Transfobia é rotina em clínicas e hospitais

Falta de preparo e de empatia de médicos e outros profissionais da saúde gera constrangimentos e afasta pessoas trans dos atendimentos.


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Ilustração: Mariana Baptista



“Uma vez eu estava passando muito mal e precisei de medicação na veia, mas tenho veias muito finas e tenho que utilizar agulha infantil, não pode ser grossa. Enquanto o enfermeiro tentava colocar a agulha estava doendo muito, então, ele olhou para mim e disse ‘você aguenta, você é macho’. Eu já tinha uma aparência bem feminina, mas estava com o nome de registro. Ele tentava enfiar a agulha e eu sentia muita dor e tentava explicar que tinha que ser agulha infantil. Ele virou para mim e disse novamente ‘eu mando aqui e você é forte, você é macho, então, aguenta’. Eu fiquei sem palavras só querendo chorar e rezando para que aquilo acabasse”. Esse relato é da maquiadora Anneliz Saenz, mulher trans de 27 anos, que vive em Belém (PA). Mas poderia ser de milhões de outras pessoas trans de todo o Brasil que diariamente convivem com violências, desrespeito e transfobia.

A reportagem da ELLE ouviu diversos relatos de pessoas trans que foram vítimas de transfobia em um ambiente que deveria ser acolhedor e humanizado: os hospitais e consultórios médicos. Pessoas trans diariamente têm seus direitos negados e são jogadas às margens da sociedade, sem direito a uma vida digna. A exclusão, que começa ainda durante a infância e a adolescência dentro de casa, se desdobra em falta de oportunidades na vida adulta, sem sequer ter o seu pronome respeitado. Quando a violência acontece dentro de locais pensados para tratar da saúde da população, ela faz com que essas pessoas evitem ao máximo qualquer tipo de consulta ou atendimento médico.

“Eles costumam ser extremamente grosseiros e não são preparados. Gritam seu nome de registro e sempre ficam com uma risadinha de deboche que deixa a gente sem reação. Mesmo que, em casos de sorte, o atendente ou recepcionista tenha o mínimo de empatia, quando chega até médicos e enfermeiros é comum ficarem cochichando e dizendo ‘nossa é um homem’. Às vezes você está precisando de ajuda e ninguém se importa em fazer o mínimo, que é respeitar seu pronome”, diz Anneliz. “A última vez que me consultei foi há dois anos, para fazer um exame. Já sofri transfobia em vários momentos e, hoje em dia, eu só vou ao médico se for uma questão de vida ou morte. As pessoas não são preparadas para atender a população trans, então, sempre tenho muito medo de ir para algum hospital”, relata.

Esse afastamento e distanciamento de atendimentos médicos pode ter consequências para qualquer pessoa, seja cisgênero ou transgênero, mas a endocrinologista Aline Thebit Bortolon ressalta que o risco pode ser ainda maior para a população trans: “Principalmente no caso da hormonização, o automedicamento pode ser muito perigoso. É importante fazer uma investigação prévia para saber se há o risco de desenvolvimento de algum problema mais sério. Existem alguns efeitos colaterais mais leves e perceptíveis, como dores de cabeça e um inchaço doloroso nas mamas (para mulheres trans e travestis), mas também há extremos mais graves como a trombose e até algum nódulo que não foi identificado previamente e poder ser maligno e se desenvolver rapidamente. Também é importante fazer avaliações dos órgãos genitais, porque os receptores de hormônios podem agravar a situação de algum nódulo. A hormonização sem acompanhamento traz riscos cardiovasculares, de pressão e também piora o colesterol”.

O ginecologista obstetra Emmanuel Nasser, do ambulatório trans da UBS Santa Cecília, em São Paulo, também alerta para os riscos de hormônios adquiridos no mercado paralelo, sobretudo para homens trans. “Temos que entender também onde essas pessoas (que se afastam do atendimento médico) acessam esses hormônios e se eles são regulados pela Anvisa ou não. No mercado paralelo, a testosterona é muito utilizada como anabolizante e, dependendo da dosagem e do tipo, pode ter uma sobrecarga no coração e causar hipertrofia. Sempre digo para meus pacientes que acessam esse tipo de hormônio que ele é utilizado para fins estéticos, e na estética não há tanto risco, porque é utilizado por um intervalo curto. Na afirmação de gênero, no entanto, é para a vida toda, então, precisa usar os melhores hormônios para não haver riscos”.

