Um ano depois do quadradinho preto, o que mudou na moda?

Após as intensas manifestações do movimento Vidas Negras Importam, analisamos o quanto a indústria da moda brasileira se mobilizou no combate ao racismo contra pessoas negras.


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O ano foi 2020. À época, parecia que um Brasil descobrira outro Brasil. O estopim foi o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio daquele ano. Seguiu-se uma onda de protestos intensos no país norte-americano e no Brasil. Além das ruas, a internet foi ocupada. Eram posts, vídeos, lives e o famoso quadradinho preto com a hashtag #BlackoutTuesday, que começou como uma campanha da indústria musical estadunidense, mas foi rapidamente adotada por outros setores, inclusive a moda.


Várias marcas, estilistas e profissionais fizeram a tal publicação em suas contas no Instagram, mas a repercussão não foi tão positiva. O viés marqueteiro e oportunista de muitas postagens e de seus autores foram rapidamente apontados por pessoas negras.

Fato é que, naqueles dias, uma boa parte da moda fez uma promessa: ser antirracista. Porém, passado um ano, isso aconteceu? Parece que não. É uma jornada que não seria da noite para o dia, ainda assim, as mudanças constatadas pela reportagem são poucas. Grande parcela do mercado segue analfabeto racial.

A nível global, uma reportagem do The New York Times, publicada em junho de 2020, perguntou a 64 marcas globais de moda qual a porcentagem de negros em suas equipes e tambem suas metas para diversidade. Aproximadamente 60% não responderam ou não retornaram ao jornal. 25% responderam parcialmente as questões e 12% responderam de forma integral. A partir disso, só 4% das marcas têm na presidência executiva ao menos uma pessoa negra; na diretoria criativa, o número vai para 6%.

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Foto: Júlio César Almeida.

Em território nacional, não é diferente. Quer dizer, é sim. É pior. A reportagem de ELLE apurou como uma parcela do mercado de moda incorpora as questões raciais. Foram contatadas 143 marcas de moda nacionais ou com operações no Brasil, quatro agências de modelos com capilaridade nacional e as três principais semanas de moda do país. As perguntas foram: se existem ações de promoção de igualdade racial na empresa; se sim, desde quando; se existem dados da distribuição de cargos por raça.

As respostas são, no mínimo, desconcertantes. Apesar dos discursos engajados, dos feeds e campanhas com modelos negras, ainda é evidente o racismo em boa parte da moda brasileira. O mito da democracia racial, o marketing da diversidade, o tokenismo (inclusão simbólica) e a alienação privilegiada ainda são obstáculos a serem superados na indústria.

”Pensando justamente na inclusão social, fizemos questão de incluir uma modelo negra na última campanha publicitária”, respondeu uma marca de bolsas eco friendly. Outra etiqueta de beachwear escreveu: ”Temos certeza que cada vez mais as pessoas estão vivendo a igualdade. Para nós, não existe diferença. Não fazemos nenhuma das nossas escolhas olhando a cor da pele, o tipo do cabelo, o sotaque. […] Escolhemos a capacidade, o talento.”

Talento, aliás, foi uma palavra recorrente em muitas respostas recebidas pela reportagem, muitas vezes como escusa para o apagamento racial. “Não vemos nenhuma diferença de gênero ou raça, para nós o que importa são características de um bom profissional comprometido e com os mesmos ou similares valores da marca. Em nossa loja tivemos uma gerente negra linda por dois anos”, relatou uma marca de bolsas.

Uma grife de joias, por sua vez, afirmou ter ”uma dificuldade muito grande em encontrar pessoas”. Segundo a empresa, nos três últimos meses, três pessoas que se autodeclaram pardas foram contratadas, porém profissinais negros sêniores ”são mais escassos”. “Existem muito poucas pessoas no mercado e acho fundamental incentivarmos ações como essa.” E acrescentaram: ”Começamos a treinar a funcionária que faz limpeza para ir para a vaga de produto. E ela preferiu voltar para a limpeza.”

