Cadê as lésbicas na história da moda?
No Dia da Visibilidade Lésbica, decidimos celebrar a influência de grandes mulheres lésbicas na moda, mas nos deparamos com um contexto histórico de invisibilidade.
Agosto foi escolhido como o mês da visibilidade lésbica no Brasil. Desde 1996, a militância promove eventos e chama a atenção para a existência, violências sofridas e para a luta por direitos das mulheres lésbicas. Tudo isso culmina no dia 29 de agosto, o Dia da Visibilidade Lésbica. Aproveitamos a data para falar sobre as grandes mulheres lésbicas que fizeram história na moda, mas uma rápida pesquisa no Google sobre “lésbicas e moda” mostra como elas foram historicamente e sistematicamente invisibilizadas. Os resultados trazem imagens fetichizadas e alguns registros sobre um suposto estilo de vestir lésbico — que oscila entre a estética tida como masculinizada, apelidada de caminhoneira, ou o “lesbian chic” dos anos 1990. Quando a pesquisa mira em “homens gays e moda”, no entanto, os resultados são muito mais ricos e diversos. Os grandes estilistas, a influência inegável, os milhares de profissionais são listados link após link.
Fomos então conversar com profissionais do mercado. Falamos com estilistas lésbicas, que não precisam mais esconder suas sexualidades, procuramos mulheres lésbicas que amam e consomem moda, professoras, pesquisadoras e historiadoras. Perguntamos quem eram as grandes referências lésbicas na moda. E, uma a uma, nossas entrevistadas se depararam com a dificuldade de nomear esses ícones.
Segundo Natalia Rosa Epaminondas, professora do curso de Moda da FMU/FIAM-FAAM e pesquisadora com foco em gêneros, sexualidades e decolonialidades, a falta de registros históricos de mulheres lésbicas na moda pode ter a ver com o fato de que a palavra “lésbica”, com o significado que tem hoje, é relativamente nova. É claro que mulheres que se relacionam com outras mulheres existem desde que o mundo é mundo, mas o conceito da lesbianidade foi construído ao longo do século passado. “No começo do século 20, por exemplo, não era comum que as mulheres que se relacionavam com outras mulheres se identificassem como lésbicas. Portanto, enquanto historiadoras, não podemos ser anacrônicas e dar uma identidade para alguém que nunca se identificou assim”, explica Natalia, que também coordena o
grupo de estudo feminista Às Avessas.
Mesmo assim, é possível identificar a influência de algumas mulheres que se relacionavam com outras mulheres na história da moda. Na virada do século 19 para o século 20, por exemplo, a regra eram os vestidos cheios de detalhes, com várias camadas e corset bem apertado. Algumas mulheres, por precisarem de roupas práticas para o dia a dia, começaram a usar o corset mais folgado e adotar peças do guarda-roupas masculino da época, como um chapéu ou uma gravatinha.
A isso, a socióloga Diana Crane chamou de “estilo alternativo” em seu livro
A Moda e seu Papel Social (editora Senac, 2006). Aqui, ela não se refere especificamente a mulheres lésbicas — e nem toda mulher que ousava desafiar os códigos de vestimenta da época eram lésbicas —, mas entre artistas, vanguardistas e revolucionárias, havia sim mulheres que se relacionavam com outras mulheres, como mostram registros fotográficos da época.
Isso também nos leva a pensar nas primeiras mulheres que ousaram usar calças. No livro
Une Histoire Politique du Pantalon (2010), a francesa Christine Bard mostra que calças para mulheres só eram aceitáveis em situações muito específicas, como para andar de bicicleta, uma grande novidade na época que estava muito na moda. As mulheres que decidiam abrir mão das saias e vestidos para usar calças em situações corriqueiras sofreram hostilidades — isso aconteceu na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.
