Apps de ménage e troca de casais fazem sucesso durante a pandemia

Casais veem chance segura de apimentar a relação sem risco de Covid; para especialistas, a relação entre sexo e tecnologia veio para ficar.


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Ilustração: Mariana Baptista



Ménage, swing, troca de casais… Para algumas pessoas, nada além de uma fantasia erótica distante da realidade. Para outras tantas, porém, um hábito tão frequente quanto uma cervejinha no boteco ou um vinho no fim de semana. Com a pandemia, é claro, esse tipo de diversão também ficou comprometido. Assim como a internet foi a solução para amenizar a falta dos encontros entre amigos e dos shows, quando bate a saudade da cama cheia de gente, é a ela que também vem recorrendo a turma do sexo a três, da troca de casais, da orgia e outras aventuras, digamos, mais liberais.

Prova disso são os aplicativos dedicados a conectar casais e solteiros para ménages. A dinâmica, em geral, é semelhante a de apps como o Tinder, em que cria-se um perfil com foto, descrevendo gostos pessoais ou do casal. Curtidas recíprocas abrem a possibilidade de iniciar uma conversa e trocar fotos para aí partir ou não para um encontro presencial.

Lançado em 2018, o Ysos viu um crescimento de 101,25% nas assinaturas entre março e setembro do ano passado em relação ao mesmo período em 2019. E espera crescer ainda mais. “Hoje temos mais de 600 mil perfis e nossa projeção é de um aumento de 153,40% de cadastros de casais em relação ao ano passado. Este ano já superamos em quase 20% o total de fotos (que são trocadas pelos usuários dentro da plataforma) que havíamos recebido em 2020″, diz Gustavo Ferreira Bento, head de marketing da empresa.

Criado em Londres, em 2014, o Feeld tem dinâmica semelhante ao do concorrente brasileiro. Ana Kirova, CEO da empresa, conta que, no início das restrições de circulação, houve um aumento ligeiro no número de casais que se juntaram ao app, mas outros dados vêm chamando a atenção. “Desde janeiro de 2020, sexo a três se tornou o desejo mais popular entre os casais (no app) globalmente. Muitas coisas mudaram desde então. Em alguns momentos, tivemos um aumento de 120% nas mensagens enviadas. À medida que o desejo inicial de conectividade começou a desaparecer, foi substituído por uma busca por significado. As pessoas estavam sinalizando interesse em construir intimidade com outras, mas não necessariamente no sentido tradicional.”

Palavras como “sensual”, “toque” e “significativo” começaram a aparecer com mais frequência. “Para muitos casais, essa foi uma época muito decisiva. Também vimos um aumento de quase 500% no uso de termos como ‘não-monogamia ética’ e ‘poliamor’. E o que pode surpreender: percebemos que 240% mais mulheres mencionaram querer encontros sem o parceiro em relação ao ano anterior”, revela a CEO do app europeu.

“À medida que o desejo inicial de conectividade começou a desaparecer, foi substituído por uma busca por significado. As pessoas estavam sinalizando interesse em construir intimidade com outras, mas não necessariamente no sentido tradicional.” Ana Kirova, CEO do app Feeld

Para Justin J. Lehmiller, conselheiro científico do Feeld, psicólogo e pesquisador do Instituto Kinsey, nos Estado Unidos, as pessoas se tornaram sexualmente mais aventureiras durante a pandemia. “Em uma recente pesquisa nacional nos EUA, conduzida pelo Instituto Kinsey e pela loja Lovehoney, descobrimos que 52% dos americanos disseram que tentaram pelo menos uma coisa nova no quarto durante a pandemia e, além disso, 40% dos americanos dizem que planejam experimentar no futuro. De certa forma, essa pandemia parece estar desencadeando uma nova revolução sexual.”

De acordo com o psicólogo, a pesquisa estadunidense mostrou que aumentou o interesse no sexo a três. “Descobrimos que 23% dos americanos disseram que estão mais interessados em fazer um trio agora do que antes da pandemia. Suspeito que isso seja parte do motivo pelo qual aplicativos como o Feeld estão tendo um aumento no número de usuários.”

Em uma pesquisa do Instituto Kinsey, nos EUA, 52% dos entrevistados disseram que tentaram pelo menos uma coisa nova no quarto durante a pandemia.

Gustavo Ferreira Bento, do Ysos, também aponta o interesse crescente: “Inúmeras pessoas, desde o início da pandemia, nos procuram nas redes sociais solicitando dicas de como iniciar a conversa sobre o tema”, conta.