Algumas etiquetas também disseram não ter uma política específica para isso, mas que se atentam às pautas raciais nas dinâmicas cotidianas da marca.

Antes de continuarmos, algumas explicações e dados…

O critério para selecionar as marcas contatadas foi baseado na lista de associadas de duas organizações do setor: a Associação Brasileira de Estilistas (ABEST) e a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX).

A ABVTEX diz, em seu site, atuar sob quatro pilares principais: ”erradicação do trabalho análogo ao escravo, desenvolvimento da cadeia fornecedora, combate à informalidade e manutenção do livre mercado”. Contatada por email, a associação não respondeu se realizava ações de igualdade racial, mas afirmou “que as marcas têm iniciativas e ações afirmativas próprias.”

Atualmente, são 24 companhias varejistas de moda brasileiras associadas, que somam dezenas de marcas. As empresas foram contactadas por email. Destas, oito (33,3%) não apresentam nada em seu site sobre as perguntas elencadas ou não responderam até a data de publicação; nove (37,5%) declinaram. Seis (25%) responderam à reportagem ou apresentam informações em seu site, sobre a existência de algum programa de igualdade racial; e quatro (16,6%) souberam informar ou apresentam em seu site oficial a distribuição de raça por cargos.

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Foto: Júlio César Almeida.

Já a ABEST diz, em seu site, que objetiva ”fortalecer e promover o design e a moda brasileira”. Contatada por email, a associação informou não saber especificamente quais marcas associadas tinham programadas de igualdade racial e disse que não realiza “um projeto específico nesse sentido”, mas afirmou saber que ”que muitas empresas associadas têm políticas de inclusão e sustentabilidade.”

Atualmente, são 120 marcas de moda associadas. Todas foram contatadas por email ou whatsapp, com exceção de uma marca, que não apresentou contato disponível. Destas, 72 (60%) não responderam à reportagem até a data de publicação e nada consta em seus sites sobre o assunto. Oito (6,6%) declinaram e 10 (8,3%) disseram que não poderiam participar. Outras 29 (24%) responderam. Entre elas, apenas uma (0,8%) disse ter uma ação de promoção de igualdade racial, mas que não podia ser compartilhada com a reportagem. Por fim, sete (5%) souberam dizer a distribuição de raça por cargos.

Entre as grandes varejistas, o panorama pode ser observado pelo Índice de Transparência da Moda Brasil de 2020. No relatório, apenas 18% das 40 marcas analisadas publicam se existem ou quais são suas ações com foco na promoção de igualdade racial entre seus funcionários; 10% divulgam a distribuição por cor ou raça dentro da empresa, considerando diferentes níveis hierárquicos, e nenhuma publica as diferenças salariais sob a perspectiva racial dentro da empresa.

Vale ressaltar que não foi possível garantir a veracidade das informações ou a efetividade das políticas citadas. Para tanto, é necessário uma fiscalização minuciosa e a longo prazo. Contudo, as respostas e dados obtidos esboçam como um recorte da indústria, pelo menos, está olhando para a questão.

Ademais, o tamanho e estrutura de cada empresa, para além das aqui contatadas, têm impacto direto sobre seu nível de atuação e comprometimento. Em negócios com mais recursos, existe mais capital para investir em políticas a longo prazo, contratação de especialistas, equipes internas etc.. Já os negócios menores, normalmente, têm equipes reduzidas e pouco aparato financeiro, o que pode impossibilitar ações mais robustas. Ainda assim, os fatores não eximem a responsabilidade de atuar na causa antirracista, tampouco é motivo para uma cegueira racial e reprodução de discursos discriminatórios.

Nas passarelas…

A São Paulo Fashion Week teve 9,9% (três de 31) das marcas que desfilaram no último line-up, em novembro de 2020, geridas por pessoas negras. Quanto à ocupação das passarelas, 50% das modelos foram não-brancas. O número tem relação com o formato digital do evento (mais enxuto e com castings reduzidos), mas, principalmente, com o tratado articulado pelo coletivo Pretos na Moda. O documento, assinado pela diretoria do evento, estabelece essa porcentagem como cota mínima para as marcas participantes. A SPFW foi contatada, mas disse não poder retornar até a data de publicação.