“Existem fotos do começo do século 20 de bares e cafés voltados para o público LGBT — que, na época, não era chamado assim — em que se vê casais de mulheres usando o ‘estilo alternativo’ ou calças”, conta a pesquisadora Natalia Epaminondas. “Há registros de mulheres vestindo o costume completo, com cartola e tudo, ou smoking, o que poderia ser crossdressing ou uma forma de ir ao bar e festas para paquerar, mas não uma roupa para o dia a dia”, completa.
Nesta foto de 1912, mulheres vestidas com trajes masculinos abraçam mulheres com os trajes femininos típicos da época.
Corbis via Getty Images
Essa ousadia acontecia na surdina. Os bares frequentados por homens e mulheres homossexuais eram muitas vezes clandestinos, ilegais. E mulheres usando o “estilo alternativo”, ou vestindo calças, eram quase criminosas. “Não dá para dizer que as lésbicas inventaram a calça ou o ‘estilo alternativo’, mas podemos dizer que mulheres inclinadas a esse tipo de estilo eram feministas, se relacionavam com outras mulheres ou, ainda, eram interessadas nos últimos lançamentos, no que era diferente para ser moderno”, diz Natalia.
Ao longo da história, o tal estilo alternativo foi explorado incontáveis vezes.
Das criações de Coco Chanel na década de 1920 até o desfile de verão 2020 da Vetements, o cruzamento do que é visto como guarda-roupa masculino e feminino deu origem a coleções, campanhas e ensaios fotográficos.
Não são todas as lésbicas que se apropriam de peças consideradas masculinas, é claro. Não há uma norma que diga que mulheres que se relacionam com mulheres tenham uma maneira específica de se vestir, mas muitas pessoas encontram no estilo um jeito de expressar sua sexualidade.
Nos últimos anos, a popularização da moda sem gênero parece ser uma tentativa da indústria de abraçar o estilo alternativo das novas gerações. Para muitos gays, lésbicas e bissexuais, sempre foi comum ir às lojas de roupas e visitar a seção destinada ao gênero oposto. Mulheres que buscam camisas de botão desenhadas para eles, homens que querem calças mais justinhas como as que foram pensadas para elas. “Penso que essa tendência surgiu dos modos de vestir de pessoas de sexualidades dissidentes. As lésbicas não necessariamente estavam fazendo moda, criando para vender, mas ajudaram a inventar novas formas de se vestir, um estilo diferente do convencional”, explica Natália.
Isso não significa que não existiram estilistas e criadoras lésbicas ao longo da história da moda. A invisibilidade delas na indústria, porém, parece ser uma triste estratégia de sobrevivência. A moda é, até hoje, dominada por homens. De acordo com a pesquisa ”
Shattering the Glass Runway“, realizada em 2018 pelo Council of Fashion Designers of America (CFDA), menos de 50% das marcas mais famosas nos Estados Unidos tinham estilistas mulheres, e apenas 14% das grandes marcas tinham mulheres no comando da empresa. Se é difícil para as mulheres, de forma geral, é ainda pior para as lésbicas, que contam com mais obstáculos e preconceitos para superar.
Mesmo a estilista Jenna Lyons, que trabalhou por 26 anos na J. Crew e chegou ao posto de presidente da marca, teve de lidar com preconceitos e assédio da mídia em 2011 quando se divorciou do marido e enfrentou meses de especulação sobre uma possível nova namorada. Em novembro de 2012, ao receber um prêmio, Jenna agradeceu publicamente à Courteney Crangi, “que me mostrou um novo amor”. Simples assim, para que complicar?
Embora o cenário de desigualdade não tenha mudado muito de 2018 para cá, a questão da visibilidade lésbica na indústria está, sim, avançando. Estilistas, modelos, fotógrafas e stylists, entre outras profissionais, têm falado abertamente sobre suas sexualidades, até como posição política, em resposta à onda de conservadorismo que tomou o mundo de assalto. Apenas existir como mulher lésbica, publicamente, em meios onde até pouco tempo atrás elas não se sentiam pertencentes, pode ser encarado como um ato político. E, por isso, a tendência é que no futuro a busