Os diferentes tipos de abuso psicológico e como romper esse ciclo de violência

Duvidar da sua própria capacidade, autodepreciar o seu trabalho, insônia, falta de apetite e crise de depressão podem ser sintomas desencadeados pelo abuso psicológico. Saiba como ele ocorre, quais as motivações de quem pratica e quando procurar ajuda.


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Ilustração @gusbalducci



Muito se fala sobre o abuso psicológico em canais do YouTube, debates em podcasts e rodas de amigos, mas nem sempre conseguimos identificar quando a situação está ocorrendo com a gente. “É um fenômeno que, ao mesmo tempo que é superestimado, não é reconhecido”, avalia Victor Augusto Bauer, psicólogo e psicanalista mestre em suicidologia pela Universidade Estadual Paulista.

Para ele, essa dificuldade vem muito do fato desse tipo de violência nem sempre acontecer de uma maneira totalmente clara. “Não tem um outdoor com uma luz vermelha piscando alertando que aquilo se trata de abuso psicológico”, comenta. Entre outras possibilidades, a vítima pode estar acostumada a vivenciar situações abusivas no interior da sua família sem que isso seja nomeado ou ter resistência em aceitar que é parte de uma situação tão difícil que envolve componentes de crueldade.

Por outro lado, com a popularização do termo, há quem prefira acusar os outros de abuso psicológico do que lidar com as dificuldades comuns da vida amorosa, do trabalho e com os amigos. “Cada vez mais, estamos com dificuldade em lidar com o nosso próprio sofrimento e com o desencontro com o outro e acabamos colocando uma lupa em situações desagradáveis, mas que não caraterizam a repetição, ponto determinante nesse tipo de violência”, explica o psicanalista.

Para um melhor entendimento do que se trata o abuso psicológico e para auxiliar quem talvez esteja passando por essa situação, abaixo Victor comenta algumas características fundamentais dessa prática e orienta sobre a importância de se procurar ajuda profissional.

O que é o abuso psicológico?

“É uma forma de depreciação, deslegitimação e desconsideração do outro”, define Victor em linhas gerais. Segundo o psicanalista, ele pode ocorrer em qualquer contexto em que existam relações humanas, como no trabalho, na família, no convívio de amigos e entre um casal. “É um exercício de poder, de se estabelecer quem está em uma posição superior na relação, mesmo que seja na fantasia de quem pratica”, explica.

Isso pode se dar tanto de um modo sutil, que costuma ser mais difícil de reconhecer, como de uma maneira tão aberta que pode configurar um crime. O uso excessivo da ironia, do sarcasmo e do desprezo são algumas práticas comuns no primeiro caso, já no segundo entram a difamação, a ameaça e a injúria como exemplo. “No fundo, o fim da linha do abuso psicológico é tornar o outro um sujeito sem posição ativa na relação, é desconsiderá-lo ao ponto de anulá-lo”, elucida Victor.

Os reflexos em quem sofre abuso psicológico

As consequências dessa violência sobre a vítima podem ser as mais diversas, uma vez que ela desencadeia tipos de sofrimento específicos da personalidade de cada um. Algumas pessoas têm tendência à depressão, outras à ansiedade e outras à insônia, por exemplo, e o abuso psicológico pode ser um gatilho para que esses quadros aflorem e se intensifiquem.

No entanto, Victor destaca que um dos reflexos clássicos do abuso psicológico é um fenômeno chamado “identificação com o agressor”. Ele se dá quando a vítima passa a reproduzir o discurso depreciativo que o abusador impõe sobre ela. “Ela desqualifica o próprio trabalho, o próprio corpo ou as próprias características de personalidade. Uma pessoa que repetidas vezes é chamada de burra, de incompetente, de inadequada, pode começar chamar a ela mesma assim”, explica o psicanalista.

Isso acontece por um fator determinante do abuso psicológico: a repetição. Quem o pratica vai repetindo insistentemente algumas falas e ataques até o outro acreditar que aquilo é real. “Imagine um casal em que o parceiro desvalorize profissionalmente o companheiro – seja por conta do retorno financeiro ou pela consideração social que o outro atribui à profissão. Essa pessoa vai recebendo tantas vezes essa depreciação que passa a ser emissor desse discurso que o diminui”, exemplifica.

Abuso psicológico entre irmãos

Assim como os efeitos sobre quem é vítima de abuso psicológico podem ser diversos, as formas de atuação também variam bastante. No entanto, algumas atitudes costumam ser bem características de determinadas relações – por mais que possam ocorrer também em tantas outras.

No convívio entre irmãos, o abuso psicológico costuma acontecer quando um deles se coloca em uma posição semelhante à que o pai ou a mãe ocupam ou deveriam ocupar na vida da criança, ditando o que o outro pode ou não fazer. “O clássico é o mais velho buscar obter o controle sobre o mais novo ou, quando os gêneros variam, o homem fazer isso com a mulher”, aponta Victor.

