Vivienne e o design dos rasgos
Conhecida como a estilista do punk, Westwood usava o do it yourself para pensar questões do tempo e das identidades
Vivienne Westwood morreu, e seria realmente interessante ouvir o que uma pessoa com uma visão tão peculiar sobre o tempo teria a dizer sobre seu próprio desaparecimento desse mundo. Quem acompanhou a carreira dessa designer britânica e sua grande influência nisso que ainda chamamos de moda deve saber ao que me refiro.
Vivienne ficou marcada como a estilista máxima da estética punk, o que é sem dúvida verdade, mas em geral essa ideia acaba sendo registrada de um jeito bobo, imobilizado, à moda das estátuas de cera, dos antiquários e dos museus ruins. Sim, ela vestiu os Sex Pistols e algumas gerações de punks, mesmo que não diretamente, por inspiração e cópia. Do it yourself, afinal, tinha a ver com o espírito da coisa toda. Isso e causar certo tipo de impacto, de escândalo, um susto para desregular a rotina, a linha reta, o relógio. Ok.
Mas o trabalho da sra Westwood seguiu e disse a que veio. E ele veio talvez para que ela entendesse algumas questões, por exemplo, sobre o tempo e a história, sobre o tempo e identidades, sobre o tempo e a vida. Especialistas em moda são quase unânimes em apontar o espartilho e as plataformas como suas marcas de estilo, os significantes maiores de seu discurso de moda. Eu digo que não. Que sua marca maior são os rasgos, os pedaços, o que já nasceu fragmento.
O xadrez, inclusive, não seria exatamente isso, uma ilusão de reintegrar pedaços? Pedaços que, podemos imaginar, nunca fizeram parte de nada?
Vivienne Westwood nasceu uma garota inglesa em um pequeno condado sem grandes feitos a não ser talvez por um clube de futebol meio conhecido. Nasceu uma garota nessa terra dividida entre o orgulho e o ódio de uma família real sinônimo de pompa mundial e exploração brutal e uma classe trabalhadora oprimida e sempre às voltas com os extremos da pobreza e com o sentimento de revolta.
Vivienne estudou joalheria, trabalhou em fábricas, deu aula para crianças. Seu começo na moda foi criando roupas pra gente dura e proletária, e, ironicamente, sua chegada ao high-fashion foi acontecendo conforme os donos da moda quiseram sugar para suas fileiras um pouco do sangue questionador daquela musa punk. Se ela se rendeu ou não a eles é algo que não vou discutir, embora Vivienne tenha tido, obviamente, seus altos e baixos nesse sentido.
Seus piores momentos, aliás, foram os que tentou se engajar em discursos muito literalmente anti-sistema, em contextos nos quais não conseguia trabalhar para além de uma propaganda capenga e evidentemente bastante condescendente.
Suas roupas, por outro lado, se saíam muito melhor, assim como suas falas quando ela as deixava correr como tesouras malucas, imprevisíveis, provocadoras, divertidas, sinceras. Vivienne olhava para a história como se não houvesse presente, a não ser por um instante, e o passado, a partir do futuro, estivesse sempre em reconstrução.
Ao contrário de outros designers, seu interesse pela realeza não tinha um ar reverente. Suas rainhas são herdeiras decadentes de berço, não porque a decadência venha da queda ou da pobreza, mas antes da própria ideia do berço de ouro. Piratas, trabalhadoras, gatas da noite, punks, senhoras muito sérias e madonas, como se ela deitasse na cama e visse passar diante dos sonhos fragmentos e rastros das eras, rastros ao mesmo tempo ancestrais e muito novos.
O que ela fazia não era desconstrução no sentido de desmontar peças de algo que está pronto e tem uma forma qualquer. Ela tinha, como entre os punks os mais inspirados, a noção de que a própria ideia de montagem é mais do que a simples soma, subtração ou rearranjo de partes.
Nos primórdios de sua loja Sex, a famosa que abriu com o então marido Malcolm McLaren, os elementos bondage, s&m, serviam sim para falar de sexo e pornografia, mas também para expor dúvidas sobre a ideia de gênero e o mistério frenético que ronda o sexual.
Se os homens ali eram brindados com camisetas estampadas com seios e enfeites de mamilo, as garotas compravam protetores para os sacos e pênis que não tinham. Mas não só isso. Até o fim ela pensou o corpo além da anatomia, como algo cuja substância é questionável apesar da materialidade de ossos, genitais, pele e coração.
Entre suas ideias estavam a de que feminino e masculino não implicavam em uma correspondência entre mulher e homem, coisa que está muito presente hoje nos debates políticos, sociais e acadêmicos.
Ela parecia tentar entender o que seriam afinal essas coisas e sua visão de gênero, segundo suas palavras, era de que se tratava de algo que “não importa muito”. Certa vez ela disse que durante sua adolescência foi tomada pela sensação de que estava se transformando em um menino, algo que não a incomodou, e que tempos depois virou outra coisa. Não se tratava de uma posição, mas de uma memória para a qual ela mesma não tinha um significado fechado, estanque. Era um depoimento anti-etapista, ou seja, um questionamento sobre roteiros, meios e fins pré-determinados.
Quando o clássico Alice no País das Maravilhas fez 150 anos, Vivienne topou criar uma nova capa e uma introdução para a edição especial da obra. E assim escreveu Vivienne Westwood: Crianças! Nunca se tornem complacentes. O mundo que achamos que conhecemos reflete a forma que estamos condicionados a vê-lo. Talvez ele não seja nada nada desse jeito”.
Que seja boa a viagem para Vivienne Westwood, designer do rasgo, rainha dos trapos e amiga da dúvida.
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