Por que precisamos falar sobre masculinidades?

A historiadora e diretora do museu do Fashion Institute of Technology Valerie Steele fala sobre a importância da uma ideia plural sobre a representação do homem na moda.


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Os desfiles de verão e resort 2021 de marcas como Dior Homme, JW Anderson, e Gucci colocaram em pauta um assunto há tempos discutido pela moda e ainda bastante urgente: a representação masculina. Ou melhor, a desconstrução da representação clássica do que constitui a imagem do homem.

Valerie Steele historiadora de moda e diretora do museu do FIT em Nova York dedicou alguns anos de sua carreira sobre o assunto. “Usamos roupas em nossos corpos e, embora nossos corpos tenham aspectos que não dizem respeito apenas a sexo, sexualidade e de gênero, esses permanecem os mais importantes transculturalmente”, diz ela em entrevista a ELLE. “As pessoas têm uma opinião muito forte sobre esses aspectos da nossa identidade a partir do que vestimos.”

Para ela, a maneira para quebrar barreiras e desconstruir conceitos datados está numa visão e entendimento plural sobre nossas identidades, sexualidades e gênero.


Nada disso é inteiramente novo e muito já foi visto antes. Existe essa ideia de que roupas específicas de homem e mulher são um fenômeno ocidental moderno e não são. A distinção entre masculino e feminino sempre esteve presente na história. As pessoas sempre foram empurradas para algum pólo de gênero. Por exemplo, na Europa do século 12, se você fosse uma pessoa intersexo, era necessário escolher um gênero pelo qual seria representado a vida toda. Ninguém podia ficar indo e vindo, se vestindo como homem e depois como mulher.

Mas a moda é como um aspirador gigante: ela flutua sobre todos os estilos, em todos os lugares, e qualquer subcultura pode ser sugada. Foi assim como o couro do BDSM, com o look hippie, com a estética punk e, agora, com a fluidez de gênero. De certa forma, isso pode ser ilusório por se tratar apenas de uma expressão de moda. Por outro lado, espalha ainda mais aquelas ideias. Isso abre as pessoas para a ideia de que talvez as pessoas pertencentes a subculturas sejam mais parecidas com você do que você pensa.

Existem vários exemplos de transgressões no uso de “roupas masculinas” nos últimos séculos, o mais recente talvez ocorrendo na década de 1960. O que você vê das semelhanças e diferenças entre esses movimentos de quebra de padrões do passado e a moda masculina atual?

Havia algo realmente animador surgindo nos anos 60. Havia muitos rapazes que estavam adotando aspectos que pareciam femininos, como o cabelo comprido. Ainda me lembro do meu pai dizendo “é impossível diferenciar os meninos das meninas”. E isso era principalmente por causa do cabelo. E aí, as mulheres começaram a usar cabelo curto.

Lembro da loucura das camisas masculinas floridas, uma grande tendência dos anos 1960. Mas elas eram também transgressoras, porque florais eram associados ao feminino pelas pessoas mais velhas daquela época. Houve ainda a moda dos kaftans, movimento iniciado por homens gays, como Yves Saint Laurent, mas adotado por heterossexuais, como os Rolling Stones. O kaftan foi uma declaração importante de crossover.

Depois de tudo isso, houve um visual macho muito distinto que começou a aparecer nos anos 1970. Quando eu morava em São Francisco, no início daquela década, morava em uma comunidade gay e lésbica, e podíamos ver que os caras estavam mudando de uma aparência feminina para algo mais viril. E as mulheres acompanharam. Foi quando começamos a vestir calças, jaquetas de couro e botas pesadas. Não era mais o look feminino butch, mas um tipo de androginia muito masculina.

Ao mesmo tempo que esses estilos começavam a se afastar de uma visão binária, ainda havia uma espécie de consentimento de que o masculino era melhor para ambos. Os homens não estavam mais adotando peças do guarda-roupa feminino, não havia mais caras usando tons pastéis e seda. Todo mundo estava com botas pesadas e jaquetas de couro.

