Duda Reis: “Transformar minha dor em propósito vai me curar”

Na terceira reportagem da série sobre violência doméstica, a atriz fala sobre o instituto Survivor, criado para prestar acolhimento a mulheres.


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Em meados do ano passado, poucos dias antes de seu aniversário de 20 anos, a atriz Duda Reis resolveu ir para a Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso de Goiás (GO), com a amiga Izabella Borges. Já fazia quase seis meses que sua vida havia mudado completamente: após se separar do cantor Nego do Borel, ela o denunciou por episódios de violência doméstica, e Izabella foi a advogada do caso. O assunto se espalhou pela imprensa. Desde então, em meio a mensagens de apoio de outras mulheres que se identificavam com sua dor e de pessoas duvidando dos seus relatos porque postava fotos em que parecia feliz, Duda via sua vida ser revirada e debatida por desconhecidos em redes sociais.

O propósito da viagem, conta ela, era focar no feminino, se alinhar: “E teve um dia que eu falei pra Iza que eu não queria ser resumida àquilo. Eu disse: ‘quero que essa dor passe’. E aí a Iza falou ‘vamos criar um instituto'”. A conversa, relembra, foi determinante para o nascimento do Survivor. “Acho que às vezes o lugar onde você mais é ferida é o lugar onde você mais vai curar. Quando ela falou isso, tive um banho de consciência. Eu falei: ‘É isso que vai me curar mesmo, quando eu puder transformar num propósito de vida’.”

Yoga, psicanálise, meditação e estudos sobre violência doméstica já eram parte da rotina da atriz, por incentivo de Izabella. Além de advogada criminalista, Izabella é psicanalista, tem formação em yoga e é cofundadora do projeto Sentinelas, que busca empoderar mulheres com informações sobre violência de gênero, saúde e autoconhecimento. Ao voltar da viagem, Duda mergulhou de vez no tema. “A gente passou a trocar muita informação até definir a linha em que iríamos atuar”, conta Izabella. Optaram pelo acolhimento, deixando a assistência jurídica com as parceiras do Justiceiras. “Vamos auxiliar as mulheres no momento do trauma para que elas possam ressignificar esse lugar, essa posição de vítima, para mudarem a perspectiva e se tornarem sobreviventes.”

A escuta empática é chave no processo e pode mudar vidas, avalia Izabella. “Às vezes, o que uma mulher precisa é falar. O trauma cria necessidades. Às vezes, a necessidade é falar, contar sua história. Às vezes um diálogo muda a história da pessoa.” Mais do que usar a própria visibilidade para expandir o alcance do instituto, Duda está disponível para outras mulheres. “Eu me coloco muito nesse lugar de escuta. Elas são vítimas, eu também fui, conversar liberta, conversar cura”, diz.

Em suas primeiras semanas de atuação, o Survivor já contabiliza cerca de 300 agentes de atendimento (voluntárias) e a mesma quantidade de mulheres atendidas, as sobreviventes. O instituto acaba também sendo uma maneira de estruturar o atendimento a muitas que já procuram as fundadoras em suas páginas pessoais nas redes sociais. “Todos os dias recebo milhares de mensagens de mulheres que me relatam que viviam um relacionamento abusivo, que decidiram terminar, que conseguiram terminar através da minha história, da minha força, do que eu represento. Eu sempre respondo”, conta Duda.

Vítima idealizada

Não à toa, o instituto se chama Survivor (sobrevivente, em português). O esforço para que a mulher não seja chamada de vítima, e sim de sobrevivente, também não é mera semântica. “A questão é uma mudança de paradigma. Vítima é um estereótipo patriarcal que reforça certos lugares. A vítima é vista de uma maneira idealizada, existe um conceito do que seria uma vítima, uma mulher submissa, que depende do sistema para conseguir sobreviver. Ela está sempre nesse lugar de dependência emocional. A sobrevivente conseguiu transmutar essa posição e alcançou uma autonomia, rompeu um padrão”, explica Izabella. Para a advogada, a palavra “vítima” carrega, além dessa idealização, um pré-julgamento. “Espera-se que ela não seja uma mulher ousada, que não tenha uma vida social. Porque, se ela tiver, for livre, vão descredibilizar sua fala.”