Censurar a forma do outro se comportar ou se expressar, fazer piadas com o objetivo de constrangê-lo, regular com quem a irmã pode ou não sair e ameaçar revelar um segredo para os pais são alguns ataques comuns entre irmãos que, quando recorrentes, podem caracterizar um abuso psicológico.

Abuso psicológico por parte dos pais

Dentro da família, o abuso psicológico também pode se manifestar em outras direções. Mesmo em uma posição hierárquica superior já pré-determinada, o pai ou a mãe – e, até mesmo, os dois – podem se exceder nas práticas de controle sobre os filhos. “Ameaças de abandono em suas mais diversas formas são o mais comum, junto com violência física”, sublinha Victor.

Outras condutas comuns nesse tipo de abuso, de acordo com o psicanalista, são o excesso de expectativas, a ausência de suporte, a negligência de cuidados afetivos e a exposição a conflitos e brigas dos pais. É preciso, sim, haver um respeito à posição deles de mentores e responsáveis pelos filhos, mas essa autoridade deve ser encontrada por meio do equilíbrio. Afinal, tanto o excesso de rigidez, quanto o de permissividade podem ser classificados como formas de agressão psicológica, alerta o especialista.

Abuso psicológico no trabalho

Outra forma de abuso psicológico por meio do exercício excessivo da autoridade é na relação de chefe e subordinado no trabalho. Quem está na posição de poder aproveita disso para ultrapassar limites que acabam afetando a saúde mental do outro e causando sofrimento.

Segundo Victor, algumas práticas comuns de violência psicológica nesse tipo de relação são: excesso de demandas atreladas a ideais de performance e produtividade, postura verbal violenta, ameaças implícitas de demissão, invasão dos horários fora trabalho e normalização de situações precárias.

Abuso psicológico nas relações amorosas

A maneira como uma pessoa se posiciona diante de determinado assunto tem sempre um caráter muito subjetivo. Portanto, pode ser bastante problemático quando alguém se expressa a partir das suas próprias percepções e tem a sua fala constantemente desconsiderada pelo outro como se não tivesse valor. O psicanalista conta que isso acontece muito nas relações amorosas quando um parceiro vai dizer ao outro como se sente.

“Muitas vezes, a resposta é ‘você não tem motivos para sentir dessa forma’, ‘não é isso’, ‘você não deveria se sentir assim’. Quando, na verdade, quem está falando sobre a sua intimidade está falando sobre alguma coisa que, para se transformar, primeiro precisa ser reconhecida e acolhida”, analisa. Segundo Victor, essa deslegitimação pode acontecer das maneiras mais complicadas e complexas e, muitas vezes, com incrementos perversos e cruéis.

Entre os casais heterossexuais também é muito comum o homem querer ditar de que maneira as decisões do casal ou da família vão se dar. Com isso, a mulher passa a ter pouco ou quase nenhum espaço de consideração nas suas falas, vontades e percepções. “É sempre uma maneira de fazer com que a coisa deixe de ficar horizontal. É uma forma de poder e de controle”, avalia Victor.

Abuso psicológico entre amigos

Quando um grupo de pessoas se reúne em posição de superioridade para atacar sistematicamente a mesma pessoa, temos uma situação de bullying – e esse é o modelo típico de abuso entre amigos. De acordo com Victor, nesses casos, as práticas e os comentários costumam se direcionar ao corpo ou a alguma característica que pode indicar um tipo de fragilidade na vítima.

“Se a pessoa é magra demais, é porque ela é magra. Se o nariz é grande, é pelo nariz. Se é descendente de asiático, é por esse motivo. Você pega um indivíduo, reduz a um traço específico e ataca aquele traço coletivamente”, delineia o especialista. O alerta fica principalmente para grupos que colocam uma pessoa em posição de exclusão ou que têm um personagem que serve como saco de batata para levar pancada, aponta.

A estrutura social que permite o abuso

Victor ressalta que um erro comum é pensarmos apenas na vítima e no agressor como elementos do abuso psicológico, quando existe um contexto muito maior que precisa ser considerado. Ele exemplifica apontando que a violência entre irmãos só é possível porque existe uma conivência do resto da família e que o patrão só trata mal o trabalhador se existir um contexto institucional que seja permissivo a esse comportamento.

Ou seja, o abuso psicológico apenas ocorre porque envolve um cenário mais amplo que consolida essa prática. “Normalmente, ele acontece porque um terceiro elemento está enfraquecido. É uma relação mais ou menos proporcional. Quanto mais grave for a situação, mais fraco está esse terceiro”, explica o psicanalista.

