Estilistas consagrados assinam figurinos para a TV e teatro brasileiros

Era agosto de 2017, e o estilista Ronaldo Fraga, de uma hora para outra, se viu convocando 25 costureiras para refazer dezenas e dezenas de peças em esquema de mutirão. Em cinco dias, tudo precisava estar de cara nova. Mas não foi a apresentação de uma nova coleção o que quase levou embora a sanidade do mineiro. Os figurinos de uma montagem da peça A Visita da Velha Senhora, estrelada por Denise Fraga, é que arrepiaram o proverbial bigode de Fraga. A menos de uma semana da estreia em São Paulo, tudo estava fora do lugar.

“O figurino não tinha nada a ver com o cenário (que ele também tinha criado). As roupas brincavam com a ideia de bonecos de papel, personagens dominados, mas os ensaios tinham levado o espetáculo para um tom mais realista”, relembra ele. “Os atores estavam constrangidos no palco, não se encontravam naquelas peças. A Denise me ligava chorando.”

A operação S.O.S. funcionou a contento. Mais do que isso, a emenda saiu melhor do que o soneto. Tanto que o figurino da montagem dali a alguns meses recebeu o Prêmio Shell, o principal das artes cênicas no Brasil. E não restaram traumas na relação do estilista com os palcos. Depois de Velha Senhora, ele assinou os croquis dos trajes usados em outra peça e em uma ópera – e está para estrear um segundo espetáculo lírico.

Croqui de Ronaldo Fraga para peça A Visita da Velha Senhora.Foto: Cortesia Ronaldo Fraga

A exemplo de Fraga, vários estilistas brasileiros conhecidos pela produção acentuadamente autoral nas passarelas têm sido convidados com frequência para levar sua visão hipersubjetiva da roupa à cena ou à tela. João Pimenta e Alexandre Herchcovitch são dois deles.

“No começo da minha carreira, diziam que o meu trabalho era muito teatral. Nunca consegui me distanciar disso. Não sei trabalhar sem uma história por trás, sem uma dramaturgia. Para mim, a moda ajuda cada um a construir um personagem para si”, explica Fraga, que, antes de desenhar looks para Denise Fraga e companhia, fez, nos anos 2000, figurinos para o Grupo Corpo e a SP Cia. de Dança.

Ele vê diferenças pontuais entre criar coleções comerciais e roupas para o teatro. “A peça ‘real’ precisa ser lavada, tem que enfrentar o dia a dia. Já a de cena tem que dialogar com a luz, com o cenário.”

João Pimenta faz coro. “Se me falam que o figurino roubou a cena, quero morrer. Isso quer dizer que deu errado. Ele tem que se adequar a uma estética global”, diz o também mineiro, cujas criações já apareceram em peças, óperas e espetáculos de dança – além das passarelas da Casa de Criadores e São Paulo Fashion Week..

Figurino de João Pimenta para F.E.T.O.Foto: Matheus José

Eram dele os belos vestidos pretos de F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada), de Gerald Thomas, que cumpriu temporada recentemente em São Paulo. Agora, ele veste Vera Holtz no monólogo Fricções, em que a atriz interpreta uma dezena de personagens. Em cartaz no CCBB-Rio, a montagem chega a SP em 2023.

“Na moda, é meu gosto pessoal, entra em jogo a maneira como quero posicionar a minha marca. No figurino, preciso chegar ao lugar que está na cabeça do outro, de um diretor”, compara Pimenta. “Mas há mais liberdade criativa, porque uma pessoa que se senta num teatro tem a cabeça mais aberta do que aquela que vai assistir a um desfile. A cena tem um componente lúdico de que eu gosto muito e que me enche de ideias para as minhas coleções.”

No início dos trabalhos, o estilista gosta de acompanhar as primeiras leituras do texto pelo elenco ou mesmo os ensaios propriamente ditos. “Já começo a criar moods, mando referências para o diretor que, muitas vezes, sinto que o inspiram também.”

Pimenta diz que, se na moda a roupa funciona como uma segunda pele, no teatro ela é promovida a primeira. “Tanto é que já vi ator falar que só conseguiu fechar a composição de um personagem quando vestiu o figurino.”

