Os desafios de viver com HIV na maternidade

Ser mãe e soropositiva não é o fim do mundo, é só o começo. Mas não significa que seja fácil, especialmente se você for uma mulher negra.


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Neste dezembro, mês que tradicionalmente marca uma grande mobilização nacional sobre a prevenção ao vírus HIV, Aids e outras IST (infecções sexualmente transmissíveis), a poeta e jornalista Marina Vergueiro escreve sobre os desafios de viver com HIV na maternidade quando os esforços de políticas públicas e iniciativas privadas não olham para as mulheres.

Viver com HIV já não é mais uma sentença de morte há quase duas décadas, pelo contrário, é sinônimo de vida. Afinal, o tratamento antirretroviral permite que as pessoas vivam sem o risco de transmitir o vírus causador da Aids, mesmo durante a gravidez ou no parto. Alguns países, como a pioneira Cuba, já zeraram a taxa de transmissão vertical, isso é, de mãe para filha(No entanto, a situação no Brasil ainda é precária, principalmente por causa do estigma e do preconceito que ainda circundam o vírus.

De acordo com o boletim epidemiológico de HIV/Aids 2020, nosso país registrou 134.328 gestantes vivendo com HIV de 2000 a junho de 2019. Nos últimos dez anos, houve um aumento de 21,7% dos casos e isso de deve, em grande parte, à testagem, ao diagnóstico no pré-natal e ao programa brasileiro de HIV/Aids do SUS. Internacionalmente reconhecido, o programa prioriza a prevenção da transmissão vertical do vírus, bem como o tratamento gratuito e universal a todas as pessoas vivendo com HIV. Na teoria.

Na prática, a realidade da falta de informação combinada com o preconceito, até entre médicos e enfermeiros, faz com que muitas mulheres sejam violentadas em seus direitos humanos mais básicos. “Sei de mães jovens que descobrem (o diagnóstico) na gestação e perdem a criança porque não tinha nenhum profissional de saúde que se achava apto para fazer o parto. Então, a mulher ficava horas esperando e, quando ia ver, a criança já tinha morrido”, conta Jeice Pizão, que vive há 30 anos com HIV, membro do MNCP – Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas.

Dois Brasis

O Brasil vive duas realidades completamente opostas em relação à epidemia de Aids, já que a tecnologia avançada da medicina permite que as pessoas vivam com o vírus de maneira saudável e intransmissível (apesar dos efeitos colaterais), mas as deficiências do sistema de saúde, a falta de educação afetiva e sexual e a estigmatização da doença, associando-a à promiscuidade, são barreiras ainda enfrentadas pela maioria das pessoas vivendo com HIV.

De acordo com dados do último boletim do Ministério da Saúde, dos 900 mil brasileiros com HIV, 766 mil foram diagnosticados, 594 mil fazem tratamento com antirretroviral e 554 mil não transmitem o vírus porque estão com a carga viral indetectável.

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Thais Renovatto é publicitária e mãe de duas crianças com sorologia negativa.Foto Acervo pessoal

“Existe uma série de preconceitos, não só da pessoa com ela mesma, mas da rede de saúde”, diz Thais Renovatto, publicitária e mãe de duas crianças com sorologia negativa.

“Para mim, hoje em dia, é muito tranquilo ser mãe vivendo com HIV, mas não é assim para todas as mulheres”, explica Thais Renovatto, publicitária e mãe de duas crianças com sorologia negativa. “Existe uma série de preconceitos, não só da pessoa com ela mesma, mas da rede de saúde. Existem médicos no interior do país mandando as mulheres ficarem atrás de uma linha amarela para atendê-las”, diz ela. “Eu recebo mensagens de muitas mulheres que escutam ‘você não pode ser mãe, desista disso!’. Ou o médico que diz que se a pessoa quiser ser mãe tem que fazer uma inseminação artificial. Ou seja, o próprio sistema de saúde não dá informação correta aos pacientes: a mulher que vive com HIV ou se relaciona com um parceiro que vive com HIV pode ser mãe e não é preciso inseminação artificial se ela ou o parceiro estiverem indetectáveis”, explica.

Amamentar ou não?

