Glenn Martens e o jeans de vocês

Diretor de criação da Diesel, que realiza desfile-show aberto ao público nesta quarta-feira (20.09), na Semana de Moda de Milão, fala a ELLE sobre o poder do denim.


origin 85



“Meu dia a dia não é um editorial de moda. Eu tenho de viajar, fazer mil coisas. Por isso, gosto de vestir um bom agasalho e me sentir bem. Me sentir empoderado, sexy. Talvez eu veja alguém no trem e dê uma piscada para ele. Não quero parecer um fashionista. Quero parecer à vontade com o que estou vestindo.” Quem diz é Glenn Martens, estilista belga e diretor criativo da Y/Project, marca conhecida por fazer roupas não exatamente básicas ou que passem despercebidas em uma viagem ferroviária pela Europa. No caso, porém, o designer se refere ao trabalho que desenvolve como diretor de criação da Diesel desde outubro de 2020.

Sim, a marca italiana que redefiniu o jeanswear entre as décadas de 1990 e 2000 com suas campanhas engajadas, numa versão contemporânea, mais pop e escrachada do que fez Oliviero Toscani na Benetton, nos anos anteriores. Glenn, aliás, foi bem impactado por isso. “A Diesel foi a primeira marca que eu quis conscientemente comprar”, fala. “E não acho que tenha a ver com o fato de ser uma grife cool. Era pelo que ela comunicava. Lembro de olhar os catálogos, e eles eram muito disruptivos. Tinham uma mentalidade inclusiva e irreverente. Tudo de uma forma muito objetiva. Não era só sobre ser bonito. Era sobre estilos de vida”, comenta.

image 275

Diesel outono-inverno/2022.Foto: Riccardo Raspa

Uma das campanhas que mais o marcaram foi a fotografada por David LaChapelle no início dos anos 1990, em que dois marinheiros se beijam. “Lembro que foi a primeira vez que vi um beijo gay, assim, exposto, ainda que um tanto ilegal. (A campanha foi alvo de vários protestos e processos jurídicos.) Foi muito impactante e me ajudou a encarar processos de autoconhecimento e aceitação da minha sexualidade, fora o peso disso no mundo e em Bruges (Bélgica), com todo o seu privilégio branco.”

Glenn estudou arquitetura na faculdade, mas acabou enveredando para a moda depois de formado. Cursou a prestigiada Royal Academy of Fine Arts, em Antuérpia, Bélgica, e logo que apresentou sua coleção de conclusão de curso foi indicado por um dos membros da banca para um estágio na marca de Jean Paul Gaultier. Deu certo, mas ficou lá por pouco tempo. Tempo suficiente para absorver o que havia de mais essencial e valioso do tal Enfant Terrible. Tanto que, depois de se aposentar, Gaultier em pessoa convidou o belga para assinar uma coleção de alta-costura para sua marca – e o resultado foi uma simbiose espetacular, desfilada em janeiro deste ano. Antes disso, contudo, ele se aventurou com um empreendimento próprio até ser chamado para assumir a Y/ Project, em 2013, após o falecimento do fundador da etiqueta, Yohan Serfaty.

Na coleção de alta-costura, a convite de Gaultier (a segunda nesse formato. A primeira foi com a japonesa Chitose Abe, da Sakai), as estampas animais do estilista francês vêm sobrepostas em várias camadas com um efeito meio robótico, meio futurista, e com estruturas metálicas, cobertas por cristais. Os tricôs náuticos são recortados e estruturados de maneiras pouco prováveis (um traço importante do trabalho de Martens). Os motivos do tipo pintura corporal psicodélica (súper Gaultier) são retrabalhados com camadas drapeadas de seda, tule e organza. Os corsets aparecem deslocados num vestido de saia volumosa ou como body todo navalhado (outra característica de JPG), acoplado a uma saia jeans (algo recorrente na Y/Project).

O jeans, vale lembrar, foi um material importante na revolução estética de Gaultier. É também parte essencial das inovações da Y/Project e carro- chefe da Diesel. “É um dos tecidos mais versáteis que existem”, afirma Glenn. “É muito dinâmico: você coloca um salto alto e fica elegante, coloca uma camiseta e um tênis e está pronta para a rave”, continua. “É a peça que melhor se adapta à expressão da sua personalidade. Não é só você. São as várias vocês, em todas as suas variações de estilo, humor, do melhor do seu dia ao pior. E acho isso lindo, ainda que muito sutil.”

image 276

Diesel outono-inverno/2022.Foto: Riccardo RaspaFoto: Riccardo Raspa

Enquanto na Y/Project o material é trabalhado de maneira experimental – “É um produto de luxo, com tiragem limitada, mais exclusivo”, nas palavras do estilista –, na Diesel ele é pensado para ter maior abrangência. “Os processos criativos são bem similares, ainda que diferentes. Nem a Y/Project nem a Diesel se levam muito a sério, mas há algumas peculiaridades”, explica Glenn. “A Y/Project é mais opulenta, mais dramática e teatral. Já a Diesel é mais dinâmica, ativa, sexual, divertida, focada no streetwear.”