“Deita na maca para eu ver se tem útero”

O músico Lourenzo Gabriel Duvale Lima, conhecido como Aqualien, é um homem trans de 23 anos que deu à luz o pequeno Apolo no último dia 9 de dezembro. Apolo é fruto de um relacionamento com a também artista musical Isis Broken, que é uma travesti. Aqualien relatou à ELLE que desde o pré-natal foi vítima de inúmeros episódios de transfobia durante os atendimentos, mas um dos que mais lhe doeu foi contra sua esposa.

“Quando fui realizar o meu segundo ultrassom no Hospital Universitário foi o pior episódio. Não deixaram a Isis entrar na sala comigo e falavam que não sabiam se eu era homem ou mulher. ‘É ele ou é ela, o nome está errado aqui’, diziam. Depois mandaram a Isis deitar na maca e falaram ‘já que você é mulher mesmo deixa eu ver a vagina, deixa eu ver se você tem útero'”, relata.

Esse foi apenas um dos diversos episódios de transfobia que acompanharam Lourenzo durante toda a sua gestação. Ele, que se diz traumatizado e que em determinado momento sequer queria fazer o pré-natal, conta que em nenhum momento teve seu pronome ou identidade de gênero respeitados. “Logo na recepção, quando eu chegava, mesmo com nome e gênero retificados no SUS, já começava a transfobia. Quando eu dizia que estava gestante, eles alegavam que não podia esse tipo de consulta para homem, então, já me tratavam no feminino. Também fizeram uma nova carteirinha para mim, com o nome de registro e gênero feminino para que eu tivesse direito ao atendimento de ginecologia. Mesmo eu corrigindo, os médicos e enfermeiros me tratavam como mãe e com pronomes femininos o tempo todo”.

Além do trauma durante a gestação, ele também foi vítima de transfobia quando tentou se vacinar contra a covid-19. “Em pleno Dia do Orgulho LGBT (28 de junho), no ano passado, era a data em que iriam vacinar pessoas gestantes, mas a recepcionista da unidade de saúde não aceitou ver um homem gestante e começou fazer um auê enquanto falava ‘eu não sei se é homem ou se é mulher essa coisa’.”

Transfobia estrutural

A falta de atendimento adequado às pessoas trans é algo constatado também pelos próprios médicos. “Quando cheguei no Hospital das Clínicas, vi que o atendimento era muito falho e enxerguei a necessidade de mais profissionais que soubessem lidar com essa população”, conta a endocrinologista Aline Bortolon. “Era algo que eu precisava contribuir e me doar porque fazia muita falta. Muitos pacientes me contaram experiências terríveis e faltava muito acolhimento, então era um papel que eu precisava desempenhar.”

Para o ginecologista Emmanuel Nasser, a questão vai além da transfobia médica: ela é estrutural. “As pessoas se afastam dos atendimentos porque já sofrem transfobia na rua, do vizinho, do cobrador e do motorista do ônibus e do próprio recepcionista do centro de saúde. Então, esse processo de afastamento de pessoas trans e travestis do sistema de saúde vai muito além do profissional da saúde, mas é causado por toda uma rede transfóbica estrutural que impede que esse paciente chegue até mim. Um relato muito comum é de pessoas que já tentaram passar por outros atendimentos para o processo de afirmação de gênero e escutaram que esses médicos não eram especialistas e não cuidavam disso. Mas não precisa ser especialista, você precisa saber cuidar de gente.”