A amamentação também é um tema delicado entre mulheres vivendo com HIV, pois como não existem estudos clínicos com gestantes soropositivas, a recomendação médica é que a mãe não amamente. “Eu questionei muito as infectologistas sobre a amamentação. Se você está indetectável e não transmite o vírus sexualmente, como pode transmitir pelo leite? Isso não entrava na minha cabeça. Como podia ser indetectável para uma coisa e para outra não?”, conta a atriz e poeta Priscila Obaci. “A importância do aporte psicológico é evidente e minha psicóloga me falava que o fato de eu não amamentar não ia me fazer menos mãe: ‘você está alimentando ele, dando colo e abraçando””, lembra, afetuosamente.

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A atriz e poeta Priscila Obaci

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De acordo com o infectologista Dr. Ricardo Diaz, a taxa de transmissão no parto entre mulheres indetectáveis é zero. No entanto, adverte que existe a possibilidade de transmissão por amamentação. “A criança, como tem um sistema imune prematuro, na hora que ela deglute o leite, pode se infectar. Então, às vezes, o HIV não está no leite, mas está dentro da célula, no linfoma. O risco é mais baixo, mas ainda existe”.

“Quando eu não pude amamentar e fui orientada a fazer cesária, mesmo podendo fazer parto normal, fiquei frustrada. Eu tive muito leite, o bebê instintivamente ficava buscando meu peito, e eu fiquei muito frustrada por isso”, desabafa Thaís Renovatto.

Ainda assim, o ato de não amamentar é uma demonstração de amor e cuidado entre mães e bebês e são muitos os relatos de gestações saudáveis. “Conheci mulheres que são soropositivas por transmissão vertical e hoje estão gerando o primeiro, segundo, terceiro filho saudáveis”, lembra Priscila Obaci.

Coordenador de um estudo da Unifesp apresentado na última conferência internacional Aids 2020, que mostrou a remissão de um paciente que vive com HIV, Dr. Ricardo Diaz atenta para a importância da testagem durante toda a gestação, pelo menos três vezes. “Detectar o HIV em gestantes que previamente não sabiam é uma notícia impactante num momento supersensível”, aponta o médico.

Responsabilidade afetiva e sexual dos parceiros

“As mulheres deveriam ser orientadas de que existe o pré-natal do pai ou do parceiro sexual enquanto ela está gestante e que isso impediria que ela só soubesse na hora do parto que é soropositiva ou que contraiu uma sífilis ou HPV, que são ISTs muito perigosas para os bebês”, explica Priscila Obaci. Ela relembra que chorou na primeira consulta de pré-natal do seu filho na Casa Ângela, em São Paulo, porque entendeu que nunca tinha sido acolhida pelo sistema de saúde. “Eu só entendi que nunca tinha sido bem tratada quando eu fui bem tratada. Foi uma consulta de duas horas em que as profissionais me perguntaram como estava sendo a gestação, se eu planejei, como era o relacionamento com o pai do meu filho. Isso é você ser tratada com humanidade. Corpas pretas não são tratadas com humanidade”.

Em 2019, 61,7% de todos os óbitos por Aids foram de pessoas negras, especialmente mulheres negras que estão na base da vulnerabilidade social.

Como indica o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, em 2019, 61,7% de todos os óbitos por Aids foram de pessoas negras, especialmente, mulheres negras, que estão na base da vulnerabilidade social. “Como o corpo da mulher preta é visto? Um corpo público, associado à promiscuidade, um corpo sujo, um corpo que não merece cuidado e amor, além de forte o tempo inteiro. Isso vai nos aproximando cada vez mais de lugares de vulnerabilidade”, aponta a poeta Priscila Obaci. Por isso, é muito importante a naturalização da educação afetiva e sexual, do acesso e adesão ao tratamento, do esclarecimento de pré-conceitos e do combate à estigmatização.

Marina Vergueiro é poeta, jornalista e ativista dos direitos das mulheres e antigordofobia. Com poesias publicadas em diversas Antologias, lançou em 2020 Exposta, o primeiro livro autoral em que aborda questões que envolvem a saúde e a sexualidade. Vive com HIV/Aids desde 2012.

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