Os destaques do segundo dia de SPFW

Urgência pelo toque, emoção e a importância dos fazeres e materialidade da moda são assuntos recorrentes entre diferentes marcas e estilistas.


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Na última terça-feira, 16.11, o banco de investimentos Morgan Stanley divulgou uma nota avaliando que o mercado digital de moda tem potencial para vender 50 bilhões de dólares até 2030. Há tempos foi dada a largada de uma corrida tecnológica na moda. Se você acompanha o assunto, já deve ter esbarrado por conceitos como realidade aumentada, design 3D, social gaming (com seus skins e avatares), NFTs e a obsessão do momento, o metaverso.

Marcas com maior poder de investimento não tardaram a embarcar no movimento que só deve crescer nos próximos anos: criar roupas que só existem em ambientes virtuais. Outras já implementam processos de design e produção inteiramente digitais para otimizar o trabalho e reduzir descartes e outros impactos na natureza.

Diante de futuros promissores, é natural o deslumbre. É preciso lembrar que tudo isso tem um preço (ainda bem alto) e esbarra em questões mais complexas que vão de política ao acesso à tecnologia e informação. E falando de Brasil, isso é importante levar em conta.

Tem ainda o lado pandêmico, um tanto mais emocional e psicológico. Depois da vacina, tudo o que queremos é um pouco de toque e sensações à flor da pele. Literalmente.

A própria São Paulo Fashion Week é um exemplo disso. No Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Parque do Ibirapuera, onde acontece o evento, a área mais movimentada – e provavelmente a mais segura – é o jardim em frente ao prédio. Na parte de dentro, apesar dos avisos de conformidade às normas sanitárias, o uso de máscara não é seguido à risca. E depois de tanto tempo trancafiados, melhor mesmo o ar livre.

O tão sonhado lado de fora foi o nome dado à nova coleção da Aluf. As roupas parecem mais leves no corpo, têm menos cara de cerâmica para vestir. De novo, tem a ver com a sensação e possibilidade de liberdade. “É como a continuação da nossa coleção anterior. Ainda falamos sobre a beleza do dia a dia, mas agora a vendo nas ruas”, diz a diretora criativa Ana Luisa Fernandes.

Esse olhar é como o de quem olha pela primeira vez para fora, quase como que pela perspectiva de uma criança. A ideia é traduzida na estampa guia desta temporada, um floral desenhado em naquim pela própria estilista.

Essa inocência infantil também aparece na estreia da Mnissis, ainda que com tom mais lúdico. A marca ficou conhecida por seus acessórios, muitos deles à base de resina colorida, mas agora a diretora criativa Marina Costa, prova que sua etiqueta pode muito mais. A partir da manipulação de tecidos e de uma cartela de cores vibrante, ela constrói um universo divertido, quase inocente. “É uma especie de desfashionização”, comenta.

Já a Anacê, que na temporada passada foi quase austera com seus bons básicos, aparece mais fervidinha, levemente psicodélica e um tantinho sensual. O mix de produtos segue a premissa original de peças com design limpo, sem muita distinção de gênero.

E já que tocamos no assunto, a Modem aproveitou seu sétimo desfile na SPFW para introduzir oficialmente sua linha masculina. O diretor de criação André Boffano conta que sua marca sempre vendeu para homens e mulheres, muito devido ao design de formas puras e silhuetas alongadas. Contudo, nunca houve uma comunicação diretamente sobre isso. E com 70% das vendas online voltadas para o público masculino, nada mais lógico do que seguir a onda.

De volta à psicodelia, a moda ainda segue apegada ao estilo dos anos 1970, como bem mostrou Lilly Sarti – com algumas pitadas 80’s de bônus. É que o desfile celebra os 15 anos da marca das irmãs Lilly e Renata Sarti, e a data serve de pretexto para a recuperação de elementos clássicos da grife. Por isso, essa misturinha, a silhueta triângulo, as transparências, o mood meio boho chic, alguns brilhos metálicos e tons terrosos. O clima e a trilha são de festa, mas nem por isso a dupla deixaa as opções para o dia de fora. A alfaiataria, agora mais estruturada com lã fria, é um dos destaques, bem como os jacquards, todos feitos de garrafas PET recicladas.