Ainda sobre a transfobia estrutural que impera hoje no Brasil, ele cita sua própria especialização dentro da medicina como um exemplo. “Uma coisa que até hoje martela muito na minha cabeça é que fiz minha especialização em ginecologia obstetrícia e até hoje, nos cursos de medicina, isso é classificado como saúde da mulher. Nós precisamos quebrar esse paradigma e falar de pessoas com útero e com vagina, e não de mulher. A saúde dos órgãos pélvicos vai muito além do gênero.”

Medicina humanizada para quem?

Apenas no dia 1 de janeiro de 2022 a Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou a CID-11 em vigor, classificando a transgeneridade como uma condição relacionada à saúde sexual. Anteriormente, na antiga classificação, a questão da transgeneridade era tratada pela medicina como um transtorno mental, ou seja, uma doença.

Apesar de enxergar uma mudança de paradigma e avanço na humanização nos últimos dez anos, Nasser avalia que a medicina e sua formação ainda são muito focadas em pessoas brancas, heterossexuais e cisgêneras. E questiona para quem, afinal, é direcionada essa humanização. “Ainda percebo uma necessidade mercadológica para que sejamos muito mais técnicos por conta da judicialização da medicina. Às vezes preferem o ‘correto’ do ponto de vista do livro do que daquele ser humano que está na sua frente. Consigo enxergar na obstetrícia uma mudança sutil de processos mais humanizados, mas não consigo enxergar isso para a população trans. Humanizamos apenas aquilo que convém para a sociedade, que é a pessoa branca, cis e hétero. Pessoas que ocupam às margens da sociedade não são enxergadas e, por isso, não precisam ser humanizadas”.

Aline concorda com o colega e destaca que a condição da transgeneridade acaba não sendo muito abordada dentro dos cursos de medicina. “Mesmo que determinado médico não vá se especializar ou fazer parte do tratamento de um paciente trans ele tem que saber, não é apenas quem é da área. Isso tem que ser mais falado e estar dentro das faculdades. Falta um acolhimento para a pessoa que está em fase de transição e já vem abalada psicologicamente. São pequenas coisas, mas que podem fazer muita diferença para uma pessoa trans durante o atendimento.”

O “processo transexualizador” no SUS

A reportagem da ELLE entrou em contato com o Ministério da Saúde solicitando informações sobre o chamado “processo transexualizador”, que é ofertado pelo SUS. O processo, que inclui acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, vem sendo realizado desde o ano de 2014 e é exclusivo para pessoas com 18 anos ou mais. Em relação aos procedimentos cirúrgicos, onde a idade mínima é de 21 anos, a pasta esclarece que, após a cirurgia, deve ser realizado um ano de acompanhamento pós-cirúrgico. Depois disso, os cuidados devem ser prestados pelos serviços da rede de saúde, conforme a necessidade do usuário.

Os procedimentos cirúrgicos realizados no SUS para pessoas com idade mínima de 21 anos são: tireoplastia, cirurgias complementares de redesignação sexual, histerectomia com anexectomia bilateral e colpectomia sob processo transexualizador, redesignação sexual no sexo masculino, redesignação sexual no sexo feminino, mastectomia simples bilateral sob processo transexualizador e plástica mamária reconstrutiva bilateral, incluindo prótese mamária de silicone bilateral no processo transexualizador.

Em relação aos atendimentos feitos nos estabelecimentos habilitados no processo transexualizador foram realizados 12.846 atendimentos ambulatoriais para pessoas trans em 2021, 9.988 em 2020, 13.157 em 2019 e 10.374 atendimentos no ano de 2018. Quanto às cirurgias de redesignação realizadas, foram 11 em 2021; 19 em 2020; 38 em 2019 e em 2018, foram 34 cirurgias de redesignação.

Atualmente, são 12 unidades de saúde do SUS habilitadas para realizar o processo transexualizador:

Em relação às cirurgias de redesignação sexual e complementares, são cinco estabelecimentos públicos habilitados: Hospital das Clínicas (GO), Hospital das Clínicas (PE), Hospital Universitários Pedro Ernesto (RJ), Hospital das Clínicas (RS) e Hospital das Clínicas (SP)

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