Ponto de resistência
Esqueça os vestidos de festa. Pelo menos, por agora. Essas pessoas usam o bordado de forma diferente: como memória, resistência e denúncia.
Não faz muito tempo, bordado era visto como algo datado, tradicionalista, regionalista ou restrito ao mundo das festas. E não raramente, seu valor como arte e técnica artesanal só era reconhecido quando imerso num mundo de luxo, como é o caso de alguns ateliês de alta-costura. Mas aí veio a pandemia, e um movimento que já vinha tomando força há tempos se intensificou: as manualidades têxteis, com destaque para o ato de bordar.
Nos últimos anos, acompanhamos o crescimento das atividades manuais como forma de apontar problemas sociais, expressar ideais, identidades, ancestralidades e posicionamentos políticos. As práticas vão muito além do terapêutico, como já provou Zuzu Angel (1921-1976). A estilista mineira é um exemplo clássico de quem buscou na moda e nos bordados uma forma de sinalizar o terror da ditadura brasileira e a melancolia de ter perdido seu filho para ela.
Atualmente, o viés de resistência da técnica pode ser encontrado, por exemplo, nos coletivos Linhas de Sampa, um grupo que se descreve como ”gente de esquerda, que borda política e está nas lutas por direitos”, e o Linhas do Horizonte, que realiza um trabalho semelhante em Minas Gerais e foi inspiração para o primeiro. Existe também a possibilidade de empoderamento. Isso foi o que motivou as designers Olivia Silveira, Marina Bittencourt e Ana Luiza Nigri, a criarem o Projeto Fio. Atualmente, Letícia Ozorio integra a equipe.
O Projeto, fundado em 2017 usa do bordado e da arteterapia como forma de reinserção de mulheres marginalizadas pela sociedade, nas comunidades da Maré e Tijuquinha, no Rio de Janeiro. A escolha de ensinar a bordar não foi ao acaso: é uma forma de preservar essa manualidade e ir na contramão do hiperconsumo e hiperprodução da indústria, já que o ofício não é feito em larga escala e exige tempo.
Look e itens de decoração do Projeto Fio, que capacita mulheres bordadeiras nas comunidades da Maré e Tijuquinha (RJ). Foto: Divulgação/Projeto Fio
Porém, mais do que aprender a bordar, as mulheres aprendem a se descobrir. ”A gente entende que o bordado surge como uma ferramenta para elas contarem suas histórias, em uma linguagem pessoal e, num segundo momento, como uma nova fonte de renda”, compartilha Olivia.
A marca própria do projeto comercializa roupas e itens de decoração com o que é produzido por essas mulheres, que somam 15 atualmente. Todo o mix de produtos é feito de forma coletiva. O diferencial das peças, segundo Olivia, é combinar o ancestral com o moderno. ”A gente ama os motivos clássicos, mas a tentativa é trazer essa técnica com uma linguagem atual.” No site da iniciativa é possível conhecer cada uma das bordadeiras.
Já GiuCouture, da jornalista Giuliana Mesquita, começou com um imprevisto em 2016. O presente de aniversário de um amigo atrasou e, mesmo sem saber bordar muito bem, decidiu costurar ela mesma uma camiseta com a certeza do desejo de presenteá-lo com algo especial. Deu certo. Tempos depois, ela fez uma nova peça com a palavra ”feminist”, dessa vez para si mesma. O item fez tanto sucesso nas redes que começaram a chegar outros pedidos de peças com frases bordadas exclusivamente.
Giuliana acredita que a técnica passa por reinvenções. Se antes o bordado era considerado algo muito tradicional, isso ficou no passado. ”Acho que muitas mulheres pegaram essa prática para subverter, para mostrar que não só algo clássico e antigo, mas legal e com posicionamento‘‘. No seu caso, ela afirma que a marca é ”de esquerda e feminista” e nega pedidos que não estejam alinhados ao seu espectro politico – à exemplo do pedido por uma camiseta com a palavra ”bolsonariana.”
Para além de iniciativas independentes e de pequeno porte, com funcionamento sob demanda ou em pequena escala, grandes nomes do varejo também vêm se debruçando sobre o mundo dos bordados por meio de parcerias. Exemplos recentes são da FARM e Youcom que se juntaram ao Clube do Bordado, uma plataforma de ensino da técnica e canal no Youtube.
Olivia analisa que ”resgatar essas técnicas é sempre bem vindo”, mas diz sentir falta de ver o que está por trás. ”O artesanato vem de um artesão, então vamos falar sobre eles”, aponta. A classe de artesãos e artesãs no Brasil é grande: são 8,5 milhões de pessoas que movimentam por volta de 7% do PIB nacional. A maior parte desse número são mulheres. Contudo, esse tipo de trabalho ainda é bastante subjugado. ”No país, perdemos parte da nossa cultura e história, e tentamos resgatar. Se soubéssemos mais sobre isso, não estaríamos onde estamos. Ao desvalorizarmos nossa história, a gente desvaloriza nossa cultura”, diz a designer.
Mas bordado é político?
