Por que o desfile da Balenciaga incomoda?

Na semana de moda de Paris, marcas se dividem entre diferentes maneiras de abordar um mundo em situações cada vez mais adversas.


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Balenciaga Foto: Divulgação



Caminhar pela passarela da Balenciaga nesta temporada era uma verdadeira prova de resistência. Em meio a neve, vento e raios, modelos andavam com dificuldade pelo espaço circular. Não foi exatamente uma apresentação agradável de assistir – por diferentes motivos. Mas a intenção era justamente essa.

O desfile apresentado na manhã de domingo, 06.03, é uma continuação daquele de março de 2020 (inverno 2020), com a passarela parcialmente submersa em água preta. Segundo entrevistas concedidas por Demna, diretor de criação da marca, a intenção era falar sobre mudanças climáticas. A ideia era sugerir que a neve pode, num futuro não muito distante, existir apenas em realidade virtual ou artificialmente, produzida para o privilégio de poucos.

Na coleção, vimos algumas atualizações de estilos, modelagens e silhuetas há tempos trabalhos pelo estilista. Praticamente todas as peças podem ser facilmente dobradas e reduzidas para um fácil e rápido armazenamento. Um trench-coat, por exemplo, pode caber num bolso ou em uma pequena bolsa. O mesmo vale para ternos e jaquetas de alfaiataria. Também não há botões, as roupas do inverno 2022 são fechadas por zíperes ou feitas para serem vestidas pela cabeça, como blusões e camisetas. Alguns dos looks que parecem compostos de vestido de manga longa, capa e legging, eram, na verdade, uma coisa só.

A praticidade e facilidade de compactação e armazenamento sugerem uma vida em constante movimento, algo nômade. E é aí que outros desconfortos começam a extrapolar o frio e desequilíbrio das modelos. A nova bolsa da Balenciaga é uma versão de couro de um saco de lixo. Alguns modelos atravessaram a redoma de vidro apenas de cueca e toalha (uma espécie de pelerine de cashmere) enrolada no corpo. Lembram pessoas que tiveram de sair de casa às pressas. Fugitivos, refugiados em versão de luxo numa imagem bem próxima àquelas registradas na atual guerra entre Rússia e Ucrânia. A ressignificação do banal, a elevação do cotidiano e usar e o desfiles como plataformas para discussão de acontecimentos sociais não são novidades no trabalho de Demna. Agora, porém, a situação é um tanto mais delicada.

Essa não é a primeira vez que migrações populacionais causadas por disputas bélicas aparecem na passarela. O inverno 2000 de Hussein Chalayan, aquele em que as modelos vestiam os móveis de uma sala, foi inspirado na vida de pessoas que tiveram de deixar suas casas durante guerras. A apresentação foi elogiadíssima, considerada uma performance artística e ficou registrada na história da moda. Vale ressaltar que o estilista em questão é turco-cipriota e teve sua infância marcada pelos conflitos entre Turquia e Chipre, nos anos 1970.

 

Acontece que, à época daquela apresentação, não havia tanta proximidade com uma guerra das proporções da atual. A imagem também não era desconfortavelmente próxima às publicadas e transmitidas por canais de notícia sobre o que pode ser a maior crise de refugiados do século, segundo a ONU.

Demna tem uma visão e entendimento muito diferente da maioria de nós sobre o atual conflito. Aos 10 anos, em 1993, abandonou a casa em que vivia com sua família, na Geórgia, para escapar da guerra na Abecásia. Uma das primeiras cidades onde moraram depois do deslocamento foi Odessa, na Ucrânia. Em comunicado oficial, o estilista afirmou que a situação das últimas semanas desencadeou uma série de emoções represadas em sua memória. “Passei pela mesma coisa 30 anos atrás. O mesmo agressor, os mesmos aviões militares bombardeando casas, o mesmo motivo geopolítico.”

O desfile começou com a voz do diretor de criação lendo, em ucraniano, um poema escrito por Oleksander Oles, poeta e símbolo da resistência cultural da Ucrânia morto por nazistas em 1944. Sobre cada assento, havia uma camiseta nas cores da bandeira ucraniana estampada. Os dois últimos looks eram um amarelo e outro azul. “Me tornei um refugiado para sempre”, escreveu o estilista. “Em tempos como esse, a moda perde sua relevância e seu direito de existir.”

