Os destaques da 49ª Casa de Criadores

Memórias, origens e saudades são temas recorrentes entre as marcas participantes. E mais: detalhes sobre o primeiro curso do Instituto CdC.


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O estilista Ellias Kaleb nasceu em Rio Formoso, em Pernambuco, mas se mudou para São Paulo ainda muito pequeno. “Por isso, sempre fiz esse questionamento de onde eu sou. Isso tem feito parte da minha vida agora, os resgates. A minha mãe, na adolescência, trabalhou muito com trabalhos manuais. Isso subjetivamente me acompanhou e, agora, tem aflorado no meu processo de autoconhecimento”, diz ele.

Sua apresentação foi uma das três que aconteceram presencialmente na 49ª edição da Casa de Criadores, entre os dias 09 e 10 de dezembro. A coleção é fruto de um trabalho conjunto com a Orquestra de Formação Alberto Nepomuceno, responsável pela trilha feita especialmente para o desfile. A partir dessa ideia de sonoridade, nasceram os looks de formas onduladas, repletos de babados, drapeados e plissados.

Final do desfile de Ellias Kaleb.

Ellias Kaleb.Foto: Agência Fotosite

Os volumes se conectam diretamente à vontade de materializar algumas das sensações e emoções desencadeadas a partir da combinação de acordes, melodias e ritmos, e fazem isso de maneira poética, longe de qualquer clichê. Num campo mais material e técnico, eles remetem ao artesanato da mãe do estilista, falando de um outro tipo de frequência, não de ondas sonoras, mas de coisas que nos conectam com valores de quem somos e fomos, tudo junto e misturado.

Memória, origem e saudade são algumas das palavras que nos acompanharam muito de perto nos últimos dois anos de pandemia. São também conceitos muito presentes nas coleções apresentadas nesta primeira versão híbrida da Casa de Criadores.

Detalhe de saia da marca Nalimo.

Nalimo.Foto: Gustavo Paixão

Day Molina, diretora criativa e fundadora da Nalimo, chamou sua mais recente coleção de Carta Para Nuestros Abuelos, numa espécie de resgate e celebração das memórias e cosmovisões de seus ancestrais aymaras do Peru. Ao lado da sua assistente, Gabi Leconã, também aymara da Bolívia, ela mistura sua moda minimalista e de linhas puras com elementos das histórias de seus avós, como a cruz andina, o aguayo, os ponchos e as franjas.

Desde a criação da Nalimo, a estilista fala da importância de criar mais que roupas. Sua moda é política, social e ativista, denuncia o agronegócio, invasões, racismo aos povos indígenas e reivindica a garantia dos direitos humanos. No fashion filme exibido pela marca, algumas saias apresentam estampas de cartas sobre diversos assuntos caros à sua criadora. “Nesse processo de afetividades existe resistência”, escreve a criadora, “a memória é eficaz em preservar hábitos e costumes”.

Look da marca Not Equal.

Not Equal.Foto: Leca Novo

De maneira mais conceitual e até filosófica, Fábio Costa, da Not Equal, também fala sobre memórias afetivas. A ideia é tentar reproduzir em roupas a construção desses pensamentos e do próprio ato de rememorar. “Pensei em não contar uma história lógica (como no vídeo anterior), mas analisar, através da sequência, colagem de imagens e movimentos, a (re)estruturação dessas lembranças”, escreveu o estilista.

Na prática, o resultado são roupas que simulam a nebulosidade dos pensamentos com uma cartela de brancos e cinzas. Já as formas remetem ao vaivém das memórias por meio de recursos como recortes, tiras e patchwork. A imagem é bela e o produto, dos mais desejados desta edição do evento.

Editorial da marca Jorge Feitosa.

Jorge Feitosa.Foto: Marialu Bezerra

A noção de construção coletiva também aparece no trabalho de Jorge Feitosa. Nesta temporada, a coleção é fruto de um ajuntamento que se deu por meio de uma ação coletiva e plural, realizada em Santa Cruz do Capibaribe, no agreste de Pernambuco. Em uma oficina, que aconteceu durante os dias 08, 09 e 10 de novembro, 23 participantes elaboraram uma parte do look apresentado em um filme durante a CdC. As outras partes foram feitas por amigos, como o artista têxtil Alexandre Heberte e os estilistas Leandro Castro e Theo Alexandre, familiares do estilista, além do próprio.

A peça modular, construída a partir dessa ação, é uma coberta de Sulanca vestível, formada por várias capas de almofadas que se conectam por zíperes destacáveis, o que possibilita variações na hora de vestir. Sulanca, vale dizer, é um movimento que consiste na reutilização de retalhos e resíduos têxteis para a confecção de peças do vestuário. Seus primeiros registros são da década de 1960 e acredita-se que foi com ele que o polo de confecções pernambucanas teve sua origem.

“O caminho percorrido para chegar em toda essa feitura foi o da conversa sobre a tradição dos fazeres que deram origem à Sulanca”, explica Feitosa. “Mas a principal discussão nos grupos era sobre qual é o papel da Sulanca no presente, o que ela pode ser para além do que já foi construído a partir de seu surgimento? O que pode ser realizado a partir de um saber cultural, social, econômico e criativo como esse?”

Look da parceria entre KF Branding e Woolmay Mayden.

KF Branding & Woolmay Mayden.Foto: Rikko Oliveira

Reconstrução é o tema da coleção feita em parceria entre a estilista Kel Ferey, da KF Branding, e o criativo Woolmay Mayden. Toda em branco, com formas fluidas, alfaiataria e camisaria combinadas a referências esportivas, a coleção é uma das mais desejáveis em termos comerciais. E para além do simbolismo da cor, a apresentação fala da importância da colaboração, da coletividade e do apoio mútuo. Algo que a Casa de Criadores sempre buscou.

O espetáculo de abertura da edição é o mais recente exemplo disso. Uma grande expressão criativa e conjunta dos participantes, num momento em que o dinheiro anda escasso e os custos, nas alturas. Apesar dos pesares e das saudades, o formato digital, que se tornou via de regra nos últimos anos, possibilitou novas narrativas, construções, visões e vozes. Hisan Silva e Pedro Batalha, da Dendezeiro, são um bom exemplo.

A mais recente coleção da dupla de Salvador é uma plataforma para mostrar a Bahia como grande pólo artístico e cultural. Desde o início a marca tem como objetivo fortalecer uma rede criativa capaz de expandir o trabalho de artistas locais dentro dos circuitos de moda nacional

O ponto de partida é um streetwear que veste todos, sem restrições ou definições de tamanho e gênero, com mistura de tecidos naturais com outros materiais como plástico, miçangas e pelúcias. A partir daí, os estilistas referenciam diferentes personalidades da música soteropolitana. As roupas contam com a colaboração de Weedy, Tenso, SempreVivo e Viniartes. E o vídeo tem a participação dos artistas Evylin, Yan Cloud e Maya e das personalidades baianas como Hiran, Duquesa, Cleidson (Baby), Ismael Carvalho, Mauricio Sacramento (Batekoo), Nininha Problemática e outros.

“A pessoas soteropolitanas foram as grandes inspirações para a construção desta coleção, não como objeto de pesquisa e, sim, como fonte inesgotável de criatividade, o que levou a marca a criar roupas que não falam somente sobre o agora, mas sobre o antes e o depois”, escrevam os Hisan e Pedro.

Look da marca Guma Jovana

Guma Joana.Foto: Sladká Meduza

A ideia de fortalecimento e comunidade também aparece no vídeo de Guma Joana, produzido por uma equipe de pessoas transvestigêneres. Baseada no poema Alcóolicas, de Hilda Hilst, a coleção chega carregada de sensualidade, com recortes mil, peças, tecidos e materiais reaproveitados e uma construção positivamente caótica. A imagem tem impacto, energia e lembra o saudoso frescor e irreverência underground que deram fama à Casa de Criadores, quase 25 anos atrás.

Final do desfile de Rober Dognani.

Rober Dognani.Foto: Agência Fotosite

Momentos antes do desfile, o Rober Dognani contou que sua coleção é sobre tudo o que sentimos falta durante os meses mais tensos da pandemia: sexo, festa e uma boa montação. Na passarela tem tudo o que ele mais ama: drama, babados e volumes inspirados na alta-costura, brilhos, franjas, suas famosas peças de látex e muita uma performance, com direito ao próprio criador arrumando as modelos na boca de cena e dirigindo a apresentação. No final, teve chuva de papel picado, estilista emocionado e a constatação de que sim, estávamos com muitas saudades.

Inscrições Abertas

Uma das principais novidades da Casa de Criadores nesta edição foi o anúncio do Instituto Casa de Criadores, uma plataforma gratuita dedicada à democratização e descentralização do ensino de moda no país. Na última segunda-feira, 13.12, foram abertas as inscrições para o primeiro curso da instituição. Ao todo, são 300 vagas e a previsão de início das aulas é em fevereiro de 2022. As inscrições vão até dia 20.12.

O curso será focado em três pilares: estilo/criação, marketing/comunicação e negócios. Estilistas do line-up da Casa de Criadores também poderão participar desta e de futuras atividades e contarão com acompanhamento especial voltado às questões dos trabalhos que já desenvolvem. As coordenadoras do primeiro módulo são Carol Barreto, designer de moda e Professora e pesquisadora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, e Karlla Girotto, artista multidisciplinar e pesquisadora no Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. A grade curricular e os professores selecionados sob supervisão da dupla (a serem anunciados em outra data), seguirão o compromisso de questionar estruturas e apostar nas possibilidades da criação coletiva, escuta, saberes e tecnologias ancestrais.

“Para artistas da Casa, o curso visa potencializar reflexões que problematizam a nossa origem e posicionalidade, frente ao repertório estético-cultural que compõe a nossa formação profissional e humana, nos provocando à construção de outras/novas referências, que transcendam a interdição do racismo, sexismo, misoginia, LGBTQIA+fobias, do etarismo, capacitismo, dentre outras matrizes produtoras das desigualdades, para que assim possamos definitivamente compreender a moda como linguagem e a linguagem como esfera produtora de realidades”, afirma Carol.

“É urgente pensar e tomar posição frente às ruínas que são os sistemas que estruturam o nosso mundo. Não que sejam ruínas porque foram arruinadas, estas estruturas já nasceram ruínas: o capitalismo, a noção de raça, gênero e classe, a supremacia branca, patriarcal, burguesa, religiosa e falologocêntrica. A moda é intimamente ligada a todos estes sistemas. Fabricar outros mundos, a partir de outras cosmopercepções e perspectivas significa talvez dissolver o sentido de representação da moda, reinventar os nomes e os saberes, reorganizar os fazeres. É preciso reinventar tudo e que se invente um modo de existir onde a vida seja soberana – não só a vida humana, mas todas as formas de vida”, finaliza Karlla.

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