Na última edição da Brasil Eco Fashion Week (BEFW), também em novembro de 2020, 23% (quatro de 18) das marcas que desfilaram eram geridas por pessoas negras ou indígenas. Quanto ao showroom, que contou com outras 61 equipes, não há métrica. Existe a parceria com o Vetor Afro-Indigena na Moda (VAMO). Trata-se do projeto VAMO Acelerar, que pretende selecionar empreendedores afro-indígenas em busca de caminhos mais sustentáveis em seus negócios, para receberem mentorias de parceiros da BEFW.

“Consideramos que uma postura antirracista sempre foi prioridade no BEFW”, diz Rafael Morais, diretor-executivo do evento. “No BEFW, houve o entendimento de ampliar a presença de colaboradores internos, assim como ampliar as parcerias com projetos e fomentar ações que abordem os temas relativos de maneira orgânica e fluida.”

Na Casa de Criadores, 40% (16 de 40) do mais recente line-up é composto de marcas geridas por pessoas negras ou indígenas. Também existe o coletivo Célula Preta, que surgiu em junho de 2020, e reúne os estilistas negros do evento.

André Hidalgo, criador e diretor criativo da semana de moda, informou à ELLE que ”a Casa de Criadores também combate racismo e discriminação contratando profissionais das mais diferente etnias e gêneros, que normalmente não teriam espaço em outros eventos, como maquiadores, fotógrafos, videomakers, stylists etc. Também promovemos mesas redondas, palestras e oficinas voltadas para esses temas. A cada edição do evento esse espaço e esses números só aumentam.”

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Backstage do desfile de Jal Vieira, estilista da Casa de Criadores.Foto: Camila Rivereto.

Nas agências de modelo, a Joy afirma que ”40 a 45% dos modelos do seu casting representam a população preta e/ou racializada”, e que existe um comitê de diversidade na empresa, que, desde 2020, tem um programa fixo de formação que promove letramento racial interno em parceria com Projeto NEFERTUM, Rafael Silvério e VAMO. A agência Way informou que ao menos 35% dos agenciados são negros. Existe também um programa chamado WAY Reeducar, que reúne ”equipe e modelos agenciados para palestras com profissionais e vozes representativas, debates em torno da evolução do olhar, do pensamento, do combate ao racismo e da necessidade de traduzir a beleza de forma múltipla.”

Allure afirmou que não trabalha com um sistema de cotas, mas ”com igualdade racial no casting”, que tem 25% de pessoas negras, segundo a agência. A Mega Model disse ter ”o lema da inclusão” e na época após o assassinato de Floyd, realizou ”diversos debates virtuais com os modelos abordando o tema racial, compartilhando relatos e aprendizados.”

O impacto do movimento Vidas Negras Importam na moda brasileira

Há um ano, é possível dizer que houve um aumento da visibilidade do movimento negro, sua agenda, e de iniciativas de pessoas negras. Especificamente sobre a moda, houve também uma tentativa de desmascarar onde o setor esconde seu racismo. Nas redes sociais surgiram denúncias informais e relatos de discriminação racial vivenciadas por modelos, designers e outros trabalhadores.

Infelizmente, depoimentos como aqueles são recorrentes. Aqui, falamos especificamente do racismo com pessoas negras, mas existem relatos de discriminação com outras minorias sociais. Estilistas e marcas de moda estão, muitas vezes, no centro dessas denúncias. Ainda assim, parece que parte da indústria ainda se preocupa pouco com isso, ou de maneira superficial.

”É muito nítida essa divisão: marcas que apoiam causas raciais e marcas que não apoiam”, diz Thayná Santos, modelo que foi uma das primeiras a expor, em sua conta no Instagram, profissionais racistas. A motivação foi ver relatos levianos, que, de acordo com suas experiências, não condiziam com a dureza da realidade. Com uma carreira consolidada fora do Brasil, ela sabia que o risco de revanche era menor, mas relatou que após as exposições sofreu alguns boicotes de trabalhos.

Junto às modelos Natasha Soares, Cindy Reis e Camila Simões, Thayná foi uma das responsáveis pela criação do coletivo Pretos Na Moda, focado em potencializar a pauta racial e exigir mudanças na indústria. Uma das ações do grupo foi firmar o tratado que estabelece 50% de modelos racializadas nas passarelas da SPFW. Outra, mais recente, é o projeto Sankofa, dedicado à inserção de oito marcas de criadores e criadoras negros na SPFW. ”Entendemos que não precisávamos inserir só modelos, mas também estilistas”, explica Natasha.

O Sankofa também conta com a articulação do VAMO, iniciativa lançada em novembro de 2020, por Rafael Silvério. Trata-se de uma startup de inovação social interracial que cria oportunidades e ferramentas para pessoas negras e indígenas. Rafael também fez parte do Célula Preta, coletivo que concentra estilistas negros da Casa de Criadores. A iniciativa foi tomada por alguns dos participantes do evento em junho de 2020 para inserir o tema no debate público e ajudar a fortalecer o antirracismo na moda.

Jal Vieira é uma das atuais integrantes do Célula Preta. Para a estilista, estar em grupo potencializou sua força. ”Me senti mais forte para bater de frente, algo que talvez, há um tempo, eu não fizesse”, diz ela, que aprendeu com a mãe a enxergar possibilidades em tudo. “Ela não tinha possibilidade de muitas coisas”, relata.

Apesar dos coletivos formados, vivenciar os acontecimentos da época, enquanto pessoa negra, não foi fácil para nenhum dos entrevistados nesta matéria. A energia veio justamente do ajuntamento, ou do ”aquilombar-se”, termo usado por Abdias Nascimento. Isso porque responder tantas vezes as mesmas perguntas e ser convidado para discorrer apenas sobre racismo é uma forma de racismo. “Foi uma mídia despreparada que começou a nos procurar”, compartilha Jal. ”A maioria não estava interessada em nosso trabalho, mas nas vulnerabilidades para transformar aquilo em matéria. Descobriram que a gente existia.”

”As pessoas pretas se organizaram mais e tiveram coragem de mostrar a cara. Isso não aconteceu por parte de pessoas brancas, e a mudança social só acontece quando a pirâmide social se modifica.” Carol Barreto

Para a fundadora e diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), Luana Génot, houve mudanças na indústria da moda no último ano, mas ainda falta muita mão na massa. Em sua visão, não se trata apenas de publicar um quadradinho preto, e sim assumir uma série de compromissos, entendendo o antirracismo como uma jornada. ”Sinto que agora, se você chegar em uma empresa de moda falando sobre racismo, ela não irá dizer que é algo da sua cabeça. Antes de Floyd, isso era possivel”, diz.

O ID_BR foi fundado por Luana logo após suas experiências como modelo. Ela ouviu que, se ficasse ”falando de racismo no setor”, não poderia ser enviada para os castings. Como uma forma de não se silenciar, ela criou o instituto, que tem como objetivo acelerar a promoção da igualdade racial com base em três pilares: empregabilidade, educação e engajamento.

Em suas experiências com as empresas de moda, o relato é de que ”muitas chegam por meio da dor, como um caso midiático de racismo”. Com isso, o instituto sempre propõe a reflexão: ”Algo será feito a longo prazo, além da nota de desculpas?” Para auxiliar na profundidade das ações, o ID_BR criou o selo Sim a Igualdade Racial e o prêmio homônimo (os vencedores foram anunciados no dia 29.06).

