Rua: substantivo feminino

Em um ambiente extremamente masculino como o streetwear, marcas comandadas por mulheres se destacam entregando estilo e roupas pensadas para elas.


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Ilustração: Gustavo Balducci



“A Evoé nasceu de uma necessidade minha. Não me identificava e não me encontrava nas marcas feitas e pensadas por homens.” O relato é de Kaori Tonouti, fundadora da marca, mas é comum a todas as demais entrevistadas para esta matéria. Seja pelo seu passado com raízes no esporte e em gêneros musicais com baixa presença feminina, seja pelo simples fato de vivermos em uma sociedade patriarcal, o streetwear viveu por anos como um espaço primordialmente masculino.

Em recente matéria publicada por ELLE, essa afirmação é evidente. O streetwear, a grosso modo, não é criado pensando em mulheres — raras as vezes é criado também por elas. Com as modelagens amplas e afastadas do corpo que costumam ser associadas ao estilo, a impressão que fica é que a maioria das marcas do segmento se acomodou no conceito de peças unissex, sem dar a devida atenção aos desejos e ao corpo das mulheres.

A falta de distinção entre gêneros na roupa muitas vezes esconde a predominância masculina por trás dessa suposta desconstrução. E verdade seja dita: mulheres vêm se adaptando há tempos com marcas que fazem roupas sem pensar nelas. Acontece que isso não é mais suficiente.

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Evoé. Foto: Anna Mascarenhas | Modelo: Cárita Helena

“Sempre senti que precisava me adaptar”, diz Tonouti. “As roupas não foram feitas pensando em mim, as fotos não foram pensadas em mim. Eu não me enquadrava naquilo. A Evoé foi criada como uma marca que veste pessoas — homens e mulheres —, mas a partir de um ponto de vista feminino”, explica a designer.

Isso muda tudo. Para além das calças amplas e das camisetas silkadas, a etiqueta nascida há um ano, em Santo André, na Grande São Paulo, propõe uma visão diferente de streetwear. A camiseta, por exemplo, é de tule, não de algodão, incorporando um viés feminino desde a matéria-prima.

“Como consumidora, antes mesmo da Cajá, sempre me adequei a roupas que eu gostava de outras marcas. Era uma opção minha, mas sabia que elas não eram pensadas para mim. E eu quero escolher, não quero que imponham para mim essas formas ditas masculinas”, relata Gabriela Cajado. A Cajá surgiu há pouco mais de dois anos com um mix do espírito das ruas com as técnicas manuais das quais a estilista é entusiasta. As peças justas, assimétricas e de cores blocadas logo viraram febre em um mercado sedento por representatividade feminina.

Para Gabriela, lançar sua própria marca nunca foi sobre contornar um cenário majoritariamente masculino. Foi, sim, um desejo de criar um ambiente de acolhimento para mulheres dessa cena. “Minha luta é por coisas mais básicas, como conseguir trazer comigo outras minas, criar um espaço nosso. Essa união entre as mulheres do mercado é incrível.”

Referências mil

A ideia de acolhimento e reforço da mão de obra e pensamento feminino é um dos pilares da Fauve. Criada por Clara Pasqualini, a marca trabalha com mulheres em todos os estágios de sua produção. “A sensação de reciprocidade e respeito é maior. Meu objetivo é nos colocar nos backstages e em posições de comando, não só nas campanhas. Na moda, a maior parte de cargos de destaque é ocupado por homens brancos. Quero mudar isso”, conta. Sua ambição, muitas vezes desvalorizada e menosprezada pelos homens com quem já trabalhou, é sua maior força motora.

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Fauve. Foto: Clara Pasqualini | Modelo: Tayná Ferreira Romero

Lançada no começo de 2019, a marca tem seu nome inspirado no movimento artístico francês fauvismo, caracterizado pelas cores puras e pinceladas espontâneas. “Nessa escola, a arte não se apega aos aspectos técnicos da pintura e, sim, na sua qualidade de expressão e identificação pessoal”, explica Pasqualini. Foi baseada nesses preceitos que ela misturou referências do jazz ao rap para criar peças além dos modelos unissex já conhecidos no streetwear. Saias, tops, camisetas cropped e maiôs ganham tons vibrantes e formas ajustadas ao corpo — mas não só. Há também opções amplas de camisetas silkadas e calças cargo que agradam também o público masculino, ainda que ele não seja 100% o foco.

O flerte entre a moda e a música sempre foi importante para o streetwear e é também o ponto de partida da Saloon 33. Marta Mandelli, nome por trás da grife, trabalhou ao lado de Chorão, do Charlie Brown Jr., e comandou as marcas de roupas criadas pelo cantor. Em fevereiro de 2015, dois anos depois da sua morte, lançou a Saloon 33, que mistura referências musicais e de skate. Além das calças de alfaiataria, os best-sellers da label, camisetas silkadas, blusinhas de tule, vestidos justos e jaquetas estampadas são criadas para serem combinadas com botas de plataforma e tênis.

