É possível uma marca de moda viver fora do Instagram?
Especialistas, estilistas e consultores de estratégia, comunicação e conteúdo debatem se há vida na moda fora das redes sociais.
No início da semana passada, os fãs da Bottega Veneta foram surpreendidos com a exclusão dos perfis da marca nas redes sociais. As contas de Instagram, Facebook e Twitter (YouTube ainda continua) foram deletadas e a decisão deixou muita gente intrigada. Principalmente pela falta de explicação por parte da grife. Até agora, ninguém sabe se a tal estratégia de marketing prevê um retorno para as plataformas nem se ações de outro tipo, mas visando alguma repercussão online, vão continuar existindo.
Fato é que bem antes do desaparecimento social (pelo menos em termos digitais), o diretor de criação Daniel Lee já não tinha muita afeição pelas redes. Apesar de importantes para a consolidação da nova imagem da Bottega Veneta, elas não foram exatamente o foco das estratégias de comunicação. Em diversas ocasiões, Lee deixou claro não se interessar por isso. Em entrevista à revista Cultured, disse: “Olho o Instagram e as redes sociais às vezes, mas acho que, em excesso, elas podem ser perigosas e prejudiciais ao processo criativo. Todos vendo as mesmas referências não é saudável e nem produtivo. Não transmite individualidade pra mim.”
O conceito de low profile não é novo na moda. Basta lembrar de Martin Margiela, que não fazia entrevistas presenciais nem por telefone e não aparecia em fotos. Ainda que esses fossem tempos em que as redes sociais não tinham mudado completamente a forma como consumimos moda, os designers-celebridade já começavam a dar as caras. Anos depois, a Céline de Phoebe Philo foi uma das últimas grandes marcas de luxo a criar uma conta no Instagram e, mesmo assim, se manteve fiel ao público menos aparecido, com uma presença mais discreta do que outras labels com milhões de likes e seguidores. Coincidentemente ou não, Daniel Lee passou pela equipe de criação das duas grifes.
Último desfile da Bottega Veneta, realizado em outubro, em Londres, para poucos convidados.
Desde que assumiu o atual cargo na Bottega Veneta, em meados de 2018, o estilista transformou a marca. De clássica a hype entre os fashionistas, ela ganhou até um perfil exclusivo para divulgar o trabalho do diretor de criação, o @newbottega, criado por uma fã, Laura Nycole, e já com mais de 360 mil seguidores. Em poucas temporadas, Lee elevou o famoso trançado de couro ao posto de desejo absoluto entre amantes de moda e trouxe de volta o esquecido sapato de bico quadrado, que logo se transformou em hit.
Saber disso faz toda a diferença para entender a decisão de excluir suas redes sociais. Após dois anos, Lee já conseguira formar uma comunidade sólida em torno da Bottega Veneta (a label foi a que apresentou menor perda no ano de 2020 e melhor resultado de vendas dentre os nomes pertencentes ao grupo Kering). E tudo isso, sem depender tanto das redes sociais. Ainda assim, fica a pergunta: é possível (e viável) viver fora do Instagram na era do consumo via internet?
Construção De Comunidade
A verdade é que uma marca como a Bottega Veneta não vai sumir das redes sociais mesmo após deletar suas contas. Seus fãs (principalmente depois da entrada de Lee), que compram os produtos e consomem sua imagem, engajam na sua popularidade de qualquer forma. Ter uma peça reconhecidamente da grife te faz pertencer a um grupo seleto de pessoas – que podem consumir aquelas peças e que entendem e compartilham seu valor e potencial criativo.
Muitos dizem que a decisão de sair das redes sociais é um sinal de que o luxo está voltando a ser o que era antes: superexclusivo, para pouquíssimos, um clubinho fechado de pequenos conhecedores e entendedores. Se é exatamente isso que a marca quer, não sabemos. A Bottega Veneta não respondeu às perguntas da reportagem. E nem vem ao caso. A ideia da internet como salvadora de democracias já caiu por terra. É mais do que comprovado que o acesso à informação e a imagens de grifes de luxo não é sinônimo de acesso ao produto tampouco de pertencimento.
O que podemos concluir é que, mesmo fora do Instagram, a etiqueta continuará reconhecida e influenciando tendências, já que, desde 2018, ela foi colocada nesse posto e se mantém nele por conta da legião de apreciadores. A criação de uma comunidade pela Bottega Veneta é um bom exemplo de como as redes das marcas não precisam mais ser o transmissor principal dessas informações.
“Hoje, é a comunidade quem mais produz conteúdo para algumas das marcas que trabalho”, diz Moa, consultora de criação e estratégia, com trabalhos para Adidas, Under Armour, Olympikus e Melissa. “Tem muito sobre uma linguagem de vida real, de pessoas usando aquelas peças no dia a dia. Muita gente está cansada do polimento irreal das campanhas.”