 

Mas ela ainda existe. E vende. O desfile da Balenciaga, assim como tantos outros, continuaram com níveis variados de reconhecimento e respeito sobre o fato. Demna disse que não queria se render mais uma vez a uma guerra. “Já nos sacrificamos demais”, disse. Há quem veja o ato como homenagem, um incentivo à resistência. Há quem veja insensibilidade, mercantilização e glamourização de imagens e situações trágicas. É uma tensão crônica, que sempre fica aguda quando acontecimentos externos furam as bolhas da moda e interferem no funcionamento do sistema.

Qual é a atitude correta? Fala-se ou não sobre o assunto? Engaja ou finge naturalidade? Vida que segue? Não tem resposta certa, tem tom, bom senso e respeito. Ainda assim, são tempos conturbados, extremamente midiáticos e hiperbólicos. É esperado – e cobrado – posicionamento sobre tudo e de todos. Fiscalização e policiamento são intensos. É tanta pressão que, às vezes, vale mais apelar para a irracionalidade, se fazer de doida.

É mais ou menos por aí que caminha o espetacular inverno 2022 de Loewe. Os primeiros looks eram vestidos de couro ondulado, como se uma brisa estivesse soprado, porém completamente estáticos. O couro foi molhado e depois moldado naquelas formas. Um outro vestido trapézio tinha um carro preso na barra, enquanto um modelo bem parecido trazia scarpins vermelhos presos pelo tecido. Havia também lábios franzidos cobrindo bustos ou bexigas de látex como sutiã, presas por faixas de pano ou como salto de sapatos. No meio da passarela, um amplo espaço retangular vazio, haviam morangas de couro, feitas pela artista Anthea Hamilton, como se tivessem caído do céu. Assim mesmo, bem sem sentido mesmo.

Loewe, inverno 2022.

Loewe, inverno 2022.Foto: Divulgação

Na temporada passada, o diretor de criação Jonathan Anderson rompeu com as normas do vestuário ao trabalhar com volumes estruturados pouco usuais e sem a menor consideração pelas formas do corpo humano. Lá atrás, ele citou o movimento surrealista como uma de suas principais referências. Agora, não é diferente, apenas mais focado. O irlandês se debruça sobre a vertente feminista da escola artística. O que explica alguns dos objetos e silhuetas. Um dos melhores exemplos, são os looks com saia felpuda e top ajustado, numa clara referência à série de objetos domésticos da artista suíça Méret Oppenheim.

O estilista também parece especialmente interessado em como o movimento interfere na percepção da silhueta e nas formas que gera em relação ao corpo. Como o vento bate, deforma e define as roupas que usamos? Jonathan parte dessa pergunta para criar blusas e vestidos que, em fotos, parecem cetim respondendo ao caminhar das modelos, mas, no vídeo, se mostram rígidas. Tem a ver também com o movimento e velocidade das transformações sociais e seus símbolos. Daí o carro, que marca a transição entre a era industrial e a modernidade.

Loewe, inverno 2022.

Loewe, inverno 2022.Foto: Divulgação

O designer descreve a coleção como “absurda, irracional e agradavelmente perturbadora”. Mas, assim como na estação passada, tem muita roupa para além das loucurinhas: bons blazers e calças molinhas de alfaiataria, casacos importantes, vestidos justos com estampa de balões, regatinhas transparentes e aquele modelo meio camisola arredondada que já é uma assinatura de Jonathan na Loewe.

Outra solução possível para tempos adversos é começar de novo. Ou melhor, apenas começar, sem repetir o que já foi. Reset total. Dentre todos os estilistas da nova geração, a que melhor se aproxima dessa ideia é Marine Serre. Apresentada numa galeria de arte, com reproduções descolonizadas de obras clássicas, sua nova coleção é, sem dúvida, sua mais madura e potente até o momento. Pense em peças de alfaiataria de corte preciso, formas bem definidas, quase protetivas, feitas com uma série de tartans, pied-de-poule e outras padronagens tradicionais reaproveitadas de descartes e estoque morto.

Marine Serre, inverno 2022.

Marine Serre, inverno 2022.Foto: Divulgação

A estilista francesa ficou conhecida por sua abordagem responsável sobre básicos e peças com ares quase futuristas. Até então, quase todas suas coleções vinham carregadas de referências e imagens distópicas ou pós-apocalípticas. O fim, a destruição eram sensações recorrentes. Agora, pela primeira vez, o clima é diferente. Se não exatamente otimista, é definitivamente mais positivo. Suas peças nunca se apresentaram tão sofisticadas e bem acabadas, dando toda uma nova perspectiva e elevando o status da moda upcycling.

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