Mesmo pontuando a evolução na tomada de consciência, a diretora avalia que ‘o mercado de moda brasileiro ainda é muito superficialmente inclusivo: “Colocam influenciadores e modelos racializadas para disfarçar o que não está refletido dentro das marcas”. Ela também cita o assassinato de João Alberto, por parte de um segurança no Carrefour, em 20 de novembro de 2020, como algo que despertou algumas empresas a olharem para sua cadeia de fornecedores e serviços com mais atenção.

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Luana Génot, diretora e fundadora do ID_BR, no Prêmio Sim a Igualdade Racial de 2021.Foto: Victor Vieira.

Carol Barreto, modativista, professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), acredita que ainda é cedo para avaliar o impacto do movimento. ”As pessoas pretas se organizaram mais e tiveram coragem de mostrar a cara. Isso não aconteceu por parte de pessoas brancas, e a mudança social só acontece quando a pirâmide social se modifica”, analisa. Segundo ela, existe uma ânsia imediatista das empresas em se afirmarem como antirracistas, mas quase sempre como ações paliativas. ”É simples: quem está ganhando com essa campanha, com a publicidade dessa marca? Tem pessoas não brancas ganhando com isso? Vamos checar? Se não tem, então, não chegou lá”, avalia.

Enquanto docente, ela pontua que também não viu muitas mudanças no ensino de moda. ”As pessoas acreditam que pesquisar bibliografia e referências imagéticas é suficiente, mas não entendem que a presença negra tem de estar lá”, finaliza.

O estudante de moda no Instituto Federal Sul de Minas, Matheus Solem, afirma que os professores ”são, geralmente, reativos, em vez proativos no debate sobre raça”. Segundo ele, a movimentação parte mais por parte dos discentes. Já Jutyara Mendes da Rocha diz não ter presenciado mudanças relativas a isso nas salas de aula da Universidade do Estado de Santa Catarina, onde cursa o quarto semestre do bacharelado em moda. Para ela, pelo menos na sua turma, o assunto não foi pauta em junho, com o boom dos protestos.

Mudar o cenário de narrativas únicas foi uma das motivações da publicitária Clariza Rosa. Em 2014, ao lado de Helena Gusmão, Alan Ferreiras e Renan Kvacek, ela criou a Silva, uma agência de comunicação e produtora de imagens descentralizadas. O negócio surgiu no Jacarezinho, a comunidade, que, há algumas semanas, viu ao menos 29 pessoas morrerem em uma chacina policial. ”Não dá pra dizer que as coisas não estão mudando, mas o tempo da mudança não acompanha a maneira que as agressões acontecem nas nossas vidas, na vida da população negra”, pontua Clariza. ”Os avanços precisam ser mais rápidos e maiores, pois o processo de opressão é veloz”, completa.

Os dados ajudam a compreender a realidade descrita acima: No Brasil, 56% da população se autodeclara negra (preta ou parda). Em 2017, uma pessoa negra tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. Pessoas negras são a maioria da força de trabalho no país, mas pessoas brancas recebem em média duas vezes mais. A taxa de analfabetismo entre pessoas negras é maior do que o dobro da taxa de analfabetismo entre brancos da mesma idade. As pessoas negras são a maioria na linha da pobreza ou pobreza extrema – que só aumenta no país. Estas informações são do IBGE, mas poderíamos citar muitas outras.

Todos os casos relatados nesta ou em outras reportagens, junto aos números, sinalizam o que alguns teóricos classificam como racismo estrutural. No livro Racismo Estrutural, Silvio Almeida explica se tratar de ”uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem.”

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Foto: Pedro Pinho.

Ou seja, é por isso que mesmo sendo a maioria no Brasil, muitas pessoas negras continuam marginalizadas, impedidas de acessos básicos e em desvantagens socioeconômicas. E se engana quem pensa que a moda não tem nada a ver com isso. ”A gente só vive o que a gente vive, no sentido de como as violências chegam nas pessoas negras, porque existem estampas racistas, porque negros não estão dentro das marcas e porque as empresas olham um projeto de impacto e acham que vão salvar as pessoas”, explica Clariza. Tornar ausente o que existe é um mecanismo do racismo.

