Chão de roupa, chão de comida

Agricultura regenerativa enlaça indústria têxtil e alimentícia, restaura o ambiente e qualifica a vida de famílias no campo.


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“Fala-se muito disso agora, mas o meu pai trabalhava dessa maneira, no interior da Paraíba, há mais de 50 anos. É sobre a sabedoria da terra, das pessoas que produzem no solo e que precisam cuidar dele”, diz Francisca Vieira, CEO da Natural Cotton Color, sobre agricultura regenerativa. E ela está certa, as práticas são antigas. A novidade é a ligação da moda, principalmente a de larga escala, com tudo isso, vide os exemplos recentes de marcas como Renner, Timberland e Patagonia, todas com compromissos e alguns resultados de integração do sistema regenerativo em suas cadeias.

Na extremidade luxuosa da indústria, não é diferente. Grupo Kering e Chanel são dois exemplos que merecem destaque. A maison francesa, por exemplo, criou o Chanel Mission 1.5°, plano de engajamento que contempla uma série de reconfigurações na sua operação em prol do meio ambiente. “A empresa tem sido abastecida por importantes materiais naturais há muitos anos pelos mesmos fornecedores. Essa relação colaborativa é importante para a transição em direção a práticas agrícolas que ajudam a restaurar e regenerar recursos naturais, enquanto dá suporte às comunidades que dependem deles”, afirmou a Chanel em resposta à ELLE.


Prospecções otimistas afirmam que práticas regenerativas têm o potencial de sequestrar 100% da emissão atual de CO2 na atmosfera, segundo o Rodale Institute, e até reverter a crise climática. Mas deixando as profecias messiânicas um pouco de lado, para se explicar a agricultura regenerativa é importante destacar que não existe um conceito formalizado sobre o que ela é. O termo está sendo entendido e formalizado por diferentes autores.

“A questão holística é, na verdade, olhar para a terra não como uma commodity coberta por soja e drones, mas com foco no que o solo e as pessoas que trabalham nele precisam.” – Ana Sudano

Contudo, é possível partir do entendimento de que seja uma abordagem que visa a reconstituição do solo com práticas ancestrais e com um olhar holístico sobre os ciclos naturais do ambiente. As ações buscam integrar diferentes culturas de plantio e levam em conta aspectos ecológicos e sociais. Exemplo: a fibra de algodão é bastante utilizada pela indústria têxtil em todo o mundo. Como ela é natural, muitas vezes é entendida como sustentável. Mas não é bem assim, já que a maior parte é cultivada em sistema de monocultura, que promove a desertificação do solo por conta da utilização de químicos e má gestão de recursos hídricos.

Com a agricultura regenerativa, o algodão é plantado ao lado do milho, feijão e gergelim, por exemplo, e também de espécies não-alimentícias. Dessa forma, são gerados benefícios como a troca de nutrientes, além da criação de sombra ou exposição ao sol, já que elas possuem ritmos de crescimento e tamanhos diferentes. Algumas outras práticas são a cobertura e redução da aração do solo e a pastagem de gado, que estimula o crescimento de algumas espécies. Tudo sem substâncias tóxicas e grande maquinário.

“A questão holística é, na verdade, olhar para a terra não como uma commodity coberta por soja e drones, mas com foco no que o solo e as pessoas que trabalham nele precisam”, explica Ana Sudano, co-fundadora do Brasil Eco Fashion Week, primeira semana de moda sustentável do país.

A agricultura regenerativa funciona em formato familiar. O alimento produzido pode ser utilizado para a subsistência, comercializado e também como ração para animais. “Um empresário que pensa de médio a longo prazo, que faz conta, vê o potencial evidente. A terra tem um limite em relação à degradação. Não é utopia, é negócio”, complementa Sudano.

Tecnologia e escala

“Em 2018, por meio do Instituto Lojas Renner, iniciamos o Tecendo Autonomia, projeto com uma comunidade quilombola de 300 mulheres na região de Catuti, norte de Minas Gerais”, explica Eduardo Ferlauto, gerente sênior de sustentabilidade da marca. “Elas já tinham uma cultura de manejo de algodão ancestral, que foi potencializada com técnicas regenerativas com o apoio de consultores agrônomos”, continua ele.

Foto de roupas feitas com algod\u00e3o org\u00e2nico proveniente de agricultura regenerativa.

Camisetas de algodão da Renner feitas a partir do material cultivado e colhido por mulheres quilombolas da região do Catuti, em Minas Gerais.Foto: Thays Bittar

O solo da região estava infértil. Após a regeneração, associando-se à plantação de milho e feijão, dentre outras ações, 6.5 toneladas de algodão foram geradas. Em março deste ano, uma coleção de camisetas foi criada com a produção. E, em janeiro de 2021, será lançada a Reminas, segunda leva de produtos com o algodão de Catuti.

