Como a Netflix recriou Macondo na adaptação de Cem anos de solidão
ELLE foi à Colômbia visitar o set da série baseada no romance de Gabriel García Márquez, que chega à plataforma.
Macondo, a cidade criada por Gabriel García Márquez (1927-2014) no romance Cem anos de solidão (1967), teve suas ruas percorridas apenas na imaginação do escritor e dos milhões de leitores do livro, um dos mais importantes do último século. A estreia hoje dos oito primeiros episódios da saga da Família Buendía, na Netflix, materializa a cidade.
Pouco mais de um ano atrás, a ELLE caminhou pelas ruas de Macondo erguidas em Alvarado, na região colombiana de Tolima, uma planície enorme cercada de montanhas. O tempo estava extremamente quente e úmido, como costuma ser na maior parte do ano. “Escolhemos Alvarado porque tem características essenciais que buscávamos na parte criativa e logística”, disse Carolina Caicedo, produtora geral e executiva de Cem anos de solidão.
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Dado o escopo da saga, que atravessa guerras, ditaduras e massacres, amores não-correspondidos e incestuosos, foi necessário construir quatro versões de Macondo. A última foi a visitada pela ELLE.
Para dar conta de adaptar o romance, montou-se uma operação de mais de mil pessoas. “Colocar em pé uma Macondo inteira foi um trabalho de muitos anos e bastante ambicioso. É um dos projetos mais arrojados da Netflix”, disse Juliana Moreno, diretora de conteúdo da plataforma na Colômbia.
A história de Cem anos de solidão vai de meados do século 19 a meados do século 20, percorrendo sete gerações dos Buendía, começando com os primos José Arcadio (Marco Antonio González) e Úrsula (Susana Morales), que, depois de se casarem, deixam o seu povoado em busca da felicidade. No meio do nada, eles fundam Macondo. O patriarca encanta-se pela alquimia graças a Melquíades (Moreno Borja), um membro do povo Roma que passa por ali. Ao longo dos anos, tragédias perturbam o casal (interpretado por Diego Vázquez e Marleyda Soto na maturidade) e seus filhos, que vivem em sua realidade momentos de magia – daí a classificação do livro como “realismo mágico”.
Durante anos, García Márquez resistiu a adaptações de sua obra, temendo que fosse reduzida a um filme falado em inglês. Seus filhos concordaram com a versão sob a promessa de que fosse interpretada em espanhol e filmada na Colômbia. A direção ficou a cargo do argentino Alex García López e da colombiana Laura Mora.
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Não dá para saber o que o Prêmio Nobel de Literatura de 1982 acharia de Cem anos de solidão, a série. Mas é inegável o cuidado minucioso que a produção teve com os detalhes e o capricho visual, com uma câmera fluida que explora os espaços de Macondo e da Casa Buendía. A produção, que tem com José Rivera (indicado ao Oscar de roteiro adaptado por Diários de motocicleta, de Walter Salles) entre seus roteiristas, mantém o ritmo vertiginoso da narrativa de García Márquez, mas desenvolve bem os personagens, mostrando os Buendía com suas virtudes e vícios, seja o egoísmo, a inveja ou o machismo.
E – alívio –, os diretores não tratam os eventos mágicos como excepcionais ou coisa de filme de terror. Apostando em efeitos práticos em vez da computação gráfica, eles trazem para o cotidiano um saco de ossos que se mexe sozinho, um rio de sangue que serve de anúncio de morte, uma chuva de flores amarelas para simbolizar uma despedida. Aquilo que para outros é “realismo mágico”, para os latino-americanos é apenas a realidade vista por outro ângulo, com o fantástico, a superstição, a magia ajudando a enfrentar a dureza do cotidiano.
A seguir, mais sobre os bastidores da produção:
Nicole Montenegro como Rebeca em sua fase jovem, Dairis Van Grieken como Visitación e Susana Morales como Úrsula, em cena da série Foto: Mauro González /Netflix ©️2024
A cidade
Mesmo que Macondo seja uma cidade ficcional, a série é toda baseada em pesquisas sobre esse período histórico.
As casas foram pintadas com pigmentos extraídos da terra e de vegetais. Os vidros da luminária foram feitos a mão em Bucaramanga, na região colombiana de Santander. Sempre que possível, a produção usou peças originais de mobiliário ou réplicas feitas por artesãos.
Ao todo, foram mais de 40 mil metros de construção. Havia também uma preocupação com o meio ambiente e econômica. Como a série foi rodada em uma região de produção de arroz, cascas do grão foram aproveitadas na estrutura das paredes.
As ruas levam nomes de mulheres importantes na vida de García Márquez, como sua mãe Santiaga e sua avó Tranquilina. As placas com seus nomes foram feitas artesanalmente em azulejos pintados a mão.
Os edifícios principais, como a escola e o bar, contam com cenários externos e internos. A Casa Buendía, que vai se transformando ao longo da história, tem uma fachada e dois ambientes construídos no local, mas a maior parte do interior foi erguido dentro de uma enorme tenda, para maior controle de equipamentos e luz. Os jardins contam com cerca de 16 mil plantas da região caribenha da Colômbia.
Jardim construído para a cenografia da série Foto: Mauro González / Netflix ©2024
A Casa Buendía
“A residência da família era um elemento fundamental do design de produção, liderado inicialmente por Eugenio Caballero. Tivemos a necessidade de criar um cenário para não utilizar uma locação real. Eram tantos os requisitos específicos que este espaço tinha que ter, que a ideia de ter uma localização real ia nos obrigar a fazer uma série de modificações numa casa colonial da época, o que era inviável. Por isso foi decidido construir a casa”, disse o diretor de arte Óscar Tello.
Para a equipe, era importante ser fiel às indicações dadas por García Márquez no livro, porque a Casa Buendía é um personagem como Úrsula e José Arcadio. “Ela é uma síntese da arquitetura vernácula da Colômbia e também um amálgama de todos os momentos narrativos”, disse Tello.
A produção percorreu toda a Colômbia atrás de móveis originais do século 19 e início do 20, refletindo também as mudanças de status da família. E a ideia era tornar tudo o mais real possível, com um jardim plantado de verdade e uma cozinha totalmente funcional.
Figurino de José Arcadio Buendía na juventude e de Úrsula em seu casamento Foto: Mauro González / Netflix ©2024
Os figurinos
Para reproduzir as roupas do período coberto pela trama, a equipe de figurino realizou pesquisas durante três anos. A equipe era 100% colombiana e, no total, foram fabricadas 35 mil peças de vestuário, sapatos e acessórios.
A maior dificuldade era encontrar referências para as classes mais populares, que normalmente não eram fotografadas e que compõem grande parte da população de Macondo. Graças a um projeto chamado Comisión Corográfica, de meados do século 19, que pretendia fazer uma descrição completa do país, os figurinistas conseguiram encontrar referências.
Para fazer as vestimentas dos personagens do povo originário Wayúu, a produção foi buscar pessoas da comunidade para fazer o Sheen P’ara, uma espécie de cinto-faixa, e uma manta tradicional, usadas respectivamente pelos personagens Cataure e Visitación. O mesmo se repetiu para o “capisayo”, uma capa impermeabilizante feita de vegetação.
Enquanto o vestido de casamento de Úrsula tem bordados feitos por ela mesma na história, o vestido de Remedios, que se casa com Aureliano e vem de uma família abastada, foi feito de organza e shantung de seda.
Normalmente, as mulheres dessa época usariam corseletes, mas em suas pesquisas a equipe de figurino descobriu que a peça fazia as mulheres desmaiarem com mais facilidade por causa do calor e que era aceito no país que elas vestissem roupas mais soltas.
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