Por que marcas estão de olho nas celebridades para cargos de criação?

Milhões de seguidores, boa gestão de imagem e digital e representação de valores são alguns dos principais atrativos de famosas para empresas de moda.


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No já longíquo ano passado, duas grandes empresas de moda nacionais contrataram celebridades para cargos de direção. A Olympikus fez a cantora Iza diretora criativa e, meses depois, a Arezzo anunciou a atriz e empresária Marina Ruy Barbosa como diretora de moda da plataforma digital ZZ Mall. As nomeações causaram pequenas convulsões nas redes sociais, ainda mais em tempos pandêmicos. Mas o movimento não é de todo descabido.

Apesar do caos mundial, a marca esportiva cresceu 300% em vendas em 2020, enquanto a rede de calçados faturou R$ 55 milhões em vendas online no primeiro trimestre e quase triplicou o valor entre julho e setembro, com R$ 155,4 milhões. Marina e Iza certamente têm peso nos resultados. A ideia, aliás, é bastante cabível: celebridades sabem gerir e lucram muito com o digital. Por mais que alguns saiam do online, como a Bottega Veneta, a presença neste terreno ainda é lei. Capital imagético é suprassumo.


“Considerando o papel de direção criativa dentro de uma sociedade de consumo baseada em imagens e simbolismo diante das construções visuais, a estratégia está ok. Como vamos criticar o posicionamento de certas pessoas em cargos de prestígio sendo que estabelecemos relações de referenciamento com elas? Não compramos pela função, mas pelo simbolismo”, explica Andréia Meneguete, consultora de comunicação de moda e especialista em cultura material e consumo pela USP.

Questão de credencial

De onde vem, então, a resistência com o movimento que aparece em desabafos e comentários online? “Não é porque a pessoa é famosa e tem dinheiro que necessariamente é fácil fazer acontecer. Por mais que você contrate e seja assessorada por muitos, é preciso ter uma percepção aguçada e trabalhar”, explica a produtora de conteúdo e stylist Jéssica Marques, formada em moda há 3 anos pela UNAMA. “Não desmereço nenhum dos exemplos, mas a gente se sente lesado pois sabe que elas não vão bater ponto às 9 da manhã e sair às 18h. Elas têm mil outras funções. Talvez seja dor de cotovelo, talvez seja um incômodo por uma questão social profunda”, complementa.

Marina Ruy

Marina Ruy Barbosa.Foto: Fernando Tomaz

Marina Ruy

É importante não misturar todas as celebridades em um único balaio. Ricas e famosas, sim, mas com habilidades e personalidades diferentes. Sem contar os pontos de partida, e de permanência, que são específicos, sujeitos a uma série de configurações e elementos raciais, de gênero, sociais etc. São seres humanos.

Entretanto, não é assombroso que a associação gere desconfiança em jovens que acabam de sair da faculdade ou que correm atrás de trabalhos mal remunerados em um mercado classista, onde o ‘quem você é’ muitas vezes vale mais do que experiência, conhecimento acumulado e paixão. É a cultura das “costas quentes”.

Para além de contatos, cor da pele, IMC, etiqueta da roupa, conta bancária, orientação sexual e gênero, agora também é sobre presença online. As celebridades são um atestado. Frases como “antes de olhar o currículo, eu vejo o Instagram da pessoa que quero contratar” são proferidas com frequência. Claro, muitos portfólios encontram nas redes sociais uma ótima vitrine, mas cuidado para não valorizar exclusivamente a mercantilização da faceta digital, que não basta e é rasa.

Para muitas áreas criativas, diplomas, certificados e grandes experiências não importam tanto há um tempo. A não centralidade da academia para desenvolvimentos profissionais dignos pode até ser válida, já que todos não possuem os mesmos interesses. Contudo, caso desejado, as chances de ingresso em universidades – que precisam ser valorizadas e não sucateadas – deveriam ser as mesmas e considerar mecanismos de reparação histórica.