A quantidade, entretanto, não é compatível com a sustentação atual do mercado de varejo. Torna-se evidente aqui o primeiro ponto capaz de aumentar volume e reduzir custo: pesquisa tecnológica. “Temos estudado para chegar a uma equação de escala para esse tipo de iniciativa. Uma possibilidade analisada é reutilizar o caroço do algodão após o processo de descaroçamento”, explica Ferlauto.

Existe uma pré-concepção de que produtos com baixo ou nenhum impacto negativo ambiental são sempre mais caros. “Na verdade, com o consórcio de diversas culturas, o custo é dividido. Ou seja: o preço final de cada uma pode ficar mais barato”, explica Marenilson Batista, pesquisador e um dos coordenadores do projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos, da Embrapa.

Agricultoras da regi\u00e3o do Catuti, em Minas Gerais, em planta\u00e7\u00e3o de algod\u00e3o.

O algodão plantado e colhido por mulheres quilombolas na região do Catuti, em Minas Gerais.Foto: Divulgação | Instituto Lojas Renner

Outra alternativa possível é associar diferentes matérias-primas. “É preciso ser criativo e estratégico para ter mais opções de tecido com menor impacto e preço competitivo. A Natural Cotton Color e EcoSimple fizeram isso ao misturar o algodão orgânico com o reciclado”, argumenta Gabriela Marcondes Schott, CEO da Ecomaterioteca, acervo itinerante que reúne, cataloga e classifica materiais têxteis brasileiros responsáveis.

Repensar logística e maquinário

O algodão do semiárido, onde a Natural Cotton Color de Francisca Vieira atua como referência, muitas vezes é enviado para São Paulo ou para o Sul, onde é transformado em fio e depois em tecido. Toda essa logística eleva o custo. Seria interessante, então, aliar práticas regenerativas de manejo do solo ao desenvolvimento das indústrias têxteis locais, com fábricas e dispositivos menores que possibilitem mais testes.

“Por conta das limitações do maquinário atual, só consigo fiar (transformar em fio) a partir de 4 toneladas. Em um dos projetos com agricultura familiar, conseguimos 300 kg de algodão. Como eu poderia fazer a fiação dessa quantidade com uma máquina portátil no próprio assentamento? Não é só regenerar o solo, mas toda a estrutura de produção”, explica a estilista Flavia Aranha.

“Quando o agricultor vende o algodão em rama, ou seja, assim que é colhido e ainda com caroço, ele praticamente não paga as suas despesas. Por isso a Embrapa desenvolveu o minidescaroçador de algodão, que o transforma em pluma (estágio anterior ao fio). A intenção é que ele possa, no futuro, vender o fio”, explica o pesquisador da Embrapa. “Assim, ele vai agregar mais dinheiro ao seu sistema de produção, investir em máquinas poupadoras de mão de obra, já que hoje o trabalho é muito penoso, e reduzir o custo final.”

Modelo posa com look de algod\u00e3o da estilista Flavia Aranha.

Look de algodão Flavia Aranha.Foto: Fernanda Tricoli

O dia de trabalho do agricultor custa cinquenta reais. Além disso, o quilo de algodão regenerativo em rama é vendido por, em média, R$ 3. Contudo, só para colher, o gasto é de R$ 1,50 por quilo. “O que sobra é inviável. Para limpar um hectare na enxada, são gastos 20 dias úteis. Quando você calcula tudo, não tem benefício”, explica Batista.

E mais uma questão: para produzir em volume, ao invés de contar com apenas um fornecedor, seria necessário associar-se a diferentes famílias. “Não tem como fazer agricultura regenerativa em grandes extensões de terra, você precisa das pessoas. Cada família dá conta de um pedaço”, complementa Aranha, que trabalha com cerca de 40 cooperativas (não apenas têxteis).

“A nossa produção aumentou nos últimos anos, mas não centralizamos em uma única comunidade. Conseguimos manter o mesmo modelo, com a ideia de complementaridade ou até mesmo paridade de fornecimento”, afirma a estilista. A regeneração é sobre desenvolver muitos e não enriquecer poucos. “Não acredito em negócios dando certo em sociedades que fracassaram”, diz Sudano.

Preço é resultado histórico

Em 1534, os portugueses implantaram por aqui as capitanias hereditárias. Os séculos se passaram e, segundo o Atlas Fundiário de 2006, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 3% de todas as propriedades rurais do país são latifúndios. Pouco? Na verdade, não: os 3% ocupam 56,7% de todas as terras destinadas à agricultura do país. Ou seja, a área correspondente a São Paulo e Paraná pertence a 300 pessoas.

