Peles negras, mãos negras

Pessoas negras – tatuadas e que tatuam – revelam suas experiências com a prática ancestral de marcar o corpo.


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Foto: Seyi Ariyo



“Raramente vejo peles negras tatuadas, é como se não existissemos”, compartilha a paranaense Dayhara Martins. Estudante de letras, ela encontrou nas tatuagens uma forma de eternizar seu gosto pela literatura. Sua primeira foi aos 18 anos, mas por muito tempo ela ficou longe das coloridas: “na época o tatuador sugeriu que não fizesse porque pele negra tinha tendência a desbotar e ele não faria o retoque”, conta.

O caso de Dayhara, infelizmente, não é exceção. São diversos os depoimentos de pessoas negras sobre como o racismo marca as práticas da tatuagem no Brasil – país que concentra um mercado em ascensão que cresceu 24% de 2016 para 2017, segundo o SEBRAE. O apontamento de que os feeds de tatuadores, tatuadoras, convenções e estúdios só publicam as artes realizadas em pessoas brancas é comum nas redes sociais. Uma busca no banco de imagens do Google e Pinterest, por exemplo, revela nitidamente qual é o tom de pele predominante nas fotos de tatuagem.

Um defeito de cor?

“Muitas vezes se colocava a culpa na pele”, diz o artista interdisciplinar Flip Couto, residente em São Paulo capital. Sua primeira tatuagem foi há 20 anos, em seu aniversário de 18, e manifestava o desejo de marcar o corpo com uma história. De lá para cá, ele viu bastante coisa mudar neste cenário, mas não sem sofrer violações. “Lembro de escutar vários comentários racistas, de que não era para pele negra, que ia sumir… Um tatuador falou que o sul [do Brasil] era o paraíso, porque só tem gente branca. Essa exclusão de que pessoas negras não poderiam se tatuar sempre foi racista e abertamente racista.”

Para o artista, isso acontece pela hegemonia e desinteresse em pesquisar e exercitar técnicas diferentes do convencional – que acaba sendo, normalmente, branco. “Quem são os professores que estão à frente dos grandes estúdios, das grandes convenções, viajando o mundo? Qual é a valorização dos artistas negros e periféricos em todo o Brasil?”, questiona Flip. A pergunta se complementa com a de Dayhara: “Nós, pessoas negras, consumimos todo o tipo de arte, o tempo todo, inclusive tatuagens, porque esse nicho não nos vê?”

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Flip Couto posa com suas tatuagens.Foto: acervo pessoal.

Jessi Barros, que tem um estúdio na Asa Sul do Distrito Federal, acredita que a invisibilidade já começa no ensino da prática. “A educação na tatuagem é feita de mestre para aprendiz. Já vejo um desfalque por falta de profissionais que tatuam pele negra e a gente tem a carência de informações sobre isso.” Artista visual de formação, ela começou a se tatuar com a mesma idade que Dayhara e Flip e enfrentou os mesmos comentários racistas. Contudo, isso foi um combustível para assumir a arte como profissão. Seu objetivo é que menos pessoas negras passem pelo mesmo. “Me coloco como especialista em pele negra, mas eu tatuo e eu estudo todas as peles, sendo que maioria das pessoas só estuda uma: a clara, claríssima”, diz.

Hoje, aos 25, ela integra uma coletiva de tatuadoras negras chamada “Pretosas“, composta por mulheres de várias cidades do país e focada na troca de informações sobre técnicas, culturas e histórias. No fim, é quase como um ponto de apoio para elas.

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Evento do Pretosas que reuniu tatuadoras e outras artistas negras em 2019.Foto: Simone Bispo.

A invisibilidade é, de fato, uma questão reveladora, já que 56% do Brasil é preto ou pardo. Infelizmente, isso não é novidade só na prática de tatuagens: a população negra brasileira é a minoria em campanhas publicitárias e em cargos de liderança, mas é a maioria com os salários mais baixos e sem acesso à educação e saúde de qualidade. É um sistema de exclusão que o filósofo e advogado Silvio Almeida explica em seu livro Racismo Estrutural: “O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. […] Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é a regra e não a exceção.”

