Ai ai Oxum
Em sua primeira coluna de 2021, Hanayrá Negreiros fala sobre a deusa das águas, suas belezas, trajes e simbologia para este ano que começa.
Querides leitores,
Começamos as escritas de 2021 ao som da sempre maravilhosa Maria Bethânia em Louvação à Oxum do disco Olho d’Água de 1992, nada mais atual e auspicioso para anunciar a chegada de um ano em que, segundo algumas cosmovisões afro-brasileiras, será regido por ela que é tida como a deusa das águas doces, Oxum.
Todo começo de ano muitas comunidades tradicionais de terreiro consultam os búzios para saber qual orixá terá a regência do ano e em muitas casas Oxum apareceu como a deusa responsável por 2021. Ufa! Vindos de um ano tão turbulento e desafiador como foi 2020, é um alívio saber que teremos as águas doces de Oxum para guiar a gente neste ano que esperemos que seja mais saudável a todes.
Oxum no Brasil, e não só aqui, é considerada a deusa da beleza, relacionada também aos mistérios e poderes femininos, à fertilidade, prosperidade e maternidade, e em muitas histórias e mitologias africanas e afro-brasileiras, ela é sempre lembrada por ser elegante no trajar, detentora de belas joias, possuindo predileção pelos metais ouro e bronze e tons em amarelo e dourado. Acho interessante pensarmos a relação que tal deusa possui com o vestir e em como podemos pensar estéticas e adornos do corpo a partir de perspectivas negras, resgatando africanidades deixadas por uma população que chegou no Brasil forçadamente durante o período colonial.
São nos terreiros espalhados por todos os cantos do país que tradições negras são tecidas e reinventadas através dos saberes orais e comunitários, responsáveis por outras formas de conhecimento e entendimento do mundo. Tais saberes chegaram ao Brasil em tempos muito antigos, trazidos nas memórias sobretudo de mulheres negras que aqui criaram religiões e jeitos de ser e estar em diáspora.
Oxum/Dandalunda de Tata Mona Guiamazy do Templo de Cultura Banto Redandá vestida em suas cores rituais e adornada com seu adê (coroa) dourado e enfeitado com búzios.Foto de Orukwe (Felipe Torres)
Representação de Oxum e suas joias e ferramentas rituais por Carybé no livro Iconografia dos deuses africanos no candomblé da Bahia, datado de 1980 e publicado originalmente pela editora Raízes Artes Gráficas.
O espelho que tudo vê
A deusa de muitos nomes (a depender da tradição da comunidade que a cultua), dona das águas que correm em rios e cachoeiras, durante muito tempo foi encarada através de olhares cartesianos que equivocadamente a associaram a um culto à beleza quase que ao modo narcisístico. Eu explico:
Oxum é a deusa que possui como principais símbolos o abebé – tipo de leque que em muitas vezes é acrescido de um espelho, pelo qual a deusa passa a se mirar e admirar a sua beleza. Mas não se enganem, Oxum é africana e nada tem a ver com Narciso. E de fato, o espelho adorna sim, servindo para ver todas as belezas contidas nas águas, porém de maneira simultânea, pode ser entendido como uma poderosa arma para o combate, assim como um portal para acessar belezas outras.
Oxum com suas ferramentas, o abebé e a espada, representada pelo artista baiano TarcioV em aquarela e nanquim.
Aqui podemos pensar o espelho como aliado na luta contra imposições patriarcais de beleza ocidentais e euro-orientadas, pois pode ser através desse objeto que belezas negras insurgem contra racismos cotidianos, rompendo com estruturas colonizadoras e colonizadas. E sempre que penso por essa perspectiva, me recordo dos dizeres de Rosane Borges, professora e pesquisadora maranhense e dos pensamentos de Carla Akotirene, escritora e pesquisadora baiana, que refletem sobre a potencialidade do espelho como alternativa para ver outras narrativas sobre o que é posto como bonito, nos fazendo pensar sobre outros imaginários e belezas possíveis.
Que possamos seguir em boas, belas e frescas águas em 2021.
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