Em termos técnicos, isso quer dizer que as propostas da Y/Project são mais complexas em termos de construção, modelagem e silhueta. Na Diesel, embora a silhueta possa parecer comum, o tratamento do tecido é dos mais avançados. Vide os casacos felpudos e os conjuntinhos com estampas de denim do inverno 2022. Desde reaproveitamento de estoque morto até beneficiamentos com o mínimo de impacto na natureza, é tudo feito pargarantir a inovação sem prejudicar a vestibilidade.

Existe um denominador comum? Existe. A diversidade. “Nas duas coleções, nós tentamos reproduzir a diversidade que define as múltiplas identidades das pessoas. Não queremos ter 60 versões da mesma pessoa em nossos desfiles”, diz Glenn.

Para o estilista, há uma divisão muito clara e definida entre as duas marcas. Tanto que sua abordagem e algumas resistências variam de uma para outra. Por exemplo, Glenn sempre foi contra a comercialização de logos em marcas de luxo. “A produção de um moletom de luxo custa entre 30 e 40 euros. Você coloca um logo nele e o vende por 700. Eu não concordo com isso. Não acho que se respeitam nem a concepção de luxo nem o consumidor”, opina. “Por isso, não faço na Y/Project, mas acho ok na Diesel. Não estamos nesse nicho de mercado e podemos ser mais democráticos.”

A acessibilidade, no caso, varia com o câmbio e a economia de cada país, mas dá para entender a ideia. Do mesmo princípio, partiu uma das exigências do belga para aceitar o cargo. Ele só o assumiu depois de garantir o controle total sobre criação, comunicação, marketing, licenciamentos e visual merchandising. “Não foi uma questão de ego – sem isso, eu estaria bem mais tranquilo –, mas por respeito ao time, para evitar falhas na comunicação. É importante ter uma comunicação transparente e geral para que todas as áreas funcionem em harmonia.”

Tem a ver também com algo mais. Algo que impactou o estilista ainda na sua adolescência. Como uma marca de jeanswear (e com campanhas afiadas), a Diesel tocou e influenciou toda uma geração. Glenn quer recuperar esse poder. “O desfile é só uma fração do que fazemos. As coleções intermediárias (pre-fall e cruise) são as que realmente atingem o mundo inteiro e, obviamente, pessoas que não são ligadas à moda, mas que se atraem pela atitude, pela sensualidade da moda, mas de um jeito muito próprio, não teatral e mais prático. Então, é preciso ter isso em mente, como falar com essas pessoas que, talvez, não se interessem pela mensagem da sua apresentação.”

image 277

Diesel outono-inverno/2022.

Glenn não se refere apenas ao desfile, mas aos processos nele aplicados. Ou melhor, à maneira como aquelas roupas foram confeccionadas. Na primeira apresentação presencial da Diesel, a grande estreia do diretor de criação nas passarelas, boa parte das peças era feita com sobras dos fornecedores da marca. O que era novo era certificado para garantir o mínimo impacto na natureza. E, sob esse ponto, vale mencionar a linha Library, composta de clássicos da etiqueta, responsáveis por cerca de 40% do faturamento da empresa, que tende a se estender a cada nova coleção – tudo feito de modo ambiental e socialmente responsável.

Quem viveu os anos 2000 deve se lembrar deste slogan da Diesel: “For a successful living”. A proposta agora é quase igual, mas um pouco menos egocêntrica: “For a responsible living”. “Nossos objetivos não devem se limitar à beleza ou ao status pessoal”, fala Glenn. “Temos de pensar no impacto social. Fazer um vestido bonito não é suficiente e, agora, posso falar com mais pessoas sobre isso. Sobre a inclusão, em todos os sentidos, e principalmente sobre a sustentabilidade. Sei que muitos dos meus consumidores talvez não tenham o luxo de pensar sobre isso, porque têm três trabalhos, têm de criar três filhos, acordam às 6 da manhã, voltam para casa e têm de fazer jantar para a família e por aí vai. Mas, ao ver ou ter um produto Diesel, espero poder comunicar um pouco dessa consciência ambiental.”

Polianismos à parte, se toda grande marca (ainda mais de jeans) pensasse assim, talvez nossos problemas não fossem tão óbvios.

Esta reportagem foi publicada originalmente no volume 08 da ELLE impressa. Para fazer sua assinatura ou comprar seu exemplar avulso, clique aqui.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes