Jantar com estranhos: aplicativo ajuda adultos a fazer amizade

A plataforma Timeleft usa recursos de machine learning para criar grupos de pessoas dispostas a conhecer gente nova e enfrentar a epidemia de solidão. A reportagem da ELLE participou de um jantar com estranhos e conta como foi.


ilustração jantar com estranhos
Ilustração: Gustavo Balducci



Uma chuva fraca molhava as ruas de pedra de Lisboa, capital de Portugal, quando cheguei ao restaurante La Serra, de comida mediterrânea. Fui encaminhada para a minha mesa. Estava 10 minutos adiantada para o jantar daquela quarta-feira, mas já havia uma pessoa me esperando. Um rosto que eu nunca tinha visto na minha vida. E ele seria apenas uma das pessoas desconhecidas com as quais eu compartilharia uma refeição e alguns drinques naquela noite. Um jantar com estranhos.

Esses foram os momentos iniciais do meu jantar via Timeleft, uma plataforma que faz um “match” e reúne pessoas que nunca se viram na vida em encontros físicos. Disponível em Lisboa e Porto, em Portugal, e em Paris, na França, a dinâmica se tornou uma alternativa para fazer amizades na vida adulta – quando a falta de confiança e de tempo muda completamente o jogo social.

Na infância, basta meia-hora de pique-esconde para se fazer um novo amigo. Tendo mudado há quatro anos para Lisboa, sei como é difícil fazer amizades acima dos 30 anos. Principalmente quando somos autônomos e trabalhamos em casa. Não há nem mesmo o escritório ou o café para conhecer pessoas. 

Em um país novo, sem familiares por perto, eu reativei contatos de gente que não falava há anos, mas que sabia que morava em Lisboa, e me joguei no Instagram. Seguia o perfil e puxava papo com outros moradores da cidade que achava interessante. Um caminho que pode ser difícil e custoso para muita gente.

A epidemia de solidão

Em março deste ano, o cirurgião-geral estadunidense Vivek Murthy declarou que os Estados Unidos estão vivendo uma “epidemia de solidão e isolamento”. O relatório divulgado por Murthy, membro de um grupo de trabalho da administração do governo Biden para lidar com questões de saúde mental, aponta que, de 2003 a 2020, o isolamento social médio entre os cidadãos do país cresceu de 142 horas mensais para 166, o que representa um aumento de 24 horas, na média. 

Mas este não é um fenômeno restrito apenas aos EUA. A consultoria Ipsos entrevistou, em 2020, 15 mil pessoas de cinco países latino-americanos e percebeu que a tendência também está presente na região. Segundo a pesquisa, 36% dos entrevistados brasileiros disseram se sentir solitários, deixando o Brasil em primeiro lugar no ranking criado pela consultoria. Peru teve uma taxa de 32%, seguido por Chile, México e Argentina. 

O impacto da epidemia de solidão, entretanto, não é apenas sofrimento psicológico. De acordo com Vivek Murthy, a situação está associada a um risco aumentado de doenças cardiovasculares, demência, acidente vascular cerebral (AVC) e morte prematura. Há evidências de que a solidão pode gerar um prejuízo à saúde semelhante a fumar 15 cigarros por dia.  Muita coisa está em jogo. 

É para lidar com essa falta de conexão que o francês Maxime Barbier criou, há 3 anos, a Timeleft. “As pessoas estão cada vez mais desconectadas umas das outras. Passamos nossos dias alternando entre o celular e o computador. Perdemos o senso de comunidade nas grandes cidades, mas não perdemos nossa necessidade vital de conexão humana”, diz o CEO e fundador da empresa em entrevista por e-mail. 

Inicialmente, a Timeleft era um serviço para reunir “pessoas com sonhos em comum e criar experiências em grandes cidades”. Porém, em abril, a empresa mudou o plano de negócios e criou uma nova dinâmica. “Depois de uma longa semana de brainstorm, tivemos a ideia do conceito do jantar com estranhos, em que você não escolhe a companhia, nem o restaurante ou a data”, conta Barbier. 

Um jogo de jantar

“Qual seu posicionamento político?”. “Você se considera um fã de filmes autorais ou de Blockbusters?”. “Quão importante é a religião para você?”. “Você gosta de humor politicamente incorreto?”. Essas são apenas algumas das perguntas feitas em um formulário da Timeleft. O participante deve respondê-las assim que se inscreve na plataforma, além de dizer se está disposto a participar de jantares em inglês. Todas essas informações servem para que o sistema do aplicativo use recursos de machine learning e crie um grupo de pessoas compatíveis com você. 

O interessado deve pagar uma taxa de aproximadamente 13 euros (R$ 70) para ser incluído em um dos jantares com desconhecidos. A refeição, bem como as bebidas, não estão incluídas no valor – a plataforma sugere que cada um pague separadamente o que consumiu. Os encontros acontecem todas as quartas-feiras, às 20h. Sempre em um lugar diferente, com pessoas diversas. 

Depois de preencher o extenso formulário e confirmar minha presença, recebi a composição da minha mesa: 40% de brasileiros e 60% de portugueses. Também fiquei sabendo quais eram as áreas de trabalho dos participantes, assim como seus signos. Por mais que tivesse aquelas informações, era difícil não sentir um frio na barriga antes do jantar com estranhos. Será que ia ser muito constrangedor? 

A plataforma está presente em Lisboa desde maio deste ano. Segundo Barbier, a maior parte dos usuários são cidadãos locais, principalmente em Lisboa e Paris. A idade média dos participantes é de 35 a 50 anos, sendo 60% deles mulheres, muitas delas cansadas dos aplicativos de relacionamento. “Elas consideram o conceito confiável e conveniente para conhecer pessoas novas de maneira mais segura”, diz o criador. 

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As motivações para participar dos jantares podem ser muitas. O gerente financeiro Fellipe Orlandi, 34, foi quem me recebeu no restaurante La Serra. Mais tarde, o técnico em marketing Tiago Carlos de Almeida, 35, também se juntou à mesa. Era a primeira vez de ambos na Timeleft e os dois procuravam uma forma de aumentar seus círculos pessoais. “É uma boa oportunidade para quem acabou de mudar de cidade, por exemplo. Ou para entrar em contato com pessoas que estão fora dos ambientes que frequentamos. Dá uma oxigenada na vida social”, diz Orlandi. Uma amiga dele, que participou de um jantar e gostou muito, foi quem indicou o serviço. 

Culturalmente falando, é comum que portugueses tenham o mesmo grupo de amigos desde o liceu, como eles chamam o ensino médio. Para fugir disso e ampliar a diversidade de pessoas conhecidas, Tiago decidiu se inscrever na plataforma, após ficar sabendo dela pelo Instagram. “Queria entrar em contato com pessoas com a mente aberta, que tenham experiências diferentes das minhas”, afirma. 

Infelizmente, imagino que por causa da chuva, duas pessoas de nossa mesa faltaram ao jantar. Porém, durante duas horas, a conversa fluiu bem: falamos de nossos trabalhos, das diferenças culturais entre brasileiros e portugueses (Fellipe também era do Brasil), contamos das viagens que fizemos e cidades em comum que visitamos. 

Caso a conversa não fluisse, no entanto, a própria Timeleft poderia oferecer algumas formas de iniciar papos. “Temos um jogo de mesa que permite aos participantes quebrar o gelo. Semanalmente, mudamos as perguntas e os jogos a serem jogados”, fala Maxime Barbier. A ideia é que cada encontro seja uma experiência única. “Alguns jantares podem se tornar muito profundos, levando as pessoas a mostrarem suas vulnerabilidades, enquanto outros são mais leves, com muitas risadas”, complementa. 

Por volta das 22h, no entanto, recebemos um convite para nos reunir a um “after” em dois rooftops diferentes de Lisboa. Decidimos ir até o que estava mais próximo do nosso restaurante e, lá, encontramos outros participantes da Timeleft, que estavam em jantares simultâneos ao nosso. 

“A motivação número 1 é simplesmente se divertir durante uma boa refeição com novas pessoas.” Maxime Barbier, CEO e fundador da Timeleft

Entre eles estava o gerente de SEO Lucas Alves, 29, que já era amigo de Fellipe. Solteiro há um mês, o rapaz estava ansioso para participar da experiência. “Ficava imaginando se ia conhecer alguém que curtisse muito”, desabafou. Não foi o caso – pelo menos naquela noite –, mas isso não estragou a noite de Lucas. “Foi muito legal mesmo assim. É uma chance até para fazer networking, já que, na nossa idade, o trabalho é também uma parte muito importante de nossas vidas”, afirma. 

“Todos têm suas próprias expectativas, seja simplesmente conhecer novas pessoas ou encontrar o amor. Mas, tendo eu mesmo participado de mais de 25 jantares e ouvido os participantes compartilharem seus sentimentos, a motivação número 1 é simplesmente se divertir durante uma boa refeição com novas pessoas”, diz Barbier. 

Neste mês, o fundador e CEO fala que o Timeleft deve reunir 6 mil participantes em pelo menos 1 mil jantares. A empresa também vai organizar jantares em Marselha, no sul da França, ainda em novembro, e deve chegar a Londres, na Inglaterra, no mês seguinte.

Há uma piada interna que diz que Lisboa, com pouco mais de 500 mil habitantes, é, na realidade, uma Lisbolha. Todo mundo conhece todo mundo. Descobrimos, nos drinques, que Lucas trabalhou com meu marido. Isso nos aproximou. 

À meia-noite, eu me despedi de Lucas e Fellipe com a promessa de voltarmos a nos falar. No dia seguinte, eles iriam a um bar de vinhos que eu recomendei, com algumas pessoas que conheceram naquela noite. Já na sexta-feira, seria a vez de eu e meu marido nos juntarmos a Fellipe e seus amigos para tomar uns drinques. Não sei se irei a um outro jantar com estranhos da Timeleft, mas parece que, no fim das contas, a experiência foi um sucesso.

Natália Eiras é jornalista nascida na periferia de São Paulo e mora há 4 anos em Lisboa, em Portugal. Escreve sobre estilo de vida, violência de gênero e se dedica a contar as histórias de quem encontra por aí.

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