“Eles estão pagando pela guerra. Por que não podem pagar pela paz?”, diz presidente do Planetary Guardians

Em entrevista à ELLE, após evento do coletivo global em São Paulo, Hindou Oumarou Ibrahim fala sobre a importância do Norte Global financiar a adaptação climática.


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Hindou Oumarou Ibrahim, presidente do Planetary Guardians. Foto: Divulgação



Na última sexta-feira (24.05), o Planetary Guardians (Guardiões Planetários) realizou seu primeiro encontro presencial no Brasil, na cidade de São Paulo. A ocasião foi usada para anunciar que o cientista brasileiro Carlos Nobre e a diplomata costa-riquenha Christiana Figueres se uniram ao grupo, além de homenagear quatro cientistas indígenas do país por suas contribuições. 

O Planetary Guardians é um coletivo de ativistas e lideranças climáticas do mundo todo, comprometidos em ouvir a ciência e a sabedoria dos povos originários e tradicionais para manter os limites planetários. O conceito refere-se às fronteiras necessárias para manter o equilíbrio da Terra. De acordo com o grupo, seis dos nove limites planetários que regulam a saúde do planeta foram ultrapassados, aumentando o risco de danos irreversíveis aos ecossistemas que garantem a vida humana.

No evento na capital paulista estavam presentes a ex-presidente irlandesa Mary Robinson, o ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos, a ativista mexicana Xiye Bastida, a ativista paquistanesa Ayisha Siddiqa, a cientista japonesa Naoko Ishii, a ativista chadiana Hindou Oumarou Ibrahim, o cientista sueco Johan Rockström e o empresário britânico e criador do coletivo, Richard Branson. Ainda fazem parte da iniciativa nomes como o ator Robert Redford, a oceanógrafa Sylvia Earle, o apresentador e ativista David Suzuki, a primatologista Jane Goodall e ambientalista Farwiza Farhan.

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Carlos Nobre é o primeiro brasileiro a tornar-se um Guardião Planetário. Conhecido mundialmente por suas pesquisas sobre o aquecimento global e a Amazônia, que relacionam desmatamento e incêndios florestais, ele é cientista sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. “A floresta amazônica é o coração biológico do planeta, com pelo menos 13% da biodiversidade mundial. Aproximadamente 28 milhões de pessoas vivem na Amazônia brasileira, incluindo muitos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades ribeirinhas que preservam a floresta há centenas de anos. Investir nessas pessoas e garantir que possam proteger a floresta amazônica é um dos melhores investimentos que podemos fazer para preservar nosso sistema de suporte de vida compartilhado”, destacou o cientista.

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Carlos Nobre: cientista é o primeiro membro brasileiro do Planetary Guardians. Foto: Divulgação

Além disso, o evento homenageou o trabalho de quatro cientistas indígenas. Foram eles: Braulina Baniwa, ativista pelos direitos das Mulheres Indígenas e mestranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília; Francisco Apurinã, que pesquisa mudanças climáticas sob a perspectiva indígena na Universidade de Helsinki, na Finlândia; Sineia Bezerra do Vale, gestora ambiental da Terra Indígena Serra da Lua (Roraima) e autora de Amazad Pana’Adinham: Perspectiva Indígena sobre Mudança Climática em Serra da Lua; e Cristiane Gomes Julião, pós-doutora em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ), com foco em direitos humanos, povos indígenas e meio ambiente.

A presidente do Planetary Guardians, Hindou Oumarou Ibrahim, é também indígena, do povo Mbororo. Além de seu trabalho no coletivo, a ambientalista e geógrafa é Coordenadora da Associação de Mulheres e Povos Indígenas do Chade e co-presidente do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas.

Em entrevista exclusiva à ELLE, Hindou falou sobre a importância de iniciativas como essas em meio à crise climática em que vivemos. Ela cita os acontecimentos recentes do Rio Grande do Sul, a necessidade dos países do Norte Global se responsabilizarem e a urgência de agendas de adaptação e resiliência para o Sul Global.

Por que é importante incluir e destacar cientistas brasileiros, como Carlos Nobre, mas também outros cientistas indígenas na agenda climática?
Penso que é muito importante incluir os cientistas que vivem no local do qual estamos falando. Todas as pessoas do mundo conhecem a Amazônia. E todas, claro, gostariam de agir. Mas você nunca poderá ser um especialista como alguém que mora, que depende e que se preocupa com seu território. Nenhum conhecimento é pequeno. Cientistas locais ou de uma temática específica, indígenas ou não indígenas, de áreas diferentes, nos permitem uma outra perspectiva e compreensão. Então, para mim, ninguém pode falar de forma mais objetiva do que um cientista que vive no seu lugar de origem. Ele procura a solução. Ele olha de forma holística. Por isso é realmente mais do que importante ter um cientista brasileiro para falar sobre o Brasil.

