Precisamos falar sobre gordofobia médica

Relatos de atendimentos carregados de preconceito, violência e falta de acolhimento fazem parte do cenário que pessoas gordas enfrentam todos os dias na busca por cuidados básicos com a saúde.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Sentada de frente para a sua ginecologista, Rayane Souza estava ansiosa, querendo resolver logo um problema relativamente comum. Aos 24 anos, ela descobriu ter a síndrome dos ovários policísticos, distúrbio hormonal que atinge muitas mulheres e causa o aumento dos ovários, com pequenos cistos. Após ter feito um exame de imagem, decidiu procurar a médica em busca de tratamento. No entanto, o que a advogada escutou naquele dia, transformou-se em uma história de terror. “Ela disse que eu tinha um problema maior do que esse. Pediu para que eu me levantasse da cadeira e ficasse em frente a um espelho. A partir daí, vieram as humilhações: falou que eu não tinha nada de atrativo e negligenciava o meu corpo por ser gorda. Perguntou se eu tinha vida sexual ativa, e como neguei, porque mesmo namorando, era virgem, ela afirmou que eu ainda não havia tido relações sexuais por causa do meu corpo, já que pessoas gordas não se gostam ou se sentem bem assim. Ela me passou uma dieta, disse para emagrecer e, no final do ano, eu me daria de presente uma noite no motel com o meu namorado”, relembra Rayane, hoje com 30 anos.

Seu relato é um entre vários que a reportagem de ELLE ouviu e que caracteriza um lado ainda mais cruel da gordofobia: aquela praticada por médicos, dentro dos hospitais e consultórios. Locais onde deveria haver acolhimento e cuidado tornam-se um pesadelo para quem quer apenas um olhar humano e inclusivo sobre a própria saúde, mas não aguenta mais vivenciar situações constrangedoras e de violência. É o caso da artista gráfica gaúcha e estudante de Ciência do Patrimônio, Carolina Moraes, de 33 anos. Por três vezes, ela foi alvo de gordofobia médica, e evita ao máximo qualquer tipo de consulta. Sua pior experiência aconteceu há cinco anos, com um gastroenterologista. “Expliquei que sentia fortes dores no estômago e não conseguia comer, porque tudo me fazia mal e eu vomitava. Foi quando ele disse: ‘Eu não posso te ajudar se tu não se ajudar’, e emendou falando que o meu problema era estar gorda, além de duvidar quando eu disse que não estava comendo nada. Na minha ficha, estava escrito que eu era casada, e então ele perguntou se eu achava que o meu marido gostava de mim assim. Eu respondi que sim, e ele devolveu: ‘É claro que não, ele não gosta de ti desse jeito, gorda’. Foi quando me levantei, disse que ele era uma pessoa horrível e saí. Desci as escadas gritando até a recepção e comecei a chorar”, conta ela.

Lacunas na formação

A gordofobia, em qualquer esfera, é um estigma social que não escolhe idade, gênero ou raça, mas atinge de forma mais incisiva pessoas de classes sociais mais baixas, mulheres, negros e outras minorias. “Quem cursa medicina no Brasil? É uma elite, e ela não acessa as dissidências. A formação médica é heterocentrada, racista, homofóbica; tem um negro, um trans, entre, sei lá, 20 mil pessoas. E quem é gordo, ali dentro, começa a emagrecer, porque a pressão é grande. O Michel Foucault, crítico ferrenho da Medicina, diz que ela é um saber que domina tudo à nossa volta: o que a gente pensa, vê, veste. O poder da Medicina é hierárquico e está acima de tudo”, explica a filósofa, ativista e professora Malu Jimenez. Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), com pesquisas sobre gordofobia, ela ministra, desde 2019, o curso Introdução aos Estudos do Corpo Gordo em faculdades de Medicina, a convite das universidades. Segundo ela, há um interesse maior das novas gerações em entender o paciente em sua realidade, de forma mais individualizada, algo bem diferente do que é visto e aprendido em sala de aula. “Que tipo de pessoa estamos formando para cuidar da nossa saúde? Os médicos têm uma formação técnica e pouco humana, não discutem filosofia, sociologia, não falam das desigualdades e nem analisam seus privilégios. No meu curso, os alunos sinalizam que não estão satisfeitos. Cada vez mais chegam pessoas gordas nos hospitais, e eles dizem não saber o que fazer, como tratá-las. Há um interesse genuíno em aprender”.

