O que não te contaram sobre a parceria entre Neriage e Leonilson

A diretora criativa Rafaella Caniello foi a primeira a conseguir um licenciamento para explorar as obras do artistas cearense. Para além das interpretações, a colaboração entre Neriage e Leonilson expressa valores raros na moda de hoje.


Neriage e Leonislon: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.
Foto: Agência Fotosite



A colaboração entre Neriage e Leonilson foi a principal notícia do desfile de verão 2024 da marca. No caso, Leonilson é o artista José Leonilson, falecido 30 anos atrás. Desde então, suas obras e memória são preservados pelo Projeto Leonilson, instituição fundada por sua irmã, Ana Lenicia (ou Nicinha), em 1993.

Por que a collab entre Neriage e Leonilson é especial?

O que torna a parceria especial é o ineditismo: é a primeira vez que trabalhos do artista são licenciados para fins comerciais. “A gente sempre cuidou bastante das obras, justamente para evitar que se tornassem algo puramente comercial”, diz Gabriela Dias, coordenadora geral do Projeto Leonilson e filha de Nicinha. Seu tio, vale dizer, resistia ao máximo às práticas do mercado de arte e ao universo das galerias.

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

“Já nos procuraram para fazer rótulos de vinho, quebra-cabeça e outras coisas, mas nos mantivemos firmes no viés artístico, como para livros, exposições e coisas assim”, continua Gabriela. O que mudou? “Nosso santo bateu”, fala Nicinha, sentada ao lado de outros familiares vindos de Fortaleza para assistir ao desfile.

O que apareceu na passarela?

As obras de Leonilson selecionadas conjuntamente pela família e pela estilista são dos anos 1970, 80 e 90. Dessa última década vem as imagens mais famosas. Aqueles desenhos delicados, frágeis, as palavras bordadas ou escritas, posicionadas de forma aparentemente aleatória ou quase escondida.

Muitas vezes, esses trabalhos expunham algum tipo de dualidade. Natural de Fortaleza, ele adorava contrapor o deserto com o oceano. Da sua criação católica, anjo e diabo eram personagens frequentes, bem como metáforas com abismo e luz. Dos relacionamentos, do sexo e da sexualidade vêm as palavras amor, solitário, incompreendido, seus lábios, ninguém e tantas outras.

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Mas como Rafaella não é chegada a obviedades, são as pinturas menos conhecidas de 1970 e 1980 que se destacam na coleção. Exemplos? Tem o jacquard com um autorretrato do artista, usado do avesso (numa inversão do jogo entre intimidade e exposição presentes na arte de Leonilson). 

Tem aquele outro jacquard em tons de azul, todo recortado em 35 partes que depois se encaixam na modelagem para dar nova cara ao rosto de um marinheiro. E tem também as estampas maximizadas de pinturas aplicadas sobre seda pura.

A coleção de verão 204 da Neriage foi toda sobre Leonilson?

Apesar de ser o grande destaque, a parceria é só um pedacinho da coleção (a maioria das peças são limitadas e com parte da revenda destinada ao Projeto Leonilson). Aliás, a inspiração não é o artista, mas um de seus poemas favoritos, Ítaca, do grego do Konstantinos Kaváfis. 

Grosseiramente resumida, a poesia ressalta o valor das viagens e das experiências vividas nelas, como tão ou mais importantes do que o destino e essenciais para o reconhecimento e prazer do retorno (ou reencontro) à origem.

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Na prática, queremos dizer que o verão 2024 da Neriage viaja para novos lugares, sem esquecer da própria casa. Por exemplo: nunca se viu tanta pele em um desfile da marca. Até microshorts (debaixo de camadas tule) entraram para o novo portfólio de produtos. E tops curtinhos idem, deixando toda a barriga de fora. Além disso, as transparências, aberturas, fendas, decotes e recortes ganham mais espaço. 

As silhuetas chegam mais secas, as formas, menos distantes do corpo, e os volumes, contidos. Tem também toda uma leveza na escolha de materiais, na maneira como os plissados são trabalhados e na construção da alfaiataria. Nem sempre o resultado é perfeito, e tudo bem. Um pouco de turbulência, um desvio de rota fazem parte da viagem. Às vezes, são até essenciais para encontrar o melhor caminho.

