Conselho de nutricionista: espante a culpa e coma seu bolo em paz

Com uma abordagem que propõe menos restrições, mais autoconhecimento e uma dose de feminismo, uma nova geração de nutricionistas mostra que a nossa relação com a comida e com o corpo pode ser mais gentil e saudável.


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“Não se destrói o patriarcado com fome”. A frase, da nutricionista Fernanda Imamura, viralizou na mesma velocidade em que aquele bombom acaba com os planos de dieta da semana. Com quase 37 mil seguidores no Instagram e no Twitter, Fernanda vem chamando a atenção com provocações e pensamentos que, em outros tempos, dificilmente sairiam da boca de outros profissionais do ramo. No lugar de cobrança e privações, a nutricionista prega a busca pelo autoconhecimento e a liberdade. E esta última, definitivamente, não combina com as restrições que as dietas trazem. “Elas são feitas para não funcionarem. Quem tenta segui-las sempre acaba frustrado, achando que o problema está na ‘falta de força de vontade’. Existe uma indústria que lucra muito com a desinformação e o terrorismo nutricional que vivemos, levando a um pensamento obsessivo sobre comida, estresse e ansiedade. Isso tudo pode gerar a compulsão alimentar”, explica. Além de atender em seu consultório em SP, ela também colabora com trabalhos no PROTAD, Programa de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.


Fernanda faz parte de uma nova geração que vem popularizando a abordagem da nutrição comportamental, pautada em ciência e ainda pouco discutida no Brasil, onde, segundo pesquisa feita em 2018 pelo Ministério da Saúde, 55,7% da população apresenta o índice de massa corporal acima dos padrões estabelecidos. Em outras palavras, é uma maneira mais gentil de olharmos para a nossa relação com a comida e, principalmente, para o nosso corpo. Padrões e comportamentos são questionados e restrições são abolidas. Nesse novo jeito de pensar a nutrição, a questão alimentar também pode ser vista como um ato político, principalmente para as mulheres.

A frase que viralizou, conta Fernanda, foi inspirada no livro O Mito da Beleza, de Naomi Wolf. De acordo com a autora norte-americana, ‘fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres’, já que a razão de ser passa a ser o corpo e a comida, e tudo gira em torno disso. “Reforçar a insatisfação das mulheres e essa busca por corpos irreais é, sem dúvida, benéfico para uma sociedade machista, pois faz com que as mulheres se mantenham longe de posições importantes. É uma forma de silenciá-las”, opina Fernanda.

A CULPA POR TRÁS DA COMIDA

A advogada Lígia Fernandes, de 27 anos, conhece bem o ônus dessa autocobrança. Ainda na infância, Lígia começou a associar comida e culpa. Aos 10, para participar de um evento de dança no colégio, precisou pegar o figurino de uma colega emprestado. Por causa disso, entendeu que deveria emagrecer. “Pensava: ‘preciso entrar no figurino de uma menina que faz balé e é muito magra, nunca vou conseguir’. No fim das contas, era uma roupa que servia normalmente e eu nem precisaria ter me preocupado, mas mesmo assim essa cobrança interna continuou, e eu queria emagrecer de qualquer jeito, de qualquer forma”, conta. Na adolescência, com 14 anos, desenvolveu bulimia e se exercitava por horas a fio. O Orkut era a rede social da época, e Lígia conheceu grupos em que meninas compartilhavam dietas extremamente restritivas, chás emagrecedores e outros artifícios para a perda rápida de peso. “Eu passava dias sem comer, só ingerindo líquidos. Quando meus pais perceberam minha mudança de comportamento, me incentivaram a fazer terapia. Demorou dois anos e meio para que eu melhorasse e descobrisse que sempre fui muito ansiosa e exigente comigo mesma, em vários aspectos”, relembra. Ainda sobraram resquícios de culpa, no entanto, que surge associada a certos alimentos, como o pão, que ela sempre come com certa desconfiança.

No ano passado, Lígia conheceu a nutricionista Manuela Capezzuto e, desde então, vem trabalhando esse caldeirão de sentimentos com a nutrição comportamental. “Existe uma frase clássica que é: ‘nem toda dieta leva a um transtorno alimentar, mas quase todo transtorno alimentar começa com uma dieta’. O tratamento é extremamente individual, ensinando as pessoas a realmente ouvirem os sinais internos do corpo. Um bebê, por exemplo, sabe quando está com fome e quando está saciado. Temos isso dentro da gente de forma muito clara, mas é algo que vai se perdendo ao longo da vida. Então, o que faço com todos os pacientes é resgatar esses sinais e entender os diferentes tipos de fome: a física, a emocional, a social…”, explica Manuela, formada pela USP e especialista em transtornos e compulsão alimentar.

É importante destacar que o peso não é o mais importante e, sim, uma consequência dessa nova relação com a comida. Até o famoso IMC (índice de massa corporal), tão usado para definir padrões considerados ideais, perde relevância nesse contexto. “Para pesquisas populacionais, é de grande valia, mas individualmente, não. Se uma pessoa tem um peso elevado, mas é muito musculosa, o IMC vai ser de sobrepeso. Também tem gente com índice de sobrepeso, mas é muito ativa, está com os exames em ordem, e isso diz muito mais do que um número na balança”, atesta a profissional.