Ele conta que sempre quis trabalhar com Thomas, um dos principais nomes do teatro brasileiro dos últimos 40 anos, e que aprendeu com ele a valorizar mais o processo do que a entrega final. “O espetáculo não precisa estar estritamente pronto para estrear.”

Já o diretor afirma ter sido apresentado às criações de Pimenta pela produtora de F.E.T.O., Dora Leão. “Me apaixonei na hora. Sempre fui muito ligado à moda. O figurino é a diferença entre você fazer ou não um statement. Não passei nenhum briefing para o João. Ele ia aos ensaios, sabia as cenas de cor. Fechamos o figurino antes de tudo. O João é lúdico e superprático ao mesmo tempo. E as suas roupas são ‘multilayered’, se desdobram em muitos sentidos.”

O mesmo se pode dizer das cerca de 500 peças que Alexandre Herchcovitch assina para a minissérie Independências, em cartaz às quartas-feiras na TV Cultura até o fim deste ano.

Arte criada pelo diretor de fotografia Leandro Pagliaro para apresentação dos figurinos do personagem Dom Miguel da série Independências, assinados por Alexandre Herchcovitch, para aprovação do diretor Luiz Fernando Carvalho durante a fase de pré-produção.Foto: Leando Pagliaro

O tecido usado em um vestido de noiva pode virar uma casaca para D. Pedro I, no exemplo dado pelo diretor, Luiz Fernando Carvalho, conhecido por produções de forte impacto plástico, como as novelas O Rei do Gado e Velho Chico, a minissérie Hoje É Dia de Maria e o filme Lavoura Arcaica. Para ele, o figurino mostra o esgotamento da roupa de boutique, do naturalismo. “Ele precisa servir à psicologia do personagem, mas também à crítica do próprio personagem. A casaca rosa-chiclete de D. Pedro I, com tecido de vestido de noiva, faz um comentário sobre a masculinidade tóxica dessa figura.”

Carvalho queria atemporalidade no vestuário (“formas do século 19, mas acabamento e costura do 21”) para não chapar a reconstituição de época e, assim, poder espelhar as cosmogonias indígena e africana que guiam a série – as quais não se baseiam num entendimento linear e estanque do tempo. “Para isso, precisava de mais do que um figurinista. Tinha que ser um artista-criador, um coautor como o Alexandre, que elabora cada peça como uma carta de tarô, única e indissociável das coordenadas da personagem”, fala ele.

“Ao mesmo tempo em que as marcas dele, como androginia e caveiras, estão lá”, prossegue Carvalho, “ele sai da posição de privilégio do estilista renomado e mergulha num processo colaborativo, aberto a pitacos de todos, em que os trajes, antes de serem bonitos, precisam carregar uma verdade.”

Arte criada pelo diretor de fotografia Leandro Pagliaro para apresentação dos figurinos do personagem Dom Pedro I na série Independências, assinados por Alexandre Herchcovitch, para aprovação do diretor Luiz Fernando Carvalho durante a fase de pré-produção.Foto: Leandro Pagliaro

Herchcovitch, que já fez as roupas de produções de dança e filmes (e adoraria vestir os atores de uma série ou filme de terror), diz que, antes de desenhá-las, conversa e gosta de observar o trabalho do elenco, da direção de arte e da direção geral.

“O Luiz me deu liberdade total para criar, mas eu sempre mostrava e pedia aprovação para os figurinos. Algumas vezes, tivemos que descartar e refazer, por questões ligadas a cor, formato ou inadequação à cena – uma manga alta que brigava com o penteado da atriz, o ator que ficava incomodado para dançar com determinada peça.”

Essa maleabilidade ilustra outra diferença entre cena e passarela evocada por Ronaldo Fraga. “O desfile é uma vez só. Modelo caiu, sapato quebrou, é a imagem que fica. No teatro (ou na TV, como no caso acima), tem uma temporada para ajustar, melhorar.”

Os bonecos de papel de Denise Fraga e companhia que o digam.

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