E como nem mesmo os próprios médicos escapam do preconceito que muitas vezes reproduzem, da pressão e das imposições impostas pela profissão e pelo sistema, a terapia e atenção à saúde mental têm se tornado saídas frequentes. “Eu costumo dizer que o médico sentou em um carrinho que já estava andando. É difícil para ele sair de um lugar em que já dizem que se faz assim, em que há um protocolo. Por muitas vezes, eu achei que eles se sentiam sempre nesse lugar superior, mas quando comecei a atender mais médicos, eles mostraram suas vulnerabilidades e fragilidades, e eu acho isso incrível”, comenta a psicóloga e neurocientista Anaclaudia Zani Ramos.

A palavra deles

Médica generalista, Mariana Coelho, de 34 anos, formou-se pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2006 e, desde o início, entendeu que a prática não condizia com a teoria, principalmente no que se refere à obesidade, uma vez que até nos livros de anatomia há pouquíssima inclusão de corpos. “A obesidade foi classificada pela Medicina como uma doença, mas não define um corpo gordo, porque quando falamos de pessoas, existem inúmeros fatores envolvidos. Para eu dizer se alguém é saudável ou doente, não posso olhar só para os exames. Eles podem estar bons, mas há questões sociais, psíquicas, emocionais”, afirma ela. A médica pontua ainda que o IMC, Índice de Massa Corporal, parâmetro criado em 1832 e usado normalmente até hoje para definir se alguém é magro, está dentro do padrão ou é obeso, tornou-se uma medida obsoleta.

Mariana endossa o que diz a nova atualização, feita no ano passado, de um importante guia para o tratamento da obesidade, criado no Canadá. “Você não trata o paciente com foco na redução do peso, mas em outras medidas, como a saúde preventiva e a psicoterapia, por exemplo. Quando a Organização Mundial da Saúde enquadrou a obesidade como doença, há quase dez anos, o fez para uma proteção legal das pessoas, para que tivessem um tratamento multidisciplinar dentro do SUS e também dos planos de saúde. Mas, infelizmente, isso criou um estigma, porque a nossa Medicina atual foca na doença, e não na prevenção”.

Acostumado a lidar com pacientes que já sofreram muito preconceito, o cirurgião bariátrico Carlos Schiavon, de São Paulo, atende predominantemente mulheres, entre 20 e 40 anos, que já fizeram outros tratamentos para a perda de peso antes de optar pela cirurgia bariátrica. Ele admite que o estigma da gordofobia acontece, sim, entre os próprios médicos. “O preconceito está arraigado na população e os profissionais de saúde não fogem à regra. A maioria desconhece as causas que levam alguém a ganhar peso, porque a obesidade é uma doença extremamente complexa e de difícil tratamento. Adotar o conceito simplista, de que comer muito e fazer pouca atividade física causa o excesso de peso, é o caminho mais fácil, causando constrangimento. A primeira regra do acolhimento é não pré-julgar o paciente e sua doença”, fala o médico, formado pela Universidade de São Paulo (USP).

Quando um corpo magro passou a ser sinônimo de saúde?

A ideia de saúde atrelada à magreza nasce praticamente junto ao capitalismo e à Revolução Industrial, no século 19, quando os trabalhadores com corpo esguio e leve eram considerados mais ativos e produtivos. Logo, traziam mais resultados e lucro. “Esse conceito de corpo normativo vem da Europa, e algumas pesquisadoras acreditam que tem a ver com a colonialidade. Não é só sobre a chegada e a invasão de outros continentes, mas a construção de um pensamento hegemônico. O colonialismo sustenta o capitalismo, então, dentro desse sistema, esse poder visa o lucro, e os saberes médicos não estão separados disso. Tudo o que passa pelo corpo é também um produto, incluindo a saúde, e ela se torna um status”, explica Malu. Não à toa, nas redes sociais, todos querem mostrar que comem e se vestem bem, fazem exercícios, preocupam-se com o bem-estar e levam uma vida considerada saudável.

Professora do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na área da saúde da comunidade, a nutricionista Mirani Barros entende que, com as mudanças sociais trazidas pelo capitalismo, as revoluções que aconteceram na Europa e as democracias modernas e burguesas, a ciência e a razão assumiram total protagonismo e o poder de ditar o que é certo ou errado na vida das pessoas. “Não se trata de refletir como a Medicina entra na engrenagem da gordofobia, da rejeição e patologização dos corpos gordos, mas sobre entender que ela estrutura esses saberes hegemônicos desde a Era Moderna. Apesar disso, em momentos anteriores da história, esses corpos já eram associados à preguiça, gula e à ideia de mau e impuro. A Medicina, como ciência moderna, cria uma linguagem que absorve essa moralidade negativa”, explica ela.