Duda se lembra bem de viver isso na pele. “Eu passei muito por isso. As pessoas idealizam mesmo a vítima. Ficavam e ficam até hoje acompanhando cada passo meu e querem às vezes descredibilizar a minha história porque eu tô feliz, porque eu fui para uma festa com as minhas amigas, porque eu fiquei com alguém. ‘Se ela ficou com alguém, ela não sofreu abuso nenhum, imagina, tá beijando na boca, nada disso aconteceu’. Eu escuto isso várias vezes. E eu sou uma mulher hoje em dia superlivre, segura de mim, empoderada, faço o que eu quiser. Causa muita estranheza uma mulher dar a volta por cima. Tirá-la desse lugar de vítima e colocá-la no de sobrevivente acho que é o turning point da questão”, diz.

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Duda Reis: “Às vezes, querem descredibilizar a minha história porque eu tô feliz, porque eu fui para uma festa com as minhas amigas.”Foto: Catarino

Nesse processo de autoconhecimento, Duda tem aprendido sobre os direitos das mulheres, tema que até então estava distante de sua realidade. “As pessoas não querem introduzir o feminismo para a sociedade porque isso faz a mulher pensar. Se ela pensa, rompe muitas coisas. Então, a gente já é ensinada desde criança a não entrar em contato com essas bandeiras. Meus pais são maravilhosos, só que na criação deles também não foram ensinados sobre feminismo e machismo. A violência de gênero não era um tema abordado na minha casa porque com a geração anterior também não era assim.”

Com o aprendizado, pôde rever episódios do passado e desde já transformar o próprio futuro. Conquistou algo de que não abre mais mão: a própria liberdade. “Quando eu passei por tudo que passei, às vezes não entendia a gravidade. Hoje vejo que já vivi diversas violências no decorrer da minha vida, desde criança”, diz ela. “Acho que essas experiências me tornaram assim também. Eu prezo muito tudo que conquistei. Então, as minhas relações mudaram”, conta.

Survivor na prática

O Survivor tem como missão proporcionar essa mesma oportunidade de autoconhecimento e autodesenvolvimento para outras mulheres, com acesso a tratamentos de saúde mental. O instituto conta ainda com professoras de yoga que conduzem rodas, encontros e conversas práticas. “São pequenos ajustes que a gente pode passar para uma sobrevivente e podem mudar completamente o seu dia, como a consciência da respiração, até para acalmar o sistema nervoso central.”

Parcerias com empresas também podem ajudar em um problema na vida de boa parte das sobreviventes. Com companheiros agressores que com frequência não as deixam trabalhar, muitas se tornam dependentes financeiramente deles, o que dificulta a saída do relacionamento abusivo. “A gente quer disponibilizar trabalho para essas mulheres, para que elas consigam reconstruir, inclusive, sua autoestima. Esse é um dos pilares da nossa atuação”, afirma Izabella.

Como ajudar ou procurar ajuda

Survivor

Atua no acolhimento da mulher que sofreu um trauma, prestando auxílio psicológico e focando em sua saúde mental. Também faz a ponte entre sobreviventes que precisam de emprego e empresas parceiras. Instagram: @institutosurvivor. Para pedir ajuda, basta se inscrever neste link. Para ajudar como agente de acolhimento, é preciso se inscrever neste link.

Sentinelas

Compartilha informações sobre violência de gênero, saúde e autoconhecimento nas redes sociais. Dá orientações em relação aos canais e instituições que podem ser procurados em caso de violência e assédio. Instagram: @sentinelasdelas

Justiceiras

De forma online, oferece orientação jurídica, médica, psicológica, socioassistencial e rede de apoio e acolhimento a meninas e mulheres que sofreram violência doméstica. Basta preencher o formulário disponível no site e no Instagram @justiceirasoficial

Compartilhando Direito (Instituto Nelson Wilians)

Focado no empoderamento e na justiça social, o Instituto tem uma série de programas, como o Compartilhando Direito, para atender principalmente adolescentes, jovens e mulheres, sempre por meio de parcerias com outras instituições. Instagram: @institutonw

Rede Feminista de Juristas (Defemde)

Fazem atualmente um trabalho de advocacy, lutando pela criação de políticas públicas que combatam a discriminação de mulheres e ajudem a promover a igualdade de gênero. Instagram: @defemde.

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