Para retratar esse movimento, ela relembra uma festa criada a partir de um lançamento de tênis da Adidas Originals. A cenografia, o espaço e a experiência fazia tudo ser altamente compartilhável. Luzes de led azuis mudavam a frequência do som ao tocar o corpo dos convidados. No dia seguinte, só se via stories e fotos no feed dos 800 convidados da festa. “As pessoas se conectam com pessoas”, fala a consultora.
Essa pulverização permite às marcas descentralizar sua criação de conteúdo. O mais importante é o que a comunidade cria. No entanto, isso só é possível no caso de uma etiqueta grande e com nome conhecido, construído há algum tempo. “Quando criamos uma experiência, as pessoas reproduzem aquele conteúdo organicamente. Elas servem como equipamento de comunicação”, completa Moa. “Vale muito mais a pena e é muito mais natural que a marca esteja na timeline a partir da visão das pessoas.”
E Para Marcas Pequenas?
O Instagram é uma mídia essencial, segmentada e, acima de tudo, barata para quem está no início da carreira ou negócio. A criação de uma comunidade coesa e fiel começa por aí. “As redes sociais representam muito mais do que uma vitrine online. Elas são a espinha dorsal da comunicação. São elas a ponte entre a empresa e o público, é por meio delas que se constrói um relacionamento próximo com ele, capaz de definir o sucesso daquela grife”, explica Karen Ercolin, consultora de estratégia de conteúdo e branding para algumas etiquetas brasileiras como Coca-Cola Clothing e Maneca.
“Basicamente, todas as estratégias são pensadas para o Instagram e, mesmo que não sejam, no caso de ações offline, são divulgadas por ele. Para as neomarcas, geralmente com uma condição financeira reduzida, a plataforma é o principal canal de atuação e todos os esforços de comunicação e marketing são direcionados para lá”. Em um momento de consumo exacerbado via internet e, principalmente, durante uma pandemia global que restringiu a locomoção e contato de quase todo o mundo, as redes sociais têm um papel muito importante de fazer o que, em outro momento, era designado às lojas físicas.
“Quando pensamos em uma sociedade de consumo hiperconectada, ainda que o offline tenha uma grande importância, o digital é um espaço potencializador, fomentador de comunidade. Hoje, o próprio Instagram vem efetuando mudanças de layout que evidenciam a venda”, comenta Ly Takai, pesquisadora e fashion branding, que, apesar de defender a importância de ter uma rede proprietária (um site ou domínio online próprio), acredita que as redes sociais são uma ferramenta essencial para qualquer marca, pequena ou não. “Ali temos um espaço que aumenta o grau de intimidade com o consumidor.”
Por outro lado…
Na mesma semana em que a Bottega Veneta saiu do Instagram, a Aluf, de Ana Luísa Fernandes, arquivou todas as fotos e postou uma imagem com a frase “qual a relevância de uma marca para além das redes sociais?”. Os conteúdos já foram republicados, mas, em entrevista, a estilista conta que estava aflita com a dependência de seu negócio dessas ferramentas. “Nos últimos tempos, comecei a ver algumas contas serem hackeadas e fiquei imaginando como seria se nosso insta sumisse, o que faríamos?”. Fernandes também quis entender como as pessoas se relacionavam com o consumo antes da comunicação digital.
Segundo ela, outro fator que precisamos levar em consideração é a maneira como os clientes se relacionam com o Instagram no Brasil – um dos países com o maior número de heavy users no mundo e onde a maioria das novas ferramentas são testadas. Diferentemente do que acontece fora daqui, o público brasileiro procura nas redes sociais de marcas pequenas e locais um engajamento e um tipo de conteúdo diferente do que é produzido pelos grandes players internacionais. “As marcas mais disruptivas fora do Brasil acabam usando pouquíssimo o Instagram e costumam ter um feed bem conceitual”, opina Fernandes.
A experiência da loja física nichada e criada para te transportar para outras realidades é outro ponto importante para entender por que grifes de renome internacional, com várias lojas ao redor do globo, conseguem depender menos das mídias digitais. Ainda assim, não dá pra negar que a ausência completa é uma atitude arriscada. “Estar em uma rede social não é só sobre divulgar produtos sazonalmente com o objetivo final de venda, é sobre criar conexões verdadeiras e duradouras. Com essas conexões, a marca constrói uma maior sensibilidade às necessidades do mercado”, completa Ercolin.
Enquanto ainda se discute sobre a decisão da Bottega Veneta, o que há por trás desse sumiço e se essa é ou não uma ação de marketing, a questão é que ela fomentou uma conversa dentro de um mercado já bastante acomodado com o funcionamento das redes sociais e sua utilidade – mesmo que os algoritmos deixem muitas completamente à mercê do acaso. Se é o caso de tornar a marca mais misteriosa e exclusiva ou a vontade de pulverizar a disseminação dessa informação em perfis de consumidores para uma abordagem mais individual e vida real de suas peças, a etiqueta italiana conseguiu o que muitos tentam e não conseguem: gerar um assunto provocativo sobre a indústria, trazendo à tona estranhezas, quebras de padrão e atitudes que fogem da norma. É dessa provocação que surgem as melhores ideias e mudanças.
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