Neriage e Leonislon: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Um bom exemplo de rota perfeita são as peças em que a aparente simplicidade esconde toda uma complexidade técnica. Como aqueles dois vestidos, um preto e um branco, com alças largas, bustiê, pregas e uma faixa caindo por um dos ombros. Ou o casaco marrom com recortes e costuras diagonais, o conjunto de franjas brancas, os vestidos metalizados do final, o longo branco com estampa azul e até a camisa branca com jeans (uma parceria com a Levi’s para um projeto de comemoração dos 150 anos do modelo 501).

São peças e looks com um tipo de simplicidade e sofisticação que já virou a cara da Neriage, porém com uma leveza e naturalidade muito bem-vinda. Contida na medida, livre ao gosto do freguês. E tudo sem forçação de barra, sem parecer estranho à identidade tão bem construída e solidificada por Rafaella.

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Num mercado saturado, com ofertas de todo o tipo e extremamente competitivo, ser reconhecido por qualidades materiais, e não por logos ou monogramas, é um feito e tanto. O que não significa fazer sempre a mesma coisa. A estética, o estilo podem – talvez até devam – ser uma constante, principalmente quando ganham adesão no mercado. 

Não foi querendo agradar a todo mundo que a marca só viu crescer a demanda pelos seus plissados (hoje disponíveis numa linha perene de clássicos), foi convidada a ter uma pop-up store no shopping Iguatemi e, agora, acaba de inaugurar uma segunda loja no shopping Cidade Jardim, em São Paulo.

Neriage e Leonilson, um match perfeito

Pouco antes do desfiles, Gabriela e Nicinha contaram que só concederam o licenciamento por identificarem em Rafaella algumas conexões com o trabalho e processo criativo de Leonilson. “No nosso primeiro encontro, ela entrou na casa e começou a chorar”, relembra Gabriela. “Já foi um primeiro sinal dessa identificação. E o Leonilson amava a moda.”

“Ele dizia que fazia um trabalho paralelo à moda. O trabalho dele era artístico, mas ele estava sempre conversando com estilistas, porque achava importante essa relação. Para ele, moda e arte caminham juntos”, continua Nicinha. Mais importante ainda tem o amor como força motora para ambos, a estilista e o artista. “A gente foi conhecendo a história dela, o trabalho dela e percebemos que a Rafaella é uma pessoa que cria por amor. E Leonilson fazia arte por amor”, fala a irmã.

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Resumidamente, são duas mentes criativas que usam tecidos, roupas e tudo mais que puderem para dar vazão (e sentido) às emoções  – de todo o tipo, boas e ruins. Elas também usam seus trabalhos para se apresentarem para o mundo, o que nem sempre é como eles são de verdade, na intimidade. É também através do trabalho criativo que desenham um mundo em que gostariam de habitar.

Numa de suas fitas-diário, reproduzida no documentário A paixão de JL, Leonilson diz que sua arte é “saída de dentro de mim”, como “entregar o coração na mão dos outros”. Em entrevistas dias antes do desfile, Rafaella contou que sempre quis contar histórias, desde criança – ela até cogitou ser jornalista em vez de estilista.

“Eu preciso falar. Só que não me considero artista. Acho muito pretensioso falar que sou artista. Odeio isso. Mas trabalho com criação. E qualquer pessoa que trabalha com criação tem essa necessidade de botar para fora”, desabafa ela. 

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Neriage e Leonilson: modelo no desfile de verão 2024 da marca Neriage.

Foto: Agência Fotosite

Quem acompanha a Neriage de perto e desde o início, sabe que cada coleção parte de introspecções e reações emocionais muito íntimas de sua criadora. Expor dores e delícias não é coisa pouca. Ainda mais num mundo de aparências. Daí alguns entraves, deslizes e excessos de coleções passadas. E, provavelmente, de futuras também.

A diferença, agora, é que os riscos, ousadias e experimentações surgem sem vergonha, sem disfarce. Daí a leveza e naturalidade que falamos acima. Como cantou Cazuza ao fim da apresentação, é tudo “parte do meu show”. E de novo nas palavras de Leonilson, “não sei porque a gente gosta, mas a gente tem que gostar. É o sentido da vida”.

Em tempos de métricas, de fórmulas automatizadas e de tudo pautado por algoritmos, uma profissional que fez questão de expor tudo isso, ainda que nas entrelinhas, não merece só destaque, merece respeito. É sobre sentir e estar vivo. E de verdade, não por engajamento.

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