e achei esse edital. Me inscrevi, fui aceito e decidi fazer um projeto sobre a Fordlândia.”

Fordlândia é uma cidade fantasma às margens do rio Tapajós, que ficou conhecida após Henry Ford comprar vastas áreas de terra para exploração e produção de borracha para indústria automobilística. O projeto, amplamente apoiado pelo governo, foi aprovado pela Assembleia Legislativa em 1927 e encerrado em 1945, deixando um rastro de abandono social e econômico.

“Fiquei duas semanas lá, conversei com os habitantes, conhecendo suas histórias, fazendo esses recortes e conexões com o presente. Acho muito problemático falar de um lugar sem o conhecer, sem conhecer quem vive e viveu ali. Essa pesquisa foi fundamental no meu trabalho, no meu entendimento de Brasil.”

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Fotos: Thiago Santos

O projeto tinha como tema central o upcycling. Marco pesquisou peças dos anos 1970 para baixo em brechós de São Paulo e Belém, com o olhar voltado para elementos que apresentassem algum vestígio de história. “Tinham duas roupas de batismo dos anos 1940, cheia de bordados, que desfiz e apliquei em vestidos plissados”, conta.

A ideia era relacionar esses itens aos relatos e fotografias que encontrou com os moradores de Fordlândia. “Durante os estudos, percebi uma relação entre o ato de usar alguma coisa e depois jogá-la fora. Quis reforçar a ideia de como as roupas podem ter histórias para serem contadas e reaproveitadas.”

Marco atribui sua veia criativa à mãe. Ele era advogada, mas pintava, desenhava e esculpia no tempo livre. No entanto, foi sua avó quem despertou seu interesse por moda. Quando ele tinha entre 11 e 12 anos, sua mãe sofreu um acidente de carro e a família precisou mudar temporariamente para a casa da avó. “Ela costurava muito e passávamos muito tempo juntos fazendo isso. Foi o meu primeiro contato com a matéria-prima, com corte e modelagem”, fala o estilista.

Apesar do gosto pelo ofício, foram as imagens que mais lhe encantaram num primeiro momento. “Lia e consumia muitas revistas, lembro de guardar dinheiro para comprar a ELLE, a FFW Mag e outros títulos”, conta. Na época, sem nem saber direito o que era a profissão, vislumbrava uma carreira como diretor de arte. Foi só durante o curso de moda, na Unama (Universidade da Amazônia, que se encontrou como estilista. Ainda assim, o poder imagético continuou forte em seu processo criativo e também nos negócios.

Uma rápida visita ao feed da Normando no Instagram dá conta de mostrar o potencial de uma boa curadoria visual. É por meio dessa seleção que a essência da marca é comunicada de maneira bastante eficaz. Não fica difícil entender como uma escultura de Victor Brecheret, um painel de azulejos de Candido Portinari, um jardim de Roberto Burle Marx ou um móvel de Joaquim Tenreiro encontram relação com a alfaiataria leve da marca. Nem como as cores das paisagens amazônicas falam da fauna e flora brasileira de forma indireta. Ou como as pinturas de Júlia Milaré acabaram virando estampas. “Somos muito metódicos com isso, porque queremos estabelecer uma conexão, construir uma narrativa, e as roupas funcionam da mesma forma”, explica.

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Foto: Thiago Santos

Imagem tem disso mesmo, mexe com memórias e referências que a gente nem sabia que tinha. Marco sempre foi muito impactado por elas. “Não à toa namoro um fotógrafo”, brinca. Segundo ele, imagens são essenciais na hora de construir uma peça. A própria idealização da Normando foi assim. “Comecei a pensar em símbolos que, para mim, são icônicos de Belém ou do Pará.” A partir daí, vem a parte prática.

A primeira etapa é descobrir o que há disponível no mercado em termos de matéria-prima. A marca tem como princípio só trabalhar com tecidos de impacto reduzido na natureza. Na mais recente coleção, a Vol.2, cerca de 80% dos materiais utilizados são reciclados ou reutilizados do estoque.

Depois vem a construção, um processo literalmente matemático e de muita experimentação. A camisa redonda em forma de vitória-régia demorou duas semanas só para resolver a modelagem. “Ela é composta de 13 nervuras, mas, para chegar nesse número, foi preciso muito trabalho”, revela Marco. “No início, estávamos usando 20, mas elas encolhem de forma assimétrica com as costuras e não tem como fazer o encaixe. Tivemos de entender o espaçamento, o tamanho de cada uma para que cada pedaço do molde se juntasse perfeitamente.”

“Esse processo foi algo que trabalhei muito com o Alexandre [Herchcovitch]”, fala o estilista. Logo que se formou pela Unama, Marco participou do Movimento HotSpot, uma espécie de concursos de novos talentos. Ele foi finalista, mas não levou o prêmio de estilismo. Porém, ao retornar a Belém, recebeu uma mensagem de Herchcovitch, com um convite para integrar sua equipe.

Ficou lá de 2013 até 2016, mas o espírito e gosto pelo trabalho de ateliê nunca mais o abandonou. “Meu pensamento é de slow fashion. Prefiro fazer uma coleção menor e pensar muito bem nas peças, na construção. Não é algo barato, ainda mais no mercado de moda no Brasil, com as demandas do varejo. Mas é o caminho que encontrei e que funciona para mim.”

Tem ainda a vontade colaborar com artesãos e artistas da região Amazônica, porém a pandemia impediu a realização dessa ideia por ora – “seria até irresponsável de nossa parte”, comenta o estilista. Enquanto as viagens e visitas não são 100% seguras, Marco aproveitou para iniciar um projeto de mapeamento desses criativos e profissionais paraenses. O objetivo é facilitar o acesso e conhecimento à arte e ao ofício dessas pessoas. Mais um capítulo numa história concisa e com muita verdade, que não deve tardar a se realizar assim que possível.

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Fotos: Thiago Santos

Fotos: Thiago Santos | Beleza: Helder Rodrigues | Pinturas Júlia Milaré | Modelos: Larissa Almeida e Luan Schulz

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