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Acho que um dos momentos mais especiais do evento foi com os cientistas indígenas. Você estava falando sobre reconhecer os diferentes saberes acerca dos ecossistemas, não só sobre a Amazônia.
Exatamente. Temos que olhar para os cientistas indígenas. Temos que olhar para os diferentes territórios. Amazônia, claro. Mas o Brasil não tem só a Amazônia. O Brasil possui uma área costeira, o Brasil tem savana. O Brasil não tem só gado, soja e desmatamento. Há mais do que isso. Existem zonas úmidas, rios etc. Existe tanta diversidade que as pessoas não veem. E essa é a minha preocupação, porque, como indígena, trabalho com os povos indígenas de todo o mundo, incluindo os povos indígenas do Brasil. Falamos sobre a visão holística. Dizemos que as pessoas se preocupam com as coisas que as sensibilizam. Não é porque a Amazônia está viva que as pessoas não estão sendo prejudicadas. Elas sentirão isso, localmente e nacionalmente. É por isso que é realmente muito importante para mim ter uma visão holística.

Como você começou sua jornada no Planetary Guardians?
Fui contatada pela equipe de Richard Branson. Recebi um email dizendo “Mary (Robinson) está conosco e nos disse que, pelo trabalho que você está fazendo, você já é uma Guardiã Planetária. Quer se juntar a nós?”’ Solicitei mais informações, li e pensei: “Isso já é o que estou fazendo”. Isso aconteceu no ano passado. Esta é a nossa primeira reunião presencial como Guardiões Planetários. Pensamos que era importante fazer isso no Brasil, porque talvez possamos influenciar o G20 (e o COP30). E, pouco antes de virmos, percebemos como é ainda mais importante pensar em formas de ir para o campo (com os indígenas), conversar com pessoas reais e ver o que pode ser feito. 

“Todas as pessoas do mundo conhecem a Amazônia. E todas, claro, gostariam de agir. Mas você nunca poderá ser um especialista como alguém que mora, que depende e que se preocupa com seu território.”

Como você começou sua jornada climática? Houve um momento específico que a levou a isso?
Sou uma pessoa indígena, do Chade, e meu povo é nômade, são pastores de gado. O meu povo vive no Chade, nos Camarões, no Níger, na Nigéria, na República Centro-Africana e no Sudão. Essas costumavam ser todas as terras dos meus ancestrais. Na minha comunidade, eles não mandam as crianças para a escola, mas minha mãe decidiu mandar a mim e minha irmã. E tem sido um desafio para ela, porque foi rejeitada pela própria família. Isso me fez crescer entre a cidade, indo para a escola, e minha comunidade, com a minha avó, aprendendo a ordenhar, ir atrás do gado etc. Na minha comunidade, eles se casam com meninas de 10, 12 anos. Depois, se divorciam, a vida fica mais complicada. Quando cheguei à adolescência, pensei: “Tenho que lutar pelos meus próprios direitos”. E compreendi que não posso lutar pelos direitos humanos sem lutar pelos direitos ambientais. Fico óbvio para mim. Não posso viver sem proteger o meu próprio povo. Hoje, continuo morando no Chade, trabalhando com minha organização, que fundei quando era muito jovem. Realizamos atividades com as mulheres e com as comunidades no mapeamento e gestão de terras. Estou usando a ciência e o conhecimento tradicional em conjunto, para realmente mitigar o conflito sobre os recursos e também para fazer negociações internacionais.

ELLE: Como você analisa a diferença entre a agenda climática para o Sul Global e para o Norte Global?
Isso é muito interessante, porque quando falamos em mudanças climáticas no Norte Global, fala-se em mitigação. Eles pensam que o Sul Global deve fazer um esforço para proteger as florestas, e então acabaremos com as mudanças climáticas. A agenda deles é mais voltada para a mudança da narrativa, em acabar com os combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão). Mas quem está usando mais combustíveis fósseis? Quem tem as maiores empresas de combustíveis fósseis? É o Norte Global. Então, eles não querem falar sobre o grande elefante na sala. Eles começaram as industrializações quando éramos “naturais”. Pegaram o mineral do mundo em desenvolvimento para serem eles próprios os desenvolvidos. E agora não querem mudar a maneira como vivem, para depois dizer: “Ah, temos de combater as mudanças climáticas”. Na COP 26, em Glasgow, há apenas três anos, eles disseram que iriam doar 25 milhões de dólares para a proteção das florestas. Onde está o dinheiro? Ninguém viu o dinheiro. Quando olhamos para quantos benefícios esses países obtêm, a cada ano, com os fósseis, são centenas e milhares de bilhões de dólares. Ou seja, o dinheiro está lá. Portanto, a sua agenda não é completamente baseada na verdade, na transparência. Quando olhamos para o Sul Global, a agenda não está na mitigação, porque não somos os mais industrializados. Nossa prioridade é a adaptação e a resiliência, porque somos nós que enfrentamos as maiores catástrofes climáticas. No meu país, Chade, a nossa emissão é de uma em mil, comparando apenas com a Alemanha, que é um país pequeno. Isso significa que não estamos emitindo nada. Mas estamos enfrentando a seca, as inundações, o conflito entre comunidades que morrem por causa das alterações climáticas, a migração e a imigração. Portanto, não precisamos mitigar. Precisamos de adaptação e precisamos de resiliência. Só que, como os nossos países também têm muitas prioridades, não podem investir apenas na adaptação climática. Por isso o Norte Global deve pagar, mas não estão fazendo isso. 

“Não é caridade. É um direito. As pessoas estão pedindo reparação pelo que lhes foi causado. Eles têm o dinheiro. Eles estão pagando pela guerra. Por que não podem pagar pela paz?”

Alguns Guardiões Planetários, incluindo você, falaram sobre o estado do Rio Grande do Sul, que está enfrentando o maior desastre climático de sua história, o que nos revela a importância da adaptação, como você colocou. Pode complementar porque essa agenda é tão urgente?
Ontem à noite, quando eu estava vindo do hotel para cá, uma pessoa me perguntou se eu vi a foto do cavalo que ele ficou cinco dias no telhado de uma casa (no RS). Eu respondi que não, e ele me mostrou a imagem. Agora, relembrando, estou ficando emocionada. Isso é inaceitável. É inaceitável que os povos e todas as espécies percam a vida por causa da catástrofe climática. Quando a enchente acabar, haverá muitos problemas sociais. Uma catástrofe pode gerar tantas outras crises que duram muito tempo. É também por isso que a agenda de adaptação e resiliência é mais necessária agora. O Sul Global deve ter a sua agenda de adaptação financiada. Isso é uma violação dos direitos humanos, é uma catástrofe. É preciso uma resposta a perdas e danos. Não é caridade. É um direito. As pessoas estão pedindo reparação pelo que lhes foi causado. Eles têm o dinheiro. Eles estão pagando pela guerra. Por que não podem pagar pela paz?

Nós sabemos que estes eventos climáticos extremos impactaram de forma desproporcional mulheres, crianças, comunidades negras e comunidades indígenas. Por que é importante trazer para a agenda climática todas estas vozes femininas, negras e indígenas?
Trata-se de justiça climática. Porque aqueles que são mais vulneráveis estão sofrendo o maior impacto. Populações negras, indígenas ou as mulheres e crianças são os que ficam para trás na sociedade, são os povos mais empobrecidos. E, quando dizemos “mais pobres”, quero que fique claro: eles não são pobres porque não têm dinheiro na conta bancária. Esta não é uma definição de pobreza. Eles ficam pobres por causa do impacto climático, pois estão perdendo suas terras, seus recursos. Por isso é importante levar em conta esses povos. Não somos vítimas, somos a solução. Estamos contribuindo com nosso conhecimento tradicional. É melhor do que a tecnologia que está nos destruindo. Portanto, existem soluções, e elas devem estar nas mesas de tomada de decisão. Temos que considerar as mulheres como criadoras de soluções para consertar o que o homem destruiu. Agora temos tantos movimentos juvenis ao redor do mundo, e dizem “a juventude vai consertar isso”. Não, os jovens não estão lá para consertar sua bagunça. Você tem que começar a consertar sua bagunça. Os jovens estão pedindo para que você faça isso. Não podemos tirar-lhes a infância. 

“Não somos vítimas, somos a solução. Estamos contribuindo com nosso conhecimento tradicional.”

As indústrias da moda e da beleza têm um grande impacto e contribuição para as mudanças climáticas e as emissões de gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo, ambas as indústrias são capazes de promover grandes soluções. Como você acha que podemos avançar com essa agenda?
Nós todos sabemos que a moda utiliza muitos recursos naturais e muitos recursos hídricos. Ao mesmo tempo, agora temos a moda sustentável. Mas o problema é que a grande indústria da moda toma as decisões e dita as regras. A cada dia ou a cada minuto, um novo design está surgindo e é tão barato, tão acessível a todos. Quando você olha para isso, você simplesmente quer comprar, comprar, comprar, então você se torna um consumidor, consumidor, consumidor, sem pensar no que está comprando. O que precisamos é de um meio termo para fazer regulamentações em torno de toda a moda. A moda barata, a moda cara, todo mundo tem que ter suas regras. O governo terá que desempenhar um grande papel nisso, não só as empresas privadas.

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