Renata Dania defende que sim. Ela é sócia do Clube do Bordado, plataforma que reúne tutoriais e conversas nas mais de sete milhões de visualizações no YouTube. Tudo começou em 2013, quando ela e outras amigas se reuniam para bordar e fazer algo com as próprias mãos. Depois, o grupo passou a compartilhar suas criações nas mídias sociais e o projeto cresceu tornando-se essa grande rede de bordadeiras, de norte a sul do Brasil e também pelo mundo.
Renata Dania, Laís de Souza, Vanessa Israel, Camila Lopes e Marina Dini, sócio-fundadoras do Clube do Bordado Foto: Acervo pessoal
Uma das seguidoras do Clube do Bordado é Mitti Mendonça. Radicada em Porto Alegre, ela, que veio de uma geração de bordadeiras de carnaval, é uma artista têxtil que buscou na ancestralidade sua força para criar o projeto Mão Negra. Mitti diz que sempre fala da técnica em referência ao Sankofa, um dos símbolos africanos adinkras que significa olhar para o passado e resgatar as coisas importantes para o agora. Ela resgata isso bordando em fotografias e álbuns de família, mesclando memória e afetividade para construir uma outra narrativa e se fortalecer enquanto mulher negra.
Mitti defende que o bordado é arte, sim! E, na sua visão, ”a arte é uma manifestação política, então é o lugar onde nós, artistas, conseguimos expandir nosso posicionamento”. Dessa forma, a técnica pode ser também um documento histórico.
Assim como, hoje, podemos olhar para trás e ver o trabalho de Zuzu, talvez daqui algumas décadas, poderemos analisar a história por meio dos bordados desses grupos. É por isso que Renata diz sempre incentivar as bordadeiras a assinarem seus trabalhos. ”Ninguém faz uma pintura e não assina. É algo relativo ao legado e ao registro daquela obra. Principalmente nesse momento que estamos vivendo, é importante registrar os acontecimentos”, explica.
Bordado de Mitti Mendonça, que representa uma de suas tias. Foto: Acervo pessoal
Esses acontecimentos podem ser bordados por qualquer pessoa, de qualquer grupo, a partir de qualquer posição política e visão de mundo. Porém, a maioria das mulheres que usam a técnica artesanal como expressão de ideais estão alinhadas à ala progressista – bastante ampla, vale ressaltar. Vemos muitos bordados sobre feminismo, antirracismo e direitos humanos, temas que circundam o debate desse espectro. Renata acredita que isso ocorre porque, num geral, o incentivo despendido às manifestações artísticas diversas é menor pelos grupos de viés oposto. “Governos com pensamentos e atitudes reacionárias não têm histórico de fomento à arte e cultura, justamente pelo fato de que nessas áreas é comum o questionamento de decisões e posicionamentos políticos”, aponta.
”Acredito que o bordado tem uma tarefa transgressora”, diz Daiane Hohn, uma das coordenadoras nacionais do Movimento Atingidos por Barragens (MAB). A organização reivindica um projeto energético popular e a luta pelos direitos das vítimas de construções de usinas hidrelétricas. O bordado entra nessa história por meio do Clube de Mulheres do movimento, grupo que direciona ações para as demandas feministas.
A inspiração é a técnica de bordado arpillera, utilizada por mulheres bordadeiras do Chile no período da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). As arpilleras bordavam em roupas de desaparecidos políticos e entregavam as peças para organizações parceiras, que as enviavam para fora do país. Era uma forma de denúncia e resistência às atrocidades do período ditatorial.No MAB, as atingidas usam disso como ”uma forma de expressarem o impacto das barragens em suas vidas”, diz Daiane. Essas mulheres fazem parte das mais de um milhão de pessoas expulsas de suas terras. De cada 100 famílias atingidas por essas obras, 70 delas têm seus direitos negados pelas empresas construtoras. A motivação para bordar é denunciar estas desigualdades, e muitas vezes, ”as peças falam o que as mulheres não sabem expressar em palavras”, continua a coordenadora, que completa duas décadas no movimento.
Bordado produzido nos grupos do MAB, com a técnica das arpilleras Foto: Acervo pessoal/MAB
O tema dos bordados varia de acordo com a conjuntura do país. São mulheres de 19 estados do país, que se reúnem localmente e redescobrem sua força singular, a partir do coletivo. ”Nossos encontros são um espaço onde elas se sentem potentes e protagonistas”, diz Daiane. Depois, os bordados ficam em espaços públicos para fomentar o debate sobre os temas ali retratados. Alguns já foram expostos no Memorial da América Latina e demais galerias. O projeto, iniciado em 2013, virou até um documentário, chamado de Arpilleras: bordando a resistência. Lançado em 2017, foi premiado como melhor longa no 44° Festival SESC Melhores Filmes e exibido internacionalmente.
A potência dos bordados políticos está em anunciar um mundo diferente. Expressar ideias com fios e linhas é uma forma de não se silenciar diante das atrocidades de um Brasil que, ontem, chegou à marca de 414 mil mortos de uma doença para qual existe vacina. No fim das constas, para Daiane, o ato de bordar dessa maneira é mais uma ”forma de traduzir o projeto de sociedade que a gente quer e a humanidade que a gente precisa.”
Para conhecer: cinco perfis que usam o bordado como expressão política
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