Profissão em mutação

A partir dos anos 1990, o cargo de diretor criativo começou a tomar os moldes pelo qual o conhecemos hoje. Até antes disso, o estilista ou costureiro se dedicava quase que 100% ao design, criação e confecção das roupas. Quando grandes empresas e conglomerados de luxo entraram na jogada, as atribuições se tornaram outras, mais ligadas ao marketing, branding e tudo mais que possa garantir a entrega consistente da mensagem em todos os pontos de contato da marca com o público.

Foi nessa época que estilistas se tornaram celebridades, vide Tom Ford, Karl Lagerfeld, Valentino Garavani e Gianni Versace. Anos depois, o caminho se inverteu, e personalidades da música, cinema e TV perceberam que podiam se dar bem na área criativa. Exemplos bem-sucedidos são as marcas de Victoria Beckham, das irmãs Mary Kate e Ashley Olsen e, claro, da Rihanna.

“A direção criativa vai além do rosto do artista, tem a ver com o que ele representa e com o que pode contribuir também” – Iza.

A diretora criativa, famosa ou não, pode não saber desenhar ou costurar, mas entende o processo, sabe transmitir a sua visão com o time, compreende o contexto e cria diálogos pertinentes. “É um agente de implementação da cultura da empresa. Além do público, é necessário passar os valores de marca para todos que trabalham nela”, define Marcella Franklin, diretora criativa e co-fundadora da Haight.

É como se fosse uma estilista e/ou stylist que foi vice-presidente de uma agência de publicidade por anos e, muitas vezes, tem conhecimento de gestão financeira. “A compreensão e domínio em diferentes áreas é fundamental para que o trabalho seja coerente à realidade econômica do negócio”, explica Oskar Metsavaht, diretor criativo e fundador da Osklen. “E não fazer com que os gerentes das áreas tenham trabalho dobrado para que o criativo compreenda que as suas propostas são incabíveis”, complementa.

“São muitas frentes, mas existe um foco que direciona tudo: a marca. Eu trabalho no papel da marca e na sua longevidade”, afirma Kátia Barros, co-fundadora e diretora dos criativos – como gosta de ser chamada – da Farm.

Não é só título, tem trabalho

É importante destacar que ter uma famosa nessa posição é bem diferente de se criar uma parceria ou linha especial. A célebre funcionária toma decisões sobre produto e/ou cria estratégias de comunicação e venda em uma empresa com centenas ou milhares de funcionários. “Um dos motivos pelos quais o ZZ Mall me convidou para assumir essa responsabilidade é porque acreditam na minha capacidade de conduzir visibilidade e engajamento do público – tenho muitos anos de gestão da minha própria imagem e redes, que foram consolidados com o lançamento e o sucesso da Ginger [sua marca própria]”, diz Marina Ruy Barbosa.

Barbosa trabalha com uma equipe de 20 pessoas em conjunto com Maurício Bastos, diretor executivo da Arezzo&Co. Enquanto na sua grife ela está envolvida em todas as áreas do negócio, no ZZ Mall o foco é no digital, apesar de haver, no futuro, a possibilidade de participação no design de produtos. Por esse motivo, o título é diretora de moda, não de comunicação.

“O ZZ Mall é uma plataforma que interliga muitas coisas. Temos as marcas da Arezzo&co, conectamos mais de 40 etiquetas externas, adquirimos o brechó online TROC e um dos principais pilares que desenvolvemos com a Marina é o conteúdo”, conta o diretor executivo da companhia. Um dos próximos lançamentos é a MAGAZZINE, plataforma editorial com entrevistas, matérias e produção e curadoria de imagens. O projeto deve ir ao ar em março.

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Iza.Foto: Mar + Vin

“O conteúdo mais elaborado atrai audiência. É um caminho para fortalecer o ZZ Mall como coletivo de moda. Em experiências passadas no site da Schutz, vimos que o usuário que passa por um conteúdo desse tipo tem frequência de visita 2 vezes maior e uma conversão em vendas 30% superior”, complementa Bastos. Afinal, são 37,5 Milhões de seguidores, mais de 17 anos de carreira, um negócio próprio e grande engajamento com o público. Ter Marina tocando estratégias digitais é socialmente sintomático.