Por isso, o debate não é sobre um estúdio ou profissional em particular, mas, sim, sobre compreender como raça, racismo e branquitude ainda dinamizam tudo – das relações mais simples às mais complexas. Nessa grande estrutura, nem as práticas atuais de tatuagens estão isentas.

Tatuagem não é novidade

A prática de marcar o corpo é tão antiga quanto a própria humanidade. O registro mais antigo é conhecido como Homem de Gelo, múmia do período neolítico, tem mais de 5.300 anos e foi encontrado em 1991, na Itália, com várias espécies de tatuagens pelo corpo.

Diversas referências bibliográficas creditam as práticas embrionárias de tatuar ao Egito antigo. Conforme a pesquisadora Japhette Ozias o dado é bastante plausível, “pois [eles são] o povo africano que mais deixou registros escritos e pirograficos de suas ações”. Ela afirma, porém, que não é possível datar exatamente quando começaram, pois “os povos africanos se contentavam em viver o momento presente e confiavam na aptidão dos descendentes de perdurar as tradições, afinal as marcas corporais na África são meios de comunicação tanto com os deuses, os ancestrais e os conterrâneos”, explica.

Japhette mora no Brasil há 9 anos, mas nasceu na República de Benim e estuda a África subsaariana. Segundo ela, nessa região “os povos praticam a escarificação [incisões na pele] como um meio de identificação e de afirmação de identidade dentro da sociedade. De outro lado, ela vem como um ritual de conexão com ancestrais e de cumprimento das tradições religiosas instituídas pelos antepassados.”

A difusão da tatuagem na Europa e Américas pode ter começado com a corrida imperial e grandes colonizações, mas o ato de pintar e marcar o corpo sempre existiu, também, para os povos originários de nosso território. “Existe um senso comum de que a tatuagem é uma coisa branca que deve ser adaptada à pele negra, mas, na verdade, a arte está presente em diversos povos de diversos lugares. Na América do Sul, vários povos indígenas tinham a prática de pigmentar a pele com tintas artesanais”, diz Jessi.

Décadas depois, noutro milênio, as tatuagens ganharam caráter diferente – mais ligado à auto expressão e arte – e começaram a ocupar regiões mais descentralizadas. “Nessa época [anos 2000], não tinha muita diversidade [nos espaços]. Quase nenhuma mulher, nenhuma bicha, nenhuma pessoa negra”, comenta Flip, que passou boa parte de sua juventude frequentando estúdios e convenções da cena underground de São Paulo. Duas décadas depois, ele vê um avanço no acesso às tatuagens – tanto para o tatuado como para o tatuador. “A grande virada foi a democratização, quando a periferia criou suas próprias estéticas e começou a se tatuar.”

Afinal, tem diferença?

Diferença, obviamente, tem. Mas ela não deve ser um impeditivo ou sinônimo de racismo. “A pele negra não se comporta da mesma forma que a pele branca. Se a pele branca sempre for a única referência na hora de tatuar, não dá certo”, explica Jessi. Pessoas pretas e pardas apresentam um teor maior de melanina e colágeno do que pessoas de pele clara. Mesmo isso sendo bastante variável, é possível dizer que essas diferenças dermatológicas implicam em traçar diferentes abordagens na hora de realizar a tatuagem.

“Pigmentar a pele negra é um processo mais trabalhoso, porque, diferentemente das peles mais claras e pálidas, a melanina nas células da derme age como um filtro, escondendo alguns pigmentos mais claros que o tom da pele”, comenta a dermatologista referência em pele negra Katleen Conceição. A médica também explica que a pele fica mais suscetível a formar quelóides (cicatrizes em relevo), então é necessária certa sensibilidade e atenção na hora de tatuar. Sobre este ponto, Jessi pontua que o imaginário da pessoa negra como alguém super-resistente ainda pauta alguns tatuadores – o que pode levar a machucados e cicatrizes com mais frequência.