Por isso, é importante que os pais estejam atentos à relação entre os filhos e intervenham sempre que um tentar exercer algum poder sobre o outro. No caso das empresas, é preciso que a questão seja trabalhada institucionalmente para que não se crie um terreno fértil no qual um patrão autoritário se sinta confortável em mostrar as garras para os funcionários. E por aí vai.

Até mesmo entre os casais é fundamental que esse terceiro se fortaleça para que a violência psicológica seja evitada. “Os relacionamentos amorosos costumam ser problemáticos porque boa parte da vida deles é vivenciada muito a dois”, analisa Victor. “É muito importante que o casal converse sobre a sua relação com pessoas de fora para que esse relacionamento se ventile. Pode ser com alguém da família, com os amigos, com o terapeuta, com médico…”, salienta.

Romper a relação é a solução?

Segundo o psicanalista, quem sofre o abuso psicológico costuma ter mais consciência da violência do que quem exerce o papel ativo nessa situação. No entanto, a impossibilidade de sair dela ou de resolvê-la é algo bem típico desse cenário. “Os motivos dependem muito do contexto. Às vezes, o indivíduo não consegue se livrar de um chefe abusivo porque precisa do trabalho. Uma criança que sofre abuso psicológico dos pais não sai porque não tem para onde sair”, comenta.

Para ele, as causas que fazem a vítima seguir no ciclo de abusos é uma pergunta que deve ser respondida individualmente, porque só se resolve individualmente. No entanto, o rompimento da relação não é necessariamente o caminho mais indicado para solucionar o problema.

“Os critérios que utilizo na clínica para apoiar esse afastamento concreto do agressor ficam restritos a casos extremos, onde o trabalho com esse paciente ou essa família se demonstra infértil”, comenta Victor. Normalmente, a busca é por encontrar uma maneira de fazer com que esses abusos sejam uma fonte de transformação interna e de repactuação da forma de se relacionar dentro de determinados contextos.

Um bom exemplo disso é o caso da mulher que reproduz historicamente uma mãe que foi abusada pelo pai e tem um marido que abusa dela, sugere psicanalista. “O que acontece se ela se separa desse marido sem trabalhar as questões que levaram à escolha dele e que impedem que ela intimamente consiga se separar desse tipo de relação? Se isso não for elaborado, ela corre o risco de escolher outro marido como o anterior, que tem atitudes semelhantes às do pai, que costuma ser parecido com o avô”, avalia.

Por outro lado, Victor também acredita que o agressor reconhecer o abuso pode ser importante para desencadear algo altamente benéfico e transformador para essa situação: “a possibilidade de reparar o que fez e, ao mesmo tempo, reorganizar a maneira como aquela relação se dá. O que pode, o que não pode, onde para o outro aquilo se torna um excesso, uma violência.” No entanto, esse reconhecimento só é importante e transformador se vem associado de desculpas, reparação e repactuação do laço.

De qualquer forma, é importante reafirmar que esse é um trabalho muito íntimo. Não existe uma regra geral sobre a melhor maneira de encerrar um quadro de abuso. O que vale para um não necessariamente vale para outro, justamente pelas questões subjetivas que permeiam cada indivíduo. Por isso, é sempre importante procurar um psicanalista ou psicólogo para o acompanhamento necessário para lidar com esse tipo de situação.

O papel do psicanalista ou do psicólogo

Por mais que muitas pessoas acreditem dar conta de lidar com esse tipo de violência sozinhas, as consequências das agressões psicológicas tendem a ser intensas demais para que o tratamento seja negligenciado. “Não procurar ajuda vai desencadear sofrimento mental e sintomas e quadros clínicos que, se não tratados, tendem a se intensificar, a se cronificar e, por fim, empobrecer a experiência de vida de cada um”, alerta Victor.

Lembrando que esse tipo de abuso pode desencadear não apenas sintomas psicológicos como também sintomas físicos, com risco de afetar o sono, o apetite e a energia da pessoa. A solução está, justamente, em encontrar mecanismos pessoais para lidar com essa violência, e é papel do psicólogo ou psicanalista orientar clinicamente esse processo.

“Primeiramente, a gente faz o reconhecimento da situação e, posteriormente, investigamos o cenário que ela ocorre, os detalhes, os padrões que se repetem”, explica o especialista. “Um outro ponto muito importante é identificar de que maneira a pessoa responde a isso, que, normalmente, não é positiva, nem funcional. Depois, podemos construir uma nova resposta diante desse cenário, seja um posicionamento, seja dizer para o outro que não permite aquilo ou, até mesmo, se retirar da relação”, esclarece.

Em suma, a manobra fundamental é retirar a vítima de uma posição passiva para colocá-la em uma posição ativa, onde consiga se posicionar e interromper essa repetição. Tudo isso sempre levando em consideração as singularidades de cada caso e as particularidades de cada sujeito para lidar com o abuso psicológico sofrido.

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