Desde então, esses movimentos têm enfrentado altos e baixos. A insistência na divisão de gênero ainda é muito alta e depende principalmente da criação dos designers. Alguns deles foram muito mais claros sobre uma dicotomia. Tradicionalmente, Versace seria um exemplo para essas regras de papéis de gênero na moda. Quando outras marcas, como Armani, onde os homens podiam ser delicados e sexy e as mulheres podiam ser mais dominantes, acabou trazendo uma espécie de androginia para ambos os sexos.

“A discussão sobre diferentes masculinidades precisa ser trans-racial, para todos.”

As mulheres adotaram roupas masculinas para lutar por uma maior participação na sociedade e contra a objetificação de seus corpos. Transpor os códigos de vestimenta das mulheres para os homens seria uma forma de quebrar a masculinidade tóxica?

Claramente para as mulheres, as roupas masculinas eram associadas ao poder. Então, se você quer poder, você deve se vestir como um homem. Usando calças, por exemplo. Descobrimos isso no século XVII. Mas quem gostaria de estar na posição de uma mulher naquela época?

As mulheres têm mais liberdade em termos do que vestem, mas é uma liberdade que não é valorizada pela sociedade. Em quase todas as culturas, nascer homem e querer ser mulher parece um passo atrás. Mulheres transsexuais dizem que foi um choque perceber como os homens as tratam mal após a transição.

Acredito que os homens não gostariam de se vestir com roupas femininas para se livrar da masculinidade tóxica. Eles provavelmente sentiriam uma necessidade maior de se proteger de outros homens tóxicos se fizessem isso, então não funcionaria. É preciso muita coragem para estar disposto a dar qualquer sinal afeminado ou de agir como uma mulher.

Falar sobre masculinidades no plural é uma saída?

Falar sobre masculinidades no plural é uma das coisas mais importantes que você pode fazer para quebrar a masculinidade tóxica. Há um livro do psicanalista R. W. Connell, chamado “Masculinidades”, e ele fala sobre como os meninos formam seu senso de masculinidade de maneiras diferentes. Ele mostra como algumas crianças são forçadas pelos seus entornos a obter aspectos tóxicos da masculinidade.

Onde o corpo negro se encontra nessa discussão?

Historicamente, o corpo masculino negro tem sido extremamente vulnerável à violência social branca e, ao mesmo tempo, todos os tipos de projeções brancas fazem o corpo masculino negro ser hipersexualizado. Ele é agressivo, ele é mais masculino, seu pênis é maior. Tudo isso são projeções de medo e ódio que vêm da sociedade branca contra o corpo negro – e não somente o masculino, mulheres negras também são muito hipersexualizadas.

A discussão sobre diferentes masculinidades precisa, por tanto, ser trans-racial, para todos. Os homens negros costumam ser estereotipados por serem hipersexuais; os homens asiáticos na América do Norte costumam ser estereotipados por serem menos masculinos. É a ideia de que existe algum tipo de hierarquia de masculinidade.

Vemos novos comportamentos sendo celebrados atualmente. Há um consumo enorme da pluralidade de estilos de vida através de vídeos e fotos em plataformas como Instagram e Tiktok. Como você acha que essas novas ideias estão afetando a sociedade em geral?

Nas últimas décadas, vimos que realmente há muitas tribos e que a sociedade está se movendo para uma multiplicidade de ideais, o que é ótimo se esperamos uma pluralidade de masculinidades.

Antes, era tudo muito mais rígido. Na década de 50, a imagem social defendida era um homem de terno de flanela cinza e uma dona de casa esperando por ele. Houve outros momentos no passado em que esse ideal foi rompido, mas acho que a quebra de hoje vai ser muito difícil para os conservadores reverterem. As pessoas agora estão realmente sentindo que têm o direito de sentir e expressar quem realmente são por dentro. À medida que são expostos a diferentes alternativas, torna-se mais possível para eles reconhecerem outras maneiras de ser.

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