O ESTIGMA DO PESO

Mas, afinal, o que é ser gordo? Para Fernanda Imamura, é apenas uma característica física. “A resposta tem aquela tradicional relação com o IMC, dado sem grande relevância individualmente. E apesar da palavra ter associações com termos ofensivos devido à gordofobia, não possui valor moral algum. É como falarmos que uma pessoa é magra, alta ou baixa”, decreta.

A gordofobia, vale lembrar, não se limita ao bullying com o próximo. Ela também se manifesta em uma série de associações injustas, cometidas até inconscientemente. Por exemplo, na crença generalizada de que uma pessoa tem, obrigatoriamente, problemas de saúde por aparentar estar com um peso inadequado, segundo os padrões. Ou no julgamento de que uma pessoa gorda é uma pessoa preguiçosa e que não se importa com a aparência. É o estigma do peso. “Valoriza-se a magreza, enquanto a gordura é demonizada. Com as redes sociais, tudo piorou, somos bombardeados por corpos diferentes dos nossos, incentivando a comparação e gerando frustração. É importante lembrar que essas imagens raramente são verdadeiras e passam por manipulações. Precisamos ter senso crítico e filtrar esse conteúdo”, continua Fernanda.

A gordofobia também se manifesta em associações injustas, como na crença generalizada de que uma pessoa com peso fora dos padrões necessariamente tem problemas de saúde.

Apesar de movimentos que incentivam a autoestima, como o body positive, estarem aos poucos quebrando os padrões de beleza nas redes sociais, elas ainda contam com a presença maciça de influenciadores digitais da área fitness. Para a nutricionista Nicoli Brek, a área da nutrição se transformou em um negócio moldado por uma grande estratégia de marketing: “No Instagram, principalmente, isso ficou muito mais forte para as mulheres. Se eu quero perder peso, basta que eu pare de comer ou retire alimentos da minha rotina e coma outros, mesmo se eu não gostar deles, para que eu fique igual aquela pessoa que eu admiro. Mas por quanto tempo eu aguento isso?”

Geralmente, não muito tempo, como relata a professora de ioga Fernanda Lima, 50 anos: “No começo, a gente está animada e faz (a dieta) direitinho, mas depois, vai ficando mais difícil”, conta ela. Antes de conhecer a abordagem proposta por Nicoli, Fernanda costumava seguir dietas específicas de segunda à sexta e, aos finais de semana, acabava com o estoque de guloseimas da casa. Agora, passou a prestar mais atenção a si mesma e às suas vontades. Como o doce deixou de ser uma proibição, aquela vontade reprimida perdeu a força: “Quando como um ou dos quadradinhos de chocolate já fico saciada.” Fernanda, atualmente, está dez quilos acima do peso que tinha há 30 anos. Isso, garante, não é mais um problema, diferentemente de quando era mais jovem e as revistas ditavam qual corpo as meninas de sua geração deveriam ter: pernas finas e barriga negativa. “Talvez ainda exista um resquício disso em mim, mas agora eu quero emagrecer para me sentir mais disposta e leve fazendo minhas atividades.”

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Saber qual é a motivação para a perda de peso, por sinal, é outro ponto crucial. “É preciso se fazer as seguintes perguntas: por que eu quero perder peso? Meus exames estão alterados? Tenho limitações físicas? Se você quer emagrecer por uma questão estética, tudo bem, mas é preciso se conhecer e ter autonomia para fazer as melhores escolhas, sem depender de um nutricionista para o resto da vida”, diz Nicoli.

Esse autoconhecimento também vai evitar frustrações na busca por um ideal inatingível de peso – o corpo dá seus sinais. Assim como ele nos avisa sobre fome, saciedade e prazer, também mostra qual é ou deveria ser o nosso peso. “Quando você se conhece, melhora os comportamentos alimentares e faz suas atividades físicas de rotina, naturalmente ele vai mostrando qual a sua faixa de peso saudável. Se ainda assim você não atingir aquilo que gostaria, é porque talvez aquele número na balança seja o seu mesmo e você terá que aprender a lidar com ele”, orienta Fernanda Imamura.

Saber fazer as melhores escolhas para uma boa alimentação pode parecer um drama com quantidade de informações disponíveis em livros, sites e redes sociais. Mas não precisa ser assim. O Guia Alimentar Para a População Brasileira, indicado pelas três nutricionistas consultadas nesta reportagem, mostra que uma alimentação balanceada não tem complicação. Elaborado pelo Ministério da Saúde, com a supervisão do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, o documento mostra que a melhor das dietas é aquela baseada em alimentos in natura e minimamente processados, como verduras, legumes, frutas, verduras, grãos e carnes (para quem consome proteína animal). Nada tem a ver com os alimentos da moda, sem glúten, sem lactose, diet, light, zero isso ou zero aquilo, que muitas vezes são produtos ultraprocessados, carregados de conservantes e outros aditivos químicos. “É preciso entender e aceitar que a função da comida não é emagrecer e, sim, nutrir, dar energia, saúde e prazer”, diz Fernanda. “Claro que existem alimentos que precisam ser usados por alguns pacientes, em casos de doença. Mas se você é saudável, por que vai fazer um bolo com um monte de adoçante ou farinha diferente? Não lhe trará a mesma satisfação que um bolo com açúcar ou chocolate”, completa a nutricionista. Simples assim, como a nossa relação com a comida deveria ser.

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