Não que inúmeras pessoas negras não sejam extremamente talentosas para ocuparem esses cargos, não tenham iniciativas de sucesso ou não ocupem espaços na moda. Mas é um pouco do que o grupo Racionais canta na introdução de A Vida é Desafio: ”como fazer duas vezes melhor/ se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses…/ Por tudo que aconteceu?”.

O problema é que o racismo dinamiza todas as relações. Não racializar a forma que interpretamos a realidade dos fatos é apenas mais uma forma de reproduzi-lo. O que isso quer dizer? Que é impossível falar em ”contratar sem olhar a raça e, sim, o talento”, como várias marcas responderam à reportagem, sendo que a raça é um indicativo e imperativo no Brasil. Isso é fechar os olhos para as negações sistêmicas às quais pessoas negras são submetidas e seguir com uma moda baseada no favoritismo e falsa ideia de meritocracia.

Onde o filho chora e a mãe não vê

A reprodução do racismo na moda não é ao acaso. “A indústria produz um espelhamento muito fiel das hierarquias sociais”, analisa Carol Barreto. A pesquisadora pontua que as imagens são produtoras de realidades. Nesse sentido, a moda ajuda a produzir uma réplica do loteamento da branquitude.

O fotógrafo Pedro Pinho pensa de forma semelhante. ”A moda traz uma justificativa estética. Ela imagina um mundo que corrobora os pactos sociais existentes no Brasil”, diz ele. “Colocar o branco em todo lugar, até onde ele não está, é de certa forma uma manutenção do poder. Durante muito tempo, se você pegasse uma revista de moda nacional, ia imaginar que o país só era composto de mulheres brancas, de classe média e com 1,90 de altura”, continua.

Ele acredita que essa hegemonia mudou superficialmente. ”Ninguém mais me pede para fazer um casting todo branco”, pontua. De fato, nos últimos cinco anos, houve uma crescente de pessoas negras incluídas em editoriais e campanhas de moda. Isso é importante para visibilizar, imageticamente, as narrativas de um Brasil plural e para quebrar outras hegemonias estéticas na moda. ”Mas dificil é eu ir para uma marca e perceber que o estilista é negro”, comenta o fotógrafo.

É o problema da marca que, quando indagada sobre ações de promoção de igualdade racial na empresa, alega a presença de uma modelo negra na campanha. Ou daquela em que teve uma gerente negra linda por dois anos.

”Não dá pra dizer que as coisas não estão mudando, mas o tempo da mudança não acompanha a maneira que as agressões acontecem nas nossas vidas, na vida da população negra.” Clariza Rosa

Quanto às movimentações do Vidas Negras Importam, Pedro também acredita que pouco mudou. “Como estamos numa lógica avançada do capitalismo, o sistema vai engolir as pautas e cuspir numa roupagem mais lucrativa” diz. Em 2020, no auge dos protestos, ele mapeou como eram compostas as equipes que produziam as capas de revistas de maior circulação. “Como empresa, é lucrativo você ter visibilidade de pessoas negras, é interessante para a corporação.” Por outro lado, segundo ele, não é tão interessante assim ter essas pessoas na sua folha de pagamento, pois o custo financeiro é maior do que o retorno de uma ação de fachada pontual.

A questão do trabalho é um ponto crucial no debate. Vale pontuar que os trabalhadores do vestuário somam uma maioria de 80% informais; essa modalidade pode gerar precarizações e salários até 25% menores do que os de trabalhadores com carteira assinada. Coincidências à parte, essa classe de informais – que aumentou na pandemia – é composta majoritariamente por pessoas negras. Para somar, não são poucos os casos de trabalhadores do vestuário resgatados de situações análogas à escravidão. Destes, 60% são pretos ou pardos.