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Saloon 33. Foto: Bruna Hissae | Beleza: Julieta Cacchione | Modelo: Heloisa Muniz

“A Saloon foi criada em cima dos meus desejos. Decidi fazer peças que sempre quis e não achava onde comprar”, explica Mandelli. “Nos anos 1990, não tinha marca de streetwear feminina. Eu era punk, queria ir pro showzinho, andava de skate e só usava roupa masculina”, lembra. Ainda que sua principal referência seja no universo deles, suas roupas são pensadas para o corpo da mulher.

A mistura de estilos, códigos e referências são as características mais marcantes do streetwear — principalmente quando falamos de mulheres. Quando faltam opções dentro das marcas da cena, recorre-se a grifes de outros universos para criar uma estética própria. Foi o que aconteceu com a Spöke, etiqueta de Vick Cammie, nascida em 2017, quando a febre das shoulder bags ainda não tinha chegado com força ao Brasil. “Misturei meu amor pela argola clássica das bolsas da Chloé com o formato de uma shoulder bag que eu tinha da Supreme”, conta. Ela explica que a ideia da label é democratizar peças-tendência que ainda não se popularizaram por aqui.

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Spöke. Foto Cortesia | Spöke

A designer relata ainda ter dificuldades em se colocar na linha de frente da marca por medo do preconceito. “É complicado ser respeitada como mulher no meio do streetwear. Quem conhece a Spöke por fora muitas vezes não sabe que eu sou a dona. Se soubessem, eles comprariam do mesmo jeito?”, questiona. No entanto, ela vê uma luz no fim do túnel: “A nova geração de adolescentes, de 15, 16 até 20 anos tem a cabeça muito mais aberta. É só perceber como os meninos dessa geração adotaram as bolsas com mais facilidade.”

Sui generis

Vale dizer que essa não é uma análise que vai contra a ideia de roupas sem gênero definido ou que refuta peças amplas, desde sempre o cerne do streetwear. Combinar visões distintas também é um caminho a ser seguido. É o caso da Suí Br, comandada por Camila Araújo, seu namorado Raul Freitas e sua mãe Anália Araújo, responsável por costurar todas as peças à mão. Em um ano de história, a marca de São Miguel Paulista, na Zona Leste paulistana, tem um portfólio que vai desde conjuntinhos de moletom até tops e calças cargo.

“Acho legal desconstruir essa ideia de gênero e fazer peças para todo mundo. Quando um cara chega no nosso Instagram e pergunta se tem essa calça masculina, fica muito claro que esse conceito ainda não está na mente de todo mundo”, comenta Araújo. “Apesar de termos essa ideia, também fazemos peças direcionadas para o público feminino, como os tops, que era algo que eu sentia falta no mercado de moda de rua.”

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Suí Br. Foto: Amanda Adasz | Modelos: Mizael Prado e Marcella Martiliano

A troca entre Camila e seu namorado Raul faz com que a marca ganhe toques e detalhes interessantes. “Estamos falando de um mercado que é feito, em sua maioria, de homens para homens, então rola aquele lance da masculinidade. Acaba virando tudo mais do mesmo. Tem muita marca de streetwear igual a tudo que já vimos por aí”, critica.

Juntar vivências e visões feminina e masculina também funcionou bem para Fernanda Yoshino, há dois anos no comando da produção de peças da Surreal São Paulo. A grife paulistana começou trabalhando com meias estampadas, mas logo migrou para coleções com ofertas mais amplas de vestuário. Foi aí que entrou a expertise de Yoshino. “Sempre tive voz ativa dentro da Surreal, mesmo trabalhando com quatro sócios. É a primeira vez que tenho um emprego em que existe equivalência de voz”, comenta.

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Fernanda Yoshino. Foto: Divulgação

Apesar de se basear em peças unissex do desconstrutivismo japonês, Yoshino separa parte dos drops da Surreal para modelos femininos. “Não existem referências femininas nesse mundo e as pessoas não conseguem ir além das referências delas”, completa Fernanda. A estilista defende que ainda falta muito para que o espaço da mulher seja equivalente ao do homem dentro do streetwear — e isso vai desde as marcas pequenas até grandes players mundiais, que muitas vezes lançam tênis em paletas de cores mais sóbrias só em tamanhos masculinos, como se as mulheres não usassem nada além de tons pastel. “Nós temos muito esse lance da adaptação, compramos roupas e sapatos em tamanhos maiores e é por isso que esse mercado está tão acomodado. Mas não deveria ser assim. Que bom que isso está mudando”, finaliza.

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