Os destaques do terceiro dia de SPFW

A rua como local de encontro e formação cultural, saberes manuais, festa, sexo e atenção às demandas dos clientes marcam as principais coleções desfiladas no evento.


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O terceiro dia da SPFW começou com Ogãs tocando para Exu. Era a segunda apresentação da Meninos Rei, marca dos irmãos Céu e Júnior Rochas. Sete anos atrás, quando eles lançaram a etiqueta, pediram uma ajudinha para o senhor das encruzilhadas, dos becos e vielas, das avenidas e sambódromos. Em junho, na estreia na semana de moda, homenagearam a entidade novamente, numa espécie de agradecimento. Agora, dão continuidade às celebrações.

“Estamos reverenciando as pombagiras, os trancas ruas e outras entidades marginalizadas”, diz Júnior. “E junto com elas, outros corpos que também sofrem algum tipo de discriminação”, continua. Na passarela, além da moda colorida e feita de tecidos vindos de diferentes países africanos, vimos um dos castings mais diversos do evento até agora. Entre modelos e amigos da marca, estavam os atores Ícaro Silva e Rainer Cadete, o rapper Renegado, a modelo trans A MAIA, a militante Thais Carla e Amanda, sobrinha de uma das costureiras da dupla.

Já faz alguns anos que a moda caiu de amores pelo tal estilo das ruas. O termo streetwear foi tão usado que já quase não tem significado real. Aqui, porém, a rua tem outro sentido. Tem mais a ver como ponto de encontro, troca e formação cultural. No livro O Corpo Encantado das Ruas, Luiz Antonio Simas fala sobre isso. “Precisamos morar na encruzilhada da alteridade como mecanismo de compreensão e vivência compartilhada de mundo”, escreveu ele. Para o cronista, “cultura é a maneira como um grupo cria ou reelabora formas de vida e estabelece significados sobre a realidade que o cerca.”

Não seria nada forçado entender algumas das melhores coleções desfiladas nesta quinta-feira, 18.11, a partir dessas ideias de encontro e compartilhamento. A Ateliê Mão de Mãe, por exemplo, nasceu da troca entre mãe e filho. A coleção de Walério Araújo tem origem nas suas experiências na noite de São Paulo. E a estreia da BoldStrap tem o sexo, a sensualidade e o corpo como principal plataforma de comunicação.

Mas vamos por partes. Começando pela marca de Vinicius Santana e Patrik Fortuna. A Ateliê Mão de Mãe surgiu no início da pandemia como uma forma de sustento para as mulheres crocheteiras e busca potencializar os saberes e fazeres manuais. Em sua segunda apresentação na SPFW, a etiqueta chega mais madura, investindo em tons mais fechados, cores frias e uma releitura do clássico estilo navy. O branco vira cru, o vermelho vira terra. O crochê, claro, continua o norteador de todas as criações e é feito pelas mãos de outras 10 artesãs. E o resultado é extremamente sofisticado.

Walério Araújo, um dos personagens mais notáveis da noite paulistana, decidiu homenagear a cena em que cresceu e se fortaleceu. Para tanto, olhou para a coluna Noite Ilustrada, escrita por Erika Palomino entre 1992 e 2005, anos em que drag queens, DJs, performers e estilistas, saíram do underground para estampar as páginas do jornal Folha de S. Paulo.

Não poderia existir tema melhor para comemorar seus 30 anos de marca.

Vale dizer também que a coluna da jornalista foi inspirada no sambista de mesmo nome, que também é homenageado pelo estilista em um look com a frase “Volta por Cima” bordada nas costas. O bordão, que sinaliza bem os tempos em que vivemos, vem como um sopro de otimismo.

Para dar corpo à coleção, Walério usou seu próprio guarda-roupa. Desapegou de peças icônicas, alguns Lanvins e Versaces da época de Gianni, para produzir peças em upcycling. Pérolas são aplicadas em blazers, calças de alfaiataria viram saias lápis e camisas ganham proporções exageradas.

Já a BoldStrap, marca de Peu Andrade, estreia na SPFW depois de ser parte do line-up da Casa de Criadores desde junho de 2019. O estilista enxerga a sua entrada no principal evento de moda do país como uma conquista social, uma vez que sua marca é “queer e sexualizada”. Logo, trata-se de mais espaço para a comunidade LGBTQIA+ e para a discussão sobre sexo com menos estigma.

Nesta coleção, o designer questiona ainda mais o binarismo de gênero e uma sexualidade heteronormativa. Nas peças, que vão da lingerie às roupas de couro, se inspirou em artistas surrealistas fetichistas, como Hans Bellmer e Pierre Molinier. Há também o uso de elementos clássicos da vestimenta feminina, como o corset, a renda e a pérola, só que em corpos diversos – algo que anda escasso nesta temporada.