Por isso, só contratar pessoas negras não é o suficiente, visto a fragmentação de uma indústria ainda baseada em opacidade e incapacidade de monitoramento. Também não é apenas sobre ter diretores criativos e designers, mas uma preocupação igual com toda a cadeia produtiva: quem são as costureiras, modelistas, pilotistas? Quanto elas recebem? Como são suas condições de trabalho? Observando que elas materializam boa parde da moda, excluir essa classe trabalhadora da pauta antirracista é incoerente.

A costureira Grace Santos diz que não há o que comemorar nesse um ano, após os protestos. ”Em 2020, percebi que vidas negras importavam somente naquele momento e, mais ainda, só nas redes sociais”, diz ela, que tem uma confecção própria, na cidade de São Paulo. Isabel Rodrigues, costureira há mais de 30 anos em Passos, Minas Gerais, acredita que o movimento ”deu visibilidade para nós negros, pois sempre fomos vistos como mão de obra barata e desvalorizada”. Porém, na prática, a trabalhadora diz que nada mudou. ”Apesar da indústria se posicionar, todos sabemos que não é isso que acontece nos bastidores”, diz ela.

De novo e mais uma vez

Falar de racismo na moda se tornou algo não tão inédito. Mas aí reside o problema: se todo mundo sabe, por que nada muda? Citam-se dados, denúncias acontecem, relatos são publicizados, explica-se por que a pauta é importante, por que racismo existe, por que a moda precisa se transformar. E pouco acontece. Mantém-se uma indústria engessada em opressões, que bate no peito para falar sobre criatividade e inovação, mas falha constantemente em ajudar a dissolver uma das maiores mazelas da humanidade.

Pessoas negras têm se fortalecido da sua maneira, desde que o mundo é mundo. O que falta é o esforço da branquitude para combater o racismo, que é um problema, por sinal, criado por ela. Para a indústria da moda, Clariza reforça o óbvio: ”Contratem pessoas negras e contratem pessoas que deem repertórios que não são os que as marcas estão acostumadas.”

Contudo, ofertar um espaço que não está preparado para receber pessoas negras pode ser danoso. ”Se tenho um mercado opressivo e só vou deixar pessoas entrarem sem mudá-lo, estamos dando um lugar para pessoa negra ser oprimida”, analisa Pedro. ”Não é só sobre ter mais estilistas pretos, mas como essa estrutura precisa se modificar para receber esse corpo”, complementa Jal. Para ela, às vezes, é melhor criar seus próprios locais de pertencimento.

De acordo com a publicitária, falta repensar o próprio processo seletivo do setor. Quando olhamos os critérios de seleção convencionais para uma vaga na moda, eles podem ser bastante meritocráticos e excludentes. É preciso ”humanizar o processo seletivo e letramento interno para que, quando ela for incluída, se sinta integrante e com um plano de carreira”, complementa Rafael.

“A reparação acontece quando a grana vem para a mão da gente”, diz Carol Bareto. “Se essas marcas são milionárias e as confecções seguem ganhando o mínimo, tem algo errado aí. Devemos entender que a desigualdade é produzida. Não é ocasional”. O Brasil é o quarto país mais desigual da América Latina e, em 2020, primeiro ano da pandemia, ganhou 11 novos bilionários na lista da Forbes.

”A desigualdade no Brasil foi milimetricamente produzida e se trabalha todos os dias para que isso se agrave. A moda tem participação essencial nisso”, continua Carol. Distribuir a renda, em vez de concentrá-la, é um dos pontos essenciais para combater o racismo.

Por fim (ou início), estabelecer metas concretas, ter um número de vagas destinadas às pessoas negras, ter um plano de carreira para pessoas negras, promover o letramento racial da equipe, ter uma ouvidoria com avaliação externa, tudo isso tem a ver com reparação histórica. “Enquanto as medidas não forem estruturais, elas vão passar”, ressalta Clariza. ”A gente viu a movimentação de Floyd, marcas postando sobre isso, mas se não tem estratégia para mudar estruturalmente, vai passar e será uma ação, não um projeto. Precisamos de medidas que não sejam pontuais”, finaliza.

Este texto foi atualizado e corrigido em 09 de junho de 2021.

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