Quanto vale um moletom?

A gente sabe que a resposta não existe, mas quer entender porque são os empresários negros, principalmente, que precisam lidar com essa pergunta.


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“É foda ser empresário preto. Você subverte a lógica, cria modelo de negócio que o mercado todo copia, emprega, vira referência, não demite no meio da pandemia, reverte faturamento para ajudar seus iguais, ajudando a resolver problemas do Estado estruturalmente racista. E, ainda assim, depois de tudo isso, tem que responder sobre o preço da porra do moletom, que é mais barato que qualquer porra de loja de departamento gerido por branco no país inteiro. Deu pra entender a profundidade do racismo na sociedade?”. Quem escreveu isso foi Evandro Oliveira, Fióti, músico, empresário, nome à frente da Lab Fantasma, ao comentar uma das perguntas dirigidas a Emicida, seu irmão e sócio, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido nesta segunda-feira, 27/07.

Em dado momento do programa, a jornalista Vera Magalhães, responsável pela mediação, replicou uma dúvida que vinha das redes sociais: “a galera aqui do Twitter está perguntando se é muito caro um moletom da Laboratório Fantasma, se a galera da quebrada tem dinheiro pra comprar. Tem essa crítica rolando aqui”. Emicida respondeu prontamente: “essa crítica parte de pessoas que não vão no fluxo, ver um moleque com um Mizuno de mil reais no pé. O lugar que eles atacam é o de uma pessoa preta que está em ascensão. Eu conheço a cadeia produtiva com a qual trabalho. Eu sei o quanto ganha uma costureira. Eu não vou vender uma camiseta a R$9,90 para colocar uma mulher ganhando um salário de miséria e que poderia ser minha mãe. Quem tem que se questionar sobre o preço das coisas que vende são as pessoas que conduzem a cadeia de uma forma irresponsável, que mantém pessoas em sistema de produção que são análogos à escravidão. A gente não se relaciona com isso. Todas as pessoas que se vinculam com a Laboratório Fantasma, em qualquer função, usufruem da conquista. E é por isso que em nosso desfile de moda as costureiras estão lá na primeira fila chorando, emocionadas, porque nunca experimentaram costurar uma roupa e assistir a ela ser lançada, junto com os jornalistas chiques, os críticos de moda fodidos, os empresários, os artistas. Isso é uma conquista coletiva. Isso é o hip-hop. Essa crítica não chega nem a ofender, porque eu acho que é uma coisa tão pequena que você não percebe o que está falando. Você está dizendo que uma pessoa preta, pobre, para ser verdadeira, tem que vender as coisas dela ruim, barata, zoada. Não! Muito pelo contrário. A gente trabalha para que as pessoas se emancipem, inclusive economicamente, e possam usufruir disso aí. E para que, pessoas que possam pagar, paguem e alimentem a cadeia. Tem uma pessoa que está muito orgulhosa em casa assistindo este programa, porque essa camisa que ela costurou ajudou a pagar a escola do filho, o curso de inglês da filha, o tratamento de saúde.”

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Lab em sua estreia na SPFW N42

Leticia Godoy / FOTOSITE

A pergunta feita a Emicida não é nova. Quem tem memória sabe que esse tipo de questionamento é dirigido a ele e a seu irmão Fióti desde 2016, quando o selo musical Laboratório Fantasma anunciou o seu braço comercial de roupas, a Lab. Foi em outubro daquele ano que a ELLE deu, com exclusividade em sua edição impressa, a primeira coleção da marca que viria a integrar o São Paulo Fashion Week.

Na reportagem de Vivian Whiteman, a Lab é explicada como a linha de merch, de peças simples, que passaria a dar braçadas maiores no mercado, com o lançamento de itens mais elaborados, ainda que bastante comerciais — um streetwear com mais conceito. Na época, a empresa contava com o estilista João Pimenta como diretor criativo, o que acarretava em peças mais autorais e refletia em um equilíbrio de preços que atendia tanto o padrão de mercado comparado às grifes participantes do SPFW quanto os fãs com menos grana, podendo inclusive contar com parcelamentos.