Para Kalibre de Souza, tatuadora brasiliense, “o ideal é estudar as especificidades da pele”. Em 2017, ela criou, junto de seu mestre no ofício, Wellington da Silva, um estúdio itinerante focado em tatuagem para pele negra chamado Diáspora Tattoo. Ela compartilha que na pele preta clara consegue trabalhar mais traços finos; já numa retinta, é preciso usar traços grossos e espaçados. “A melanina é poderosa, se eu faço um traço fino numa pele retinta, ela vai engolir aquele traço. É tudo uma questão de estudo”, afirma. Como são várias as tonalidades de pele negra no Brasil, “cada [uma] exige uma técnica e um processo. É mais o entendimento entre a pele da pessoa e o tatuador”, finaliza ela.

Outro ponto a ser considerado são os cuidados no antes e depois do procedimento. Para o primeiro, Kalibre cita a hidratação como etapa fundamental para auxiliar na excelência da tatuagem. Já Katleen lista os cuidados básicos após a aplicação: evitar a exposição prolongada ao sol, hidratar bastante a região, não coçar ou retirar as casquinhas durante a cicatrização e utilizar filtro solar no local da tatuagem.

É preciso não tornar ausente o que existe

A pluralidade das pessoas negras não deveria ser um fator limitante. Frantz Fanon, importante intelectual negro, explica mais sobre essa dinâmica de limitações por conta do racismo em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas. Na obra, o psiquiatra apresenta o conceito de “epidermização da inferioridade” e aborda a questão do “problema negro” de forma psicanalítica, mas também poética e sociológica. Para ele, trata-se de romper com os estereótipos racistas e coloniais que delimitam quem ou o que pessoas negras podem ser ou fazer. O autor dialoga com saídas da opressão a partir da perspectiva de pessoas oprimidas e afirma a autonomia delas quanto a traçarem suas próprias histórias.

Muitas vezes esses condicionamentos e o imaginário de que ser negro é limitante funcionam como um impeditivo para pessoas negras – até na hora de fazer as tatuagens. “Por conta do racismo sofrido na primeira vez, passei a eliminar qualquer possibilidade de tatuagem colorida em minha pele, cheguei a fazer mas não achava bonito porque diziam que ‘destoava'”, compartilha Dayhara. Ela cita sua tatuadora atual, Geovania Specalski, como uma pessoa que a ajudou a subverter essa visão.

Para uma saída desse labirinto de inferioridade e impeditivos, Fanon propõe um caminho de negação do embranquecimento. Nos tempos atuais, esse caminho se cruza com a memória de que tatuagem não é só para pessoas brancas. É preciso abrir as portas para quem já existe e “fazer um movimento pela diversidade nas equipes”, diz Flip. “Para além disso – representatividade nos desenhos, na humanização do atendimento, no cuidado ao tratar nossa pele – somos consumidores e só precisamos de espaço”, complementa Dayhara.

O apontamento é semelhante ao de Jessi, que acredita que pessoas não-negras que têm estúdios devem se aproximar de pessoas negras para entender sua visão, e a de Kalibre, que enxerga seu trabalho como uma forma construtiva da luta antirracista. “Eu ocupando esse espaço abro as portas para outras pessoas pretas chegarem”, diz a última.

Para conhecer: veja abaixo 4 perfis de tatuadores e tatuadoras negras

Dimak, tatuador e ilustrador em Salvador (BA)

Luana Lobo, tatuadora especialista em pele negra (Curitiba/PR, São Paulo e Ourinhos/SP)

 

Estúdio Retinto, criador do projeto #pelepretatuada, Salvador (BA)

 

Aya Estúdio, tatuagem e ilustração, São Paulo (SP)

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