“Falar de agricultura regenerativa no Brasil é tocar na necessidade de reforma agrária e tributária. Com isso, destaca-se também a urgência em atualizar os maniqueísmos da cultura partidária”, afirma a co-fundadora do Brasil Eco Fashion Week.

“Sustentabilidade precisa de incentivo fiscal, além de tecnologia e do setor privado. Como é que se cobra do agricultor 18% de taxação sobre o quilo de algodão? A indústria têxtil no Brasil virou dinossauro, ao ponto de estarmos vivendo um apagão de fiação. O setor não investiu em maquinário, era preferível comprar fio da China e colocar direto aqui”, explica Francisca, da Natural Cotton Color.

Sim, o custo e volume de tecidos regenerativos podem ser viabilizados para a larga escala. É possível, e desejável, lucrar. Porém, perder a perspectiva histórica da terra neste momento faz com que corramos o risco de cair em ciladas antigas. Um ótimo e subvalorizado espaço de educação sobre o assunto é a literatura nacional. Romances-traumas como Grande Sertão: Veredas e Torto Arado adentram nas potências e consequências da relação entre o Brasil S/A com a terra.

“Sustentabilidade precisa de incentivo fiscal, além de tecnologia e do setor privado.” – Francisca Vieira

“O preço baixo que o mercado colocou anteriormente não estava correto. Houve no passado um erro de cálculo que não pagou bem o agricultor”, afirma Larissa Duarte, mestre em Têxtil e Moda pela USP e co-fundadora da Jurema, iniciativa que propõe o desenvolvimento de agrofloresta têxtil. “O design de moda ficou muito tempo na concepção de superfície e imagem, no front end, mas agora precisa pensar em tudo que é matéria e processo”, adiciona a pesquisadora.

Não só ‘precisa’ como tem sido ‘obrigado’. A bolsa de valores conta com o índice ESG, que mede a governança social e ambiental de empresas. O Brasil é o segundo maior exportador de algodão e o mercado europeu aumenta sucessivamente a pressão regulatória sobre as condições de trabalho e uso de pesticidas. A mesma Europa que desmatou e escravizou por pau-brasil e “ouro branco” (açúcar), e que estimulou condições análogas à escravidão em países como China e Índia.

Carregar esqueleto nas costas

A questão agrária é um dos pontos mais complicados ao se pensar na agricultura regenerativa para o têxtil nacional. Não que sejam equações fáceis de serem alcançadas, longe disso, mas logísticas são revistas e tecnologias criadas quando há associação público-privado. Agora, o desequilíbrio latifundiário é um esqueleto carregado há séculos, nunca enterrado.

O Brasil, por conta da biodiversidade e relativa maturidade em sistemas agroecológicos familiares, desponta como um dos grandes nomes capazes de desenvolver práticas de regeneração. “Existe um estigma sobre os produtores asiáticos e uma consequente procura por outras fontes. Temos uma indústria com certa qualificação, que já experimentava com materiais mais sustentáveis, e mão de obra farta, mas que precisa ser mais capacitada e assegurada”, argumenta a CEO da Ecomaterioteca.

Porém, é preciso ter cuidado: quando a demanda é grande, o risco de precarização do trabalho aumenta. “O público começou a pressionar as marcas, mas muitos estilistas e empresários pouco sabem e não estão conectados com quem colhe da terra. Eles começaram a entrar em contato com a gente pedindo o algodão regenerativo para ontem, mas não é assim. É preciso que eles venham, entendam os processos e invistam neles”, conta o coordenador da Embrapa.

Além disso, a solução não é apenas o algodão regenerativo, mas olhar para o universo de fibras no Brasil, com modelos industriais que contemplem essa diversidade e regenerem o solo e os trabalhadores. “É a mesma questão da soja. Ela ia salvar o mundo, mas com a lógica da monocultura, virou vilã. Talvez se ela tivesse dividido espaço com outras espécies, não teria se tornado tão problemática”, diz Flavia Aranha.

Com variação material, também cria-se pluralidade estética. O sustentável não deveria ter uma cara única, exclusivamente associado a tons crus, minimalismo, aulas de ioga ou à Flavia Aranha (segundo a própria). Punk e disco também podem ser regenerativos. “É possível mesclar látex com algodão, tingir de preto, ficar com cara de plástico e ser sustentável. Não é simples, exige pesquisa, mas o movimento precisa avançar para outros estilos”, finaliza.

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