E o que rolou foi uma braçada atrás da outra. O primeiro desfile da Lab, no SPFW N42, explodiu em diversidade de cores e corpos. Tudo isso com uma coleção interessante que contava a história de um samurai negro, com modelagens de quimonos e estamparias inspiradas em regiões africanas. Na segunda temporada, enegreceram a bandeira do Brasil numa imagem muito forte, atemporal, e colocaram em destaque o trabalho da mãe, Jacira, que colaborou com bordados únicos. A última apresentação da marca no evento foi uma festa que só quem estava lá viveu. Rael, Drik Barbosa e Kamau cantaram enquanto MC Carol desfilava de coroa na cabeça, princesona, entre gritos e aplausos, numa energia rara de ver em um evento de moda, geralmente cheio de carão. A marca ainda assinou colaborações com grandes empresas, como a C&A, e se mostrou alinhada às táticas de vendas mais novas do mercado, experimentadas na época, como o see now buy now, que disponibilizava as peças logo depois de serem apresentadas ao público.

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Lab na SPFW N43.

Rafael Chacon / FOTOSITE

Ainda que nesse contexto de renovação de práticas do mercado e de sucesso, enfrentou críticas, principalmente nas redes sociais, em relação ao valor das roupas. No final de 2016, em entrevista feita pela ELLE e replicada pelo site Huffpost Brasil, as irmãs Tasha e Tracie Okereke dizem: “Quem criou o streetwear foi a rua, e a nossa moda não chegava na alta moda. Ou melhor, as referências até chegavam, mas nas mãos de quem nunca foi da rua. É bom a gente ocupar o espaço que é nosso, sabe? Na alta moda também. Muitos dos fãs de rap também questionaram o valor das peças, mas o povo se mata para comprar um item da Supreme. As pessoas precisam se informar de todo um aspecto social por trás do trabalho independente. Tem muita roupa barata e até cara que tem trabalho análogo à escravidão envolvido. Eles [a Lab] precisam pagar a mão de obra por trás de tudo”.

Isso faz pensar que o problema não seja exatamente o preço, uma vez que o questionamento apareça novamente agora, com o moletom mais caro masculino da Lab saindo por R$179 e o feminino não chegando a R$100. E faz lembrar um outro episódio recente, este envolvendo Rihanna e a sua marca de roupas, a Fenty. As proporções de negócios aqui, claro, são diferentes e isso deve ser considerado, mas o padrão da crítica é semelhante. Há uma semana falamos no podcast Pivô sobre a chegada da Fenty ao Brasil, por meio do e-commerce Farfetch. O conceito de caro e barato para um país tão desigual como o nosso é bastante vago, mas, sim, podemos dizer que para a renda média do brasileiro as peças da Fenty não podem ser chamadas de acessíveis. E isso repercutiu no Twitter — onde, sim, tudo repercute.

“Mas ninguém fala como é importante ter um mercado de luxo negro circulando no mundo. Rihanna está entre uma das mulheres mais bem sucedidas da indústria, com uma marca de luxo negra. Acho importante abrir essa discussão, porque tem gente que paga 1, 2, 3 mil em um tênis de uma marca esportiva, mas não investe em um mercado de luxo preto”, afirma Suyane Ynaya, editora de moda da ELLE, em relação ao assunto.

Abordar o tema que Suyane levanta é uma tarefa complexa, mas importante. Parece pouco plausível sair em defesa do valor de uma roupa que custa vários salários mínimos. O moletom de Riri, inclusive, custa quase R$ 3 mil na loja virtual. De toda maneira, é incrivelmente injusto como Rihanna, dentro do contexto em que atua, ao lado de outras marcas de alto-padrão, seja a única a ter o seu valor contestado. A Rihanna cantora, atriz, importante voz política, todos conhecem. Mas a Rihanna empresária da indústria de moda e beleza, que muda as regras do jogo, tende a não ser reconhecida com a justiça que merece.