Mais do que constrangimento, desumanização e a criação de uma barreira na relação com a própria saúde, a gordofobia médica também é uma ameaça real à vida. A especialista em marketing digital Patrícia de Almeida, de 47 anos, sofreu durante quase dois anos com um ciclo menstrual irregular e sangramentos intensos, que a impossibilitavam de levar uma vida normal. E a resposta dos médicos era sempre a mesma: estar gorda causava o problema. “Eu sou de Salvador e, na época, em 2016, me mudei para o Rio. Em todos os ginecologistas que fui, não me pediram um exame. Um deles me disse que era normal o que estava acontecendo, por eu estar acima do peso. Mas o pior foi o que ouvi de uma médica; como eu ainda tinha planos para engravidar, ela disse que eu deveria escolher entre comer ou ter filhos, e que eu não seria mãe por ser gorda. É um absurdo, uma crueldade enorme”, relata ela, que descobriu ter endometriose apenas quando voltou para a cidade natal, em 2018. “Com minha atual ginecologista, também fiz exames que detectaram alguns tumores na tireoide. Por sorte, eram benignos, mas isso pode ter descontrolado os meus hormônios, e tudo isso foi desconsiderado pelos outros médicos, que focaram apenas no meu corpo”.

As situações, que acontecem predominantemente com mulheres, denotam, além da gordofobia, toda a pressão estética, padrões de beleza inalcançáveis e, principalmente, o machismo a que estão submetidas. Até em casos como esses, o modo como homens gordos são abordados pelos médicos é diferente. “As coisas acontecem de forma muito sutil, quase invisível, mas estão ali. Quando a gente se dá conta, vê que passou por isso a vida toda”, relembra o professor Eduardo Rocha, de 29 anos. Ele sempre praticou esportes e, até 2015, era atleta de rúgbi. “Eu estava constantemente em contato com profissionais de saúde. Meu porte físico sempre foi o mesmo, nunca tive qualquer doença, mas muitos deles diziam que eu precisava estar em dia com meus exames. Já até me sugeriram fazer uma cirurgia bariátrica! Eu nunca deixei de ir ao médico, mas conheço muitas pessoas que não vão porque não querem passar por esse tipo de situação”.

Como se proteger e procurar ajuda

Diante de tantos abusos, é possível se proteger ou procurar algum tipo de reparação judicial ao sofrer gordofobia médica? Por ser advogada, Rayane, que deu seu depoimento no início desta reportagem, decidiu criar, de forma voluntária, o Instagram @gordanalei, com orientações básicas sobre como proceder ao enfrentar o problema. “É um projeto pioneiro no Brasil, que iniciou a discussão sobre gordofobia nos embates jurídicos, porque esse ainda é um termo desconhecido na lei. Porém conseguimos, por meio de analogias na legislação, tratar do assunto em diversas esferas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que você pode gravar consultas médicas mesmo sem consentimento e isso serve como prova”, diz. Para seguir com a denúncia, basta procurar um advogado que tentará encontrar um caminho para uma possível reparação de danos morais. Mas Rayane alerta: não é permitido revelar a identidade do médico nem compartilhar o áudio da gravação. “Existem também as denúncias no Conselho Regional ou Federal de Medicina, mas a gente sabe que eles são elitistas, corporativistas e protegem seus profissionais. De qualquer forma, o importante é denunciar e falar que sofreu gordofobia médica”.

Em uma espécie de corrente do bem, as psicólogas Gabi Menezes e Laís Sellmer, donas do perfil @saudesemgordofobia, criaram uma lista de profissionais da saúde do Brasil todo, não gordofóbicos, para que as pessoas gordas possam, sem medo, procurar um atendimento digno, como sempre deveria ser. “Recebemos relatos com péssimas experiências, desabafos, gente que vem atrás de apoio e ajuda. Nós acolhemos e mostramos um caminho melhor”, fala Gabi, que também é criadora de conteúdo digital. “Escrevo sobre moda, autoestima, saúde mental e o cotidiano de uma mulher gorda. Pode parecer mais do mesmo, mas hoje em dia, isso mostra que tudo é possível, num mundo que sempre apontou que pessoas gordas não podem ser ou fazer nada”.

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