Outro exemplo é Iza, com 14 milhões de seguidores, shows (antes da pandemia) em todo o país, mais de 100 milhões de visualizações no clipe de Ginga e presença no corpo de técnicos do The Voice Brasil. “[A direção criativa] vai além do rosto do artista, tem a ver com o que ele representa e com o que pode contribuir também. É muito importante a gente chegar como marca, empresa, produto mesmo”, diz a cantora de diretora criativa que, na Olympikus, também está envolvida na criação de produto. “Dessa forma, fica mais fácil de gerir nossa carreira e me tornar uma marca que as marcas querem estar junto também.”

Imagem & Ideologia

“O mais incrível nisso é se a marca se propõe a usar a expansão de alcance para propagar valores que ela acredita que são importantes, principalmente em um momento de pandemia”, opina Marcella Franklin, da Haight. Ainda não é claro quais valores sociais são propagados, e se vão ser, além da manutenção e expansão de lucro – destaca-se aqui o saldo positivo em consideração aos milhares de funcionários que atuam nas cadeias produtivas das empresas.

A contratação de celebridades para cargos executivos tem contexto social, principalmente quando considerado o viés da performance digital. O desenvolvimento de produto é um ponto que gera dúvidas, mas o papel de um diretor criativo normalmente é trazer a visão – os exemplos vão desde Lagerfeld até Rihanna. Cabe ao time o desenvolvimento.

Estratégia de marca é quando há associação de símbolos intangíveis a um produto. Celebridades representam muito e, em contato com empresas, os dois lados se potencializam. “Hoje temos um fetichismo das imagens. A mercadoria só tem valor se ela se referir a uma construção visual. Aqui temos um paradoxo: ao mesmo tempo que precisa ter elementos de constância, frequentemente deve mudar”, afirma a doutora em ciências sociais, e vice-coordenadora do curso na Universidade Federal do Vale do São Francisco, Paula Galrão.

No rápido consumo de imagens ideais, constrói-se a identidade. A absorção imagética como parâmetro de relação social sempre existiu. Já era assim antes, mas no mundo com o Instagram, tudo mudou. Teve também 2020, com muito posicionamento social, cancelamento e intelectualidade de 280 caracteres.

“A mercadoria só tem valor se ela se referir a uma construção visual” – Paula Galrão

Em uma pesquisa informal, a especialista em cultura material e consumo Andréia Meneguete aplicou um questionário a 50 pessoas. A primeira pergunta era se os entrevistados gostavam de empresas que assumem discursos de causa, independente da bandeira. Todos disseram que sim e citaram exemplos. Mais adiante, quando perguntados sobre quais marcas consumiriam caso não tivessem limitações financeiras, ninguém respondeu o nome das que apareceram inicialmente. “Existe um consumo de admiração de discurso e não de produto, há uma divergência. Reparações e equidades são necessárias, mas o consumidor ainda não é ativista”, explica.

Mas se tem uma coisa que vende, quando bem articulada em uma estratégia e não por si só, é a celebridade. Olhamos, associamos e queremos ser. “Vivemos em uma cultura que não valoriza a racionalidade, já que é tão efêmera e descartável. É uma cultura da carcaça. Quem consome uma marca, não consome o interior profundo e o que ela significa. Até porque as empresas não conseguem representar isso, pois são reflexo de uma cultura vazia”, afirma a doutora em ciências sociais.

Porém, a forma de consumo de celebridades não é um pilar estóico. Em 2020, os 100 maiores perfis de famosos no Instagram e Facebook perderam uma média de 800 mil seguidores e tiveram uma redução de 24,77% de interações, segundo o estudo #MS360FAAP, parceria entre o Núcleo de Inovação em Mídia Digital (NiMD) da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP) com a Socialbakers.

Em contrapartida, os perfis de marcas registraram um crescimento de 11,34% de seguidores. Há, portanto, uma transferência parcial de procura gerada pela associação cada vez mais frequente – e íntima – de famosos com empresas?

“Uma celebridade que ocupa esse lugar, tendo ou não expertise na área, não tem problema. Não é o que é exigido dela. As pessoas não querem que a música tenha poesia e profundidade, no sentido da teoria musical. Elas estão preocupadas com o simulacro”, finaliza Paula Galrão.

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