O desfile em vídeo ainda é um desfile?
A tradução da experiência de moda ao vivo para o digital está ficando cada vez mais refinada temporada após temporada. No futuro, ela poderá ser uma ferramenta crucial para que uma marca mantenha a sua relevância.
Quando a pandemia do novo coronavírus começou, estávamos em plena temporada internacional de moda. Naquele primeiríssimo momento, ninguém sabia muito bem o que fazer. Houve quem fechou os olhos e desfilou mesmo assim, tiveram marcas que cancelaram suas apresentações em cima da hora, outros adaptaram na gambiarra uma experiência digital… Desde então, muito tempo se passou e a ideia de um desfile em vídeo deixou de ser uma solução para se tornar via de regra durante o distanciamento social. E é aí que perguntas interessantes começam a pipocar.
Pense bem, quando se fala em desfile, imediatamente vem à mente a imagem de uma passarela, não é mesmo? Uma sala escura, os convidados já sentados (bem apertadinhos) na fila A, um backstage lotado e agitado… Tudo em volta daquela linha reta em que uma passeata de modelos, em breve, caminhará. Há algo de teatral no desfile ao vivo e, por vezes, é exatamente esse elemento que transforma uma exposição de roupas para temporada em uma experiência mágica, escapista ou transformadora.
Quando se fala em desfile virtual, que passarela é essa? Existe uma fila A? Por onde entra no backstage? Em suma: como trazer para esse novo suporte a teatralidade que, supostamente, só se constrói no presencial?
Ninguém tem a resposta exata para essas perguntas, mas Miuccia Prada e Raf Simons parecem estar chegando em algum lugar mais sólido a partir dessas indagações que, constantemente, afligem ambos os criativos desde o início de sua parceria. “Eu acho que mesmo quando as coisas voltarem ao normal, vamos ter que fazer as duas coisas: tanto o desfile físico quanto o digital”, declarou a herdeira da etiqueta que leva seu nome na mesa redonda (igualmente virtual) que acontece logo após cada desfile da Prada.
Teatro em vídeo não é cinema
Já tentou assistir a uma peça de teatro filmada? Salvo raras exceções – haja visto a adaptação do musical Hamilton, de Lin-Manuel Miranda, para a Disney+ –, não costuma dar muito certo. Mas e se, ao invés de ser uma adaptação ou uma versão de uma apresentação ao vivo, o desfile em vídeo, fosse então, um produto sozinho, independente, único. Cinema. Em parte, é por isso que o inverno 2021 da Prada foi tão interessante. A outra parte fica a cargo do design ousado e inteligente da dupla cuja sintonia só cresce com o passar das coleções.
Prada, Inverno 2021
Prada
O vídeo inteiro é pensado para quem assiste de casa. A passarela não é mais uma linha reta, é uma tela 2D em que tudo pode acontecer. Por isso, nesse caso, foi tão fundamental a cenografia assinada por Rem Koolhaas. Com suas paredes e pisos ora felpudos, ora marmorizados, ele conseguiu ampliar o efeito tátil da coleção, ainda que texturas sejam algo tão distante de todos nós neste momento.
Outro trunfo do desfile-vídeo da Prada é o fato de terem conseguido lançar mão de estratégias cinematográficas sem permitir que elas se sobrepusessem ao protagonismo das roupas. Ainda é um “fashion show”, um espetáculo de moda, e não um filme cujo roteiro é tão central que as peças tornam-se apenas figurino de uma trama maior. Fora isso, há um respeito pelo formato do desfile tradicional de modo que seus pilares de sentido foram mantidos. No limite, o desfile surgiu para que a roupa pudesse ser vista viva e em movimento e isso segue no caso da apresentação da Prada. As modelos andam por entre os cômodos e preservam, passo a passo, a função primordial deste tipo de apresentação.
É natural da moda a ânsia pela inovação. E, pelo mesmo motivo, é natural que, na moda, apareçam versões muito rústicas do que, no futuro, serão modelos mais consolidados. A grande sacada de Raf e Miuccia foi saber a hora de dizer que não se sabe de nada.
Parece uma surra de obviedades, mas, por incrível que pareça, por vezes, nos deparamos com desfiles-virtuais que são qualquer coisa menos um desfile. Modelos paradas com câmeras giratórias, clipes de música com roupas interessantes, lookbooks duros com movimentação leve, programas de televisão mal resolvidos, curta-metragens com roteiros fantásticos que deixam a coleção em segundo plano…
É natural da moda a ânsia pela inovação. E, pelo mesmo motivo, é natural que, na moda, apareçam versões muito rústicas do que, no futuro, serão modelos mais consolidados. A grande sacada de Raf e Miuccia foi saber a hora de dizer que não se sabe de nada. A primeira coleção assinada pela dupla foi um grande ensaio que agradou a uns, decepcionou outros… Da segunda (masculino, inverno 2021) em diante, a promessa de chegarmos à potência máxima deste icônico duo está cada vez mais próxima de se realizar. Mas, antes de criar uma obra-prima, eles precisavam entender em que tela estavam pintando.
Em tempo, vale uma menção honrosa ao desfile masculino (inverno 2021) da Louis Vuitton de Virgil Abloh. Apostando nas ferramentas do cinema sem se deixar seduzir completamente por elas, o estilista conseguiu construir uma apresentação poderosa, cheia de parafernalha (tinha atuação, tinha roteiro, tinha dança, tinha cenário, tinha performance) em que, ainda assim, era a roupa que ligava todos os pontos, era ela que estava no centro do palco, no meio da passarela.
Men’s Fall-Winter 2021 Fashion Show | LOUIS VUITTON
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