E os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes ao afirmar que a tecnologia tem mesmo papel determinante na nova ordem mundial do sexo. Mais do que isso, ela veio para ficar no pós-pandemia. Autora do livro Sexo no cotidiano, que trata, entre outros temas, da relação entre atividade sexual e pandemia, a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas, afirma que se tornaram mais frequentes neste período a procura por sexo virtual de maneira geral e pornografia. “Em todas as idades, não só entre os homens, mas também com as mulheres. Apresentou-se um quadro novo que a gente sabe que veio para ficar. O uso dessas possibilidades, dessas alternativas, tornou-se tão cotidiano que não será mais algo eventual. Ele se incorporou na vida sexual das pessoas e englobou as que jamais tinham entrado em contato com essa forma de uso da atividade sexual”, avalia.

“A tecnologia hoje acaba conseguindo aproximar os desejos quando os corpos não podem estar presentes no mesmo espaço, tanto que a procura por vibradores que funcionam via aplicativo (que podem ser controlados a longas distâncias) foi bem maior durante esse período. Tanto os aplicativos quanto um comportamento geral nas redes sociais sobre sexualidade positiva estão abrindo muitos caminhos para que as pessoas possam compreender as próprias fantasias e dividi-las com outras pessoas que passam pelo mesmo processo e que, até então, achavam que estavam sozinhas”, diz Clariana Leal, educadora sexual e colunista de ELLE.

A primeira vez

E foi via aplicativo que Fernanda*, 37 anos, e Carlos*, 42, juntos há 21 anos, sentiram-se seguros para abrir o relacionamento pela primeira vez. Começaram há três meses, conta ela, movidos pela curiosidade. “Nossa primeira experiência foi troca de casais, adoramos. E depois um ménage.” Uma das maiores vantagens de começar a conversa virtualmente, ela avalia, é reduzir as chances de acabar em um encontro ruim.

“Tanto os aplicativos quanto um comportamento geral nas redes sociais sobre sexualidade positiva estão abrindo muitos caminhos para que as pessoas possam compreender as próprias fantasias e dividi-las com outras pessoas.” Clariana Leal, educadora sexual e colunista de ELLE.

Gabriel*, 26 anos, que usa um app com o parceiro há cerca de quatro meses, concorda. “Ainda não tivemos um encontro, mas conhecemos pessoas de diversos lugares do país, e já estamos encaminhados para conhecer casais e solteiros. Você consegue ver pessoas de perto, de longe, fotos, saber idade, preferência sexual e começar um contato para quebrar esse primeiro gelo que sempre acontece quando tem o primeiro encontro. Além de saber que são pessoas bacanas e não estamos indo ao encontro de alguma furada.”

Quem não tem parceira ou parceiro, mas gosta de sexo a três, também é bem-vindo nos apps. É o caso de Felipe*, 33 anos, que acessa esse tipo de ferramenta já há dois anos. Com a chegada da pandemia, diz, as conversas virtuais ficaram mais longas. “O sexo virtual no meu caso aumentou, mas (as conversas também servem) para criar mais afinidade e confiança. Saber como as pessoas estão se cuidando é necessário para encontros físicos acontecerem”, afirma. E quando a pandemia acabar? “Vou continuar usando para o sexo virtual, mas o app vai ser mais uma ferramenta para encontros reais. O virtual jamais irá proporcionar o mesmo prazer e a diversão que o presencial proporciona, mas ajuda no tesão, a aumentar a vontade.”

Laila*, 29 anos, e Leo*, 31, começaram há quatro anos o relacionamento, já de maneira aberta. A primeira vez em apps de ménage foi em 2018, mas engataram mesmo agora, durante a pandemia. “Naquela época, achei meio bobo, não gostei da abordagem. Mas, com a pandemia, essa falta de sair, de socializar, de encontrar pessoas, de fazer de forma mais natural o que os aplicativos oferecem, comecei a abrir de novo a cabeça para eles. Acho que a gente voltou por uma necessidade de uma paquera, para fantasiar com outras pessoas. O mais interessante é trocar as fotos, ver se as pessoas nos atraem fisicamente. A gente fica trocando umas ‘safadezinhas’ por mensagem, fala o que um gosta, o que o outro gosta, como poderia ser um encontro”, conta. Observar as descrições nos perfis também é importante para alinhar expectativas. “Tem umas pessoas que falam que estão interessadas em bagunça de cara, outras dizem que são novas no ramo e estão curiosas, querem tomar uma cerveja e ver o que rola”, conta Laila.

Por enquanto, por causa da pandemia, o casal não se sente seguro para encontros presenciais, mas já faz planos. “Conhecemos uns casais bem interessantes. Quando isso tudo acabar e a gente não tiver mais medo, eu tô realmente a fim de marcar algo e ver no que vai dar.” Sempre sem compromisso ou garantia de que vai acabar em sexo. “A gente realmente quer conhecer, sacar a energia. E se perceber pelas ideias que não rolou, ir embora sem crise nenhuma. Agora, se a conversa for boa e a coisa for acontecendo, de rolar uma troca de casais, um voyeurismo, vai ser ótimo.”

Sexo (virtual) seguro

Para se cadastrar, é essencial prestar atenção às regras de uso e privacidade de cada aplicativo. Há orientações no sentido de não mostrar fotos do rosto, não usar nomes reais, proibir prints de tela e outras medidas. Carmita Abdo lembra ainda dos riscos relacionados à saúde. “Quem tem predisposição à compulsão pode se tornar refém da atividade sexual (virtual), independentemente de qual seja ela. Isso não é genérico, não dá para dizer que todas as pessoas se tornam (compulsivos). Quem já tem essa predisposição, porém, está vivendo um momento muito facilitador. E nós já recebemos, sim, o resultado disso em consultório.” Mas como identificar quando a diversão deixou de ser saudável? Para Carmita, o caso passa a ser motivo de preocupação quando a busca por sexo faz com que a vida da pessoa deixe de transcorrer como antes. “O sexo, a busca por ele, a preocupação com ele, seja qual for a alternativa que você esteja escolhendo, passa a ser o pensamento prevalente, ela abre mão de qualquer coisa para a atividade sexual de fato ou para algo que se relacione com ela.”

E, antes de partir para o mundo do “match” a três ou a quatro, cada casal precisa ter uma conversa sincera sobre as expectativas e os limites de cada um. “Tudo isso é muito bom quando ambos estão no mesmo momento, com a mesma necessidade. É muito complexo quando um do casal quer abrir o relacionamento e o outro não quer. Às vezes, um não consegue dizer que não quer e faz para não ser inconveniente, mas sofre muito. Eu já tive relatos em consultório de mulheres se sentindo extremamente humilhadas por essa situação. Tudo no sexo é assim: havendo consenso, ótimo. A dois, a três, sozinho, você com você – porque, às vezes, você faz sozinho, mas cheio de culpa, de dúvidas, e isso faz sofrer. Quando isso acontece, nós não estamos num sexo saudável”, avalia Carmita Abdo. Quando há discordâncias, cada casal precisa achar seu ponto de equilíbrio. “Às vezes, vai um e o outro não. Tem que conversar. São escolhas que cada casal terá que fazer de acordo com a sua individualidade.”

“Às vezes, um não consegue dizer que não quer e faz para não ser inconveniente, mas sofre muito. Tudo no sexo é assim: havendo consenso, ótimo.” Carmita Abdo, psiquiatra

Gabriel* conta que já aconteceu de sair sem o parceiro. O importante, para não haver quebra de confiança, é que tudo seja dividido. “Além de tudo, somos amigos, então, sempre mostramos tudo um para o outro.” Fernanda* e Carlos* têm um perfil juntos, em que um vê com quem o outro está interagindo, mas o mais importante é o combinado que fizeram: “Os dois podem trocar mensagens com outras pessoas, mas para sair é sempre juntos.” Laila* e Leo* têm perfis individuais, mas os limites estão claros: não fazer nada escondido um do outro. “Quando eu recebo uma mensagem, eu o aviso, e ele faz o mesmo. A gente dá match nos casais juntos”, conta ela. Conversar é importante, mas na hora H, tudo pode mudar. “Eu posso achar que não vou ter ciúme e chega na hora a pessoa, de alguma forma, despertar uma insegurança em mim. A conversa que a gente tem em caso de encontros presenciais é no sentido de sempre ter muito respeito, prestar atenção ao outro. É importante combinar alguns sinais para um perceber se o outro estiver com qualquer tipo de desconforto e tentar ajustar. Se der, beleza, se não der, interrompe o date e vamos conversar melhor sobre isso.”

*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados

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