No que se refere apenas ao setor de moda, a Fenty já é histórica porque se trata de uma das únicas duas casas criadas do zero dentro de um conglomerado de luxo como o LVMH. Isso só havia ocorrido com Christian Lacroix, em 1987. Com o feito, Rihanna se tornou a primeira e única mulher negra a assumir o topo de uma das 70 casas do grupo. Vale a ressalva de que a linha de roupas da Fenty nem é o braço comercial mais interessante da cantora, ela abala mesmo as estruturas no setor de lingerie e maquiagem. Mas levando em consideração todos esses fatores o mínimo é que bitch, you better have her money!

Reconhecendo um negócio

Durante a madrugada, Emicida voltou ao assunto, ponderando tudo e escrevendo em seu perfil no Twitter: “Amigos, vejo vocês considerarem desnecessária a pergunta sobre o preço das roupas da Lab. Eu discordo. Fomos alvo de muita idéia furada sobre isso, reproduzidas inclusive por gente com origem semelhante a nossa. Gente influente aliás, o que nos entristeceu bastante na época. Achei bacana poder falar sobre nossa cadeia produtiva responsável, não só com matéria prima mas também com a qualidade de vida de quem executa a mão de obra. Vamos mais longe porque caminhamos juntos e achei importante de verdade poder refutar em rede nacional um argumento que todos vocês já viram aqui.”

A fala de Emicida toca em um ponto fundamental. Muitas vezes a crítica em relação ao preço de uma roupa vem de um lugar de desconhecimento, de ignorância sobre como o mercado funciona. É o reflexo de uma indústria da moda que pouco colabora em termos de transparência e não mostra o quanto custa uma produção sustentável e responsável para a manutenção de um negócio, ainda mais o independente. Mas fica a dúvida do porquê essa pergunta recai de maneira específica nas grifes comandadas por profissionais negros, que precisam constantemente reafirmar o seu valor.

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Encerramento da apresentação da Lab na SPFW N44.

Rafael Chacon / FOTOSITE

É curioso que essa pergunta direcionada à Emicida ocorra exatamente um dia após o lançamento da Ginger, marca que nasceu com uma coleção de moletom e tem como uma das sócias a atriz Marina Ruy Barbosa. Lá, uma blusa de R$ 527 esgotou no mesmo dia em que foi anunciada. Houve crítica em relação ao valor, principalmente durante a crise gerada pela pandemia, mas também reconhecimento imediato de boa parte da imprensa por sua cadeia produtiva sustentável e o pontapé no negócio dado com a doação das vendas a uma organização social. Comparações tendem a ser injustas e não é o objetivo desse texto diminuir o trabalho que a Ginger se propõe a fazer. Todavia, chama a atenção como a Lab, há quatro anos no mercado, ainda não seja reconhecida por seu modelo de negócio sustentável e escute críticas sobre o seu valor há tanto tempo.

Por fim, vale dizer que o tópico do moletom é uma bolha quando comparada a imensidão de outros assuntos abordados pelo cantor no programa. Por isso, fica a recomendação de que o episódio com a participação de Emicida seja assistido na íntegra. Ele fala de importantes organizações como o trabalho da Coalizão Negra por Direitos, que defende o projeto político de que não há democracia sem racismo — procure saber. Além de afirmar a importância de ser uma ponte para outros movimentos, como o da população LGBTQIA+, Emicida fala de si como pai e artista. Ele diz que é apaixonado por desenhos e mostra que há uma grande saída possível para o homem no mundo, que é a sensibilidade. A sua abordagem é intelectual, política, filosófica e medida com o coração. Coisa rara, jeito único. E se isso tudo for somado ao valor de seu moletom…

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