Na À La Garçonne, que retorna a SPFW nesta estação, Fábio Souza e Alexandre Herchcovitch se inspiram em filmes de terror, com destaque para O Exorcista, de 1973. Vem daí a estampa que abre a apresentação e o número nas costas de alguns looks. Mas isso é só o pano de fundo, o charme da coleção está nas silhuetas e modelagens inspiradas em itens dos anos 1970 e no mix de estampa, algo que a marca já vinha investindo há algum tempo.

Outro ponto interessante é a combinação de silhuetas bem femininas ou mais sofisticadas, como aquelas de alfaiataria, com tecidos de workwear dos anos 1920 vindos da França. O mix de uma roupa de agora com superfície vintage é visualmente impactante e ainda se conecta ao trabalho de upcycling tão importante para a À La Garçonne.

E isso nos leva a outro contraponto sobre o frenesi tecnológico e virtual: as roupas e, em um nível mais aprofundado, os tecidos dos quais são feitas. Ainda são essas as bases de uma indústria que emprega cerca de 8 milhões de pessoas no Brasil – a grande maioria, uns 80%, informalmente, logo desamparadas legalmente. É também o que move um dos maiores setores da economia nacional. Olhar para o futuro é importante, mas antes é preciso preservar o presente.

E aqui vale um parênteses para o Projeto Cria Costura, que abriu oficialmente a 52ª edição da SPFW. Fruto da parceria entre a prefeitura da capital paulista e o Instituto Nacional de Moda e Design (In-Mod), a iniciativa busca potencializar o trabalho de mulheres da periferia de São Paulo que estão em situação de vulnerabilidade social. O piloto do programa foi a Cidade Tiradentes, pólo vocacional de moda na zona leste, e contou com a participação de 40 costureiras, que desfilaram suas criações autorais na passarela do evento.

“A indústria têxtil é mais uma indústria geradora de produtos, emprego e renda”, disse Ronaldo Fraga, no vídeo de apresentação de sua nova coleção. “Sua força se faz presente enquanto vetor de afirmação cultural vestindo a casa do corpo e o corpo da casa. E a importância do seu significado permeia muitas esferas – social, cultural, econômica e política de um país – a ponto de influenciar um estilo de vida de uma época, sendo capaz também de traduzir seus desejos de mudanças ou a permanência de suas tradições”, continua ele.

Sua coleção é uma verdadeira celebração dos saberes e técnicas têxteis. Ele fala da trama, do tear como elementos chave das relações comerciais, pessoais e afetivas que surgem por e através da roupa e da moda. “Há muito eu já vinha com esse desejo de transitar pelo Brasil e lançar luz sobre os saberes e fazeres da nossa cultura”, diz ele, em entrevista.

Tudo começou com uma parceria de 15 anos com a empresa têxtil catarinense Reunaux View. Ronaldo foi chamado para desenvolver tecidos exclusivos para a tecelagem, que iniciava investimentos na fabricação de jacquards de última geração para vestuário. “Dessa coleção vieram muitas outras e, desde então, duas vezes por ano, me esbaldo no parque de diversões têxteis, transformando em novas tramas tudo o que me alumbra”, fala.

É esse mesmo tecido seu objeto de estudo nesta coleção. De suas tramas, muitas vezes confundidas com estampas, saem vestidos longos e midi, capas, ternos masculinos e até um vestido de noiva. E todos se encontram em uma grande celebração que Ronaldo gosta de chamar de Festa de Roupas.

Ronaldo vai ainda mais longe em sua narração, retoma a chegada dos portugueses e sua constatação que os povos originários já teciam o algodão. Relembra como a produção têxtil foi a primeira a ser autorizada por portugal e depois coibida para satisfazer interesses comerciais externos. “A história volta a se repetir tempos depois, revelando a permanência de uma dinâmica de exploração que já conhecemos… O minério, a soja, os chineses…”

Hoje, o estilista celebrou tudo isso. Celebrou os tecidos, quem os faz, as roupas, quem as vestes e tudo que nasce e floresce a partir delas: as emoções, as fantasias e também os empregos, carreiras e negócios. “Acredito que o papel do designer brasileiro é tecer pontes entre o Brasil feito à mão e o Brasil industrial”, diz ele. “Reforço o papel da roupa e tecidos como manto de sustentação na construção de personagens diários e como molduras na parede da memória de cada um. A cultura de um lugar se manifesta na forma como as pessoas moram, comem, festejam e, principalmente, no que elas vestem. E a soma de tudo isso se chama vida.”

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