A gosto do freguês

Depois de duas coleções refletindo sobre a pandemia (a primeira falou de sufocamento e a segundo de escapismo), João Pimenta foca no próprio cliente. Porém, vale lembrar que esse cliente não é dos mais tradicionais. Ele gosta de experimentar, como o próprio estilista explica. Pensando nele, foi desenvolvido um prêt-à-porter em que se vai embora os excessos mas fica a identidade ousada.

O processo partiu de clássicos eternizados do guarda-roupa, mas não só o masculino. Há um desenvolvimento de modelagem em cima de peças como a saia godê e o vestido trapézio, por exemplo. A paleta é formada por uma série de tons esmaecidos de cinzas, pretos e brancos, mas, principalmente, de vários tons terrosos. Já os tecidos são mais fluidos, priorizando o movimento, como o cetim, a seda e o crepe. “Trata-se de uma roupa confortável, gostosa de vestir”, diz João.

Destaque para a colaboração com Almanegrot, que assina o styling e a beleza. O performer tem uma queda pelo exagero, da mesma maneira que o João, mas foi convidado a exercitar uma imagem mais limpa. E o resultado não é nem um pouco banal. Próteses desenhadas pela também performer Cece Grace foram aplicadas nos rostos dos modelos e servem não só como um contraponto à coleção tradicional como também expansão do nosso olhar sobre o belo.

Após sua estreia na SPFW, na temporada passada, Weider Silveiro foi convidado a vender suas peças no marketplace do e-commerce Shop2Gether. E vendeu muito bem. Principalmente os catsuits, os vestidos florais mais fechados e as saias com estruturas de crinolina. Com isso, o estilista pôde ter um entendimento melhor do que sua cliente deseja e usou esses dados como baliza para sua nova coleção.

“Estava num momento nostálgico, lembrando de quando eu era grunge no Piauí”, diz Weider, sobre sua inspiração. Do movimento musical, que marcou o início dos anos 1990, vêm os xadrezes, a silhueta mais confortável e as texturas que lembram flanelas e moletons.

Acontece que o estilista gosta um tanto de moda, e uma moda bem elaborada. Com isso, o desleixo grunge chega mais elegante, com estruturas que desenham a silhueta, texturas sofisticadas e toda uma atenção especial aos detalhes. O apego à década de 1990 também recebe boas influências dos anos 1960 e 70, assim como de silhuetas famosas da história da moda.

Não faz muito tempo, havia uma suposta divisão na moda entre o lado criativo e comercial, como se ambos não pudessem coexistir e se autoaliementar. As coleções de João Pimenta e Weider Silveiro são bons exemplos de como um bom conhecimento do que vende e de quem compra pode contribuir para criações mais interessantes e produtos de melhor qualidade – e altamente desejáveis.

Já que é para ser digital, que seja pra valer

Marcelo Von Trapp é conhecido pela construção primorosa de suas peças e atenção máxima aos detalhes. Em sua mais recente coleção, por exemplo, ele trabalha com plissados e bordados para simular elementos da fauna e da flora, usa texturas para referenciar a art déco andina e o trabalho do arquiteto Freddy Mamani, e se vale de sua paixão por cores intensas para falar de questões espirituais.

Tudo isso poderia resultar em um vídeo-arte contemplativo, mas o estilista vai muito além. Em parceria com o artista multimídia Vitor Milagres e com o diretor Marlon Brambilla, ele cria um verdadeiro universo digital à la Jodorowsky 3D, num filme dividido em cinco atos. A apresentação é tradução fiel da exploração por novas formas de expressão e representação por meio da roupa e sua interação com o corpo e diferentes personalidades.

A coleção conta ainda com várias parcerias. Os sapatos são frutos de uma colaboração com a Botti, os óculos foram desenvolvidos juntos a Zerezes, as bolsas são da marca Montefina e tem ainda uma linha especial com a NARS, assinada por Rafaella Crepaldi.

O bom filho à casa torna

Longe das passarelas da SPFW desde 2019, a Ellus retorna a semana de moda, porém em formato digital. A coleção é uma prévia da que será apresentada em março do ano que vem, para celebrar os 50 anos da marca. A data, aliás, serve de ensejo para uma quase retrospectiva do que há de mais essencial no estilo da etiqueta.


ELLUS | SPFWN52

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O jeans sai na frente, com lavagem marmorizada e efeito craquelado. Tem ainda muito uniforme esportivo, peças utilitárias e mais um bom mix de básicos. Porém, são as sarjas em tons mais escuros com efeito desgastados que se mostram mais interessantes. Principalmente quando combinados a detalhes rendados, tipo lingerie, e moletons oversized. Essas, aliás, são características marcantes da estilista Karen Fuke, que agora divide o estilo com Muriel Mingossi, sob direção criativa de Adriana Bozon.

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