Por reflexo do ensino formal, somos condicionados a enxergar os campos de conhecimento como independentes. Da mesma forma como distinguimos as matérias escolares Português e História, separamos a moda da ciência e da sociedade. Mas, na verdade, os três campos andam e podem andar mais entrelaçados do que imaginamos, e a Converse, criadora do icônico All Star, está nos provando essa trama por meio do projeto global Converse City Forests.
CONVERSE CITY FORESTS
Trata-se de um trabalho feito a várias mãos e cabeças, interligando potências criativas de diferentes partes do mundo na elaboração de murais. No Brasil, o projeto começou por São Paulo e agora se alça a novas coordenadas brasileiras com a Converse, os artistas Nila Carneiro, Monique, André Kajaman, Hisan Silva e Pedro Batalha, da Dendezeiro, Lucas Ademar, Alysson Freitas, Edvaldo Raw, o coletivo MOOC e eu.
Mas não são simples murais. Eles possuem um impacto positivo no meio ambiente e destacam admiráveis figuras comunitárias. No Rio de Janeiro, a homenagem vai para Dona Marta e Baiano, representantes do amor afrocentrado, e em Salvador a cantora Larissa Luz contempla o afrofuturismo.
O Converse City Forests já deixou suas marcas pelo mundo, com murais no Chile, Peru, África do Sul, Austrália, Tailândia e Indonésia.
SOCIEDADE
A moda é, desde suas primeiras manifestações, um reflexo da sociedade e se nutre das grandes movimentações geracionais. O que vai no nosso pé é um indício social tão forte quanto a camisa que vestimos. Enquanto o salto nos coloca em outro patamar, o tênis nos fornece base e conforto para o corre. Dona Marta e Baiano, representantes do Morro Santo Amaro, no Rio de Janeiro, são grandes exemplos desse ritmo.
Marta é presidente da associação de moradores e, mesmo em contexto pandêmico, não fica parada, e muito menos solta a mão da comunidade que ela viu crescer. “Estou tentando – eu falo tentar porque você não pode garantir que vou chegar lá 100% – fazer com que as pessoas acordem. Todos nós somos capazes de realizar um pouquinho e esse pouquinho, juntando com o seu pouquinho, vai dar um montão. E isso que é importante.”
Para ela, que sempre trabalhou por trás das câmeras e dos holofotes, ser homenageada dessa forma foi uma grande surpresa. Ela espera uma repercussão semelhante para a comunidade, que “esse mural mexa com as pessoas e as tire da zona de conforto. Que venham e participem. O importante é a participação. Não é esperar que eu faça, mas que me ajudem a construir junto”.
Ao lado da presidente, o mural reverencia também Baiano, morador já falecido da comunidade, mas que permanece firme na memória da rua, nas falas de quem vive por lá. “Ele era um personagem muito carismático, que a gente sempre encontrava durante nossos trabalhos por aqui. Tinha um ferro-velho e era conhecido por todo mundo. Foi um dos primeiros moradores da comunidade, desde 1948”, conta Lucas Ademar, residente do Santo Amaro, criador do coletivo Ademafia e responsável pela curadoria carioca do projeto. Foi ele quem trouxe Dona Marta e Baiano para o tema “amor afrocentrado”, que resume a relação dessas figuras com os vizinhos.
A arte é um caminho que perpetua histórias, contribuições e legados. Com os homenageados do Rio de Janeiro, não é diferente. O mural, feito pelo grafiteiro André Kajaman, os contempla, juntamente com amigos e familiares, e desperta o interesse pela história de cada um, indo além da homenagem, já que, com o passar do tempo, as narrativas em foco mudam.
Já a curadoria de Salvador foi feita pelos artistas da Dendezeiro, Hisan Silva e Pedro Batalha, em cima do afrofuturismo. “A gente tem uma gama muito grande de novos criadores, criativos que estão chegando e dominando tudo, trazendo novas linguagens e narrativas. Para nós, Larissa Luz é uma das pessoas que tomam a frente dessa movimentação.”
Realmente, para representar essa movimentação, Larissa Luz é uma flecha certeira. Afrofuturismo é ao mesmo tempo filosofia, arte e ciência, que nos permitem ver o mundo por outra perspectiva, permeando todos os campos do conhecimento. Larissa é uma grande referência, um grande portal sonoro que permeia diferentes afrotemporalidades (ancestralidade, afropresentismo e afrofuturismo).
CIÊNCIA
Para traduzir tanta força e representatividade em imagem, entram em cena as grafiteiras Andressa Monique e Nila Carneiro, que duplaram lindamente em Salvador aos olhos do panteão dos orixás no Dique do Tororó. “Esse projeto é muito importante. Fiquei muito contente ao receber o convite porque eu acompanhei em outros países os murais feitos por diferentes artistas”, conta Monique.
É lindo ver essa conexão e pensar que, entre tantas potências, os Dendezeiros uniram quem já admirava o Converse City Forests. No Rio de Janeiro, Lucas Ademar detectou outra confluência que marcou o mural de Dona Marta e Baiano. “Trouxe toda essa gama de estudos afrolatinos e indígenas que desenvolvi”, ressalta Kajaman.
Os três grafiteiros estão trabalhando com uma tecnologia responsável por parte do impacto positivo dos murais: a tinta fotocatalítica. Ela, apenas com a luz solar, é capaz de purificar o ar com o qual entra em contato, eliminando impurezas. Assim, cada metro quadrado de tinta equivale ao nobre trabalho de fotossíntese de uma árvore.
Para Nila, a chegada do projeto se casou perfeitamente com seu momento de vida. No caso, ela estava pesquisando como reduzir e converter os impactos do seu trabalho no meio ambiente. O mesmo dilema vivido por Monique, atualmente gestante. “Uso muito spray pela praticidade do material, que vem pronto e facilita o transporte na bolsa, mas o odor é muito forte. Depois de seis anos trabalhando com a tinta, não sinto mais o cheiro dela. Percebe-se o quanto é agressiva”, diz ela.
Ambas sonham com o momento em que o mural sobre afrofuturismo sairá do papel e entrará na fase de execução, quando elas poderão conferir a nova tinta na prática. Por hora, ele caminha em passos condizentes com o contexto social causado pela Covid-19. Conforme a doença avança, a produção desacelera, mas o desejo não perde a força.
Tanto o Dique do Tororó quanto Santo Amaro são locais de grande circulação. Por isso, colocar essa tecnologia nesses pontos é uma estratégia para fornecer uma dose de ar fotocatalisado, além de proporcionar aos artistas uma experiência mais sustentável e menos invasiva ao organismo.
Por fim, perguntei a Larissa Luz se ela imaginava que, em algum momento, cada metro quadrado da imagem dela equivaleria a uma árvore e ela considerou esta linda metáfora: “Pensar que nossa existência gera oxigênio, mais vida, respiro e ar é muito gratificante e entusiasmante, no sentido de vislumbrar um motivo existencial”. Uma relação mágica. Mas, como diz o ditado popular, “não é feitiçaria, é tecnologia”, e ficamos muito felizes de tê-la pelo Brasil.
O processo agora é colher os frutos do projeto, separar as sementes e plantar novas cores, homenageando cada vez mais os líderes comunitários que estão pelas ruas do Brasil e são inspirações encantadoras, fazendo jus ao que Larissa canta em sua música Trança:
“Faz a cabeça da menina
Comunica e entrelaça
Diz o que vem da sua raça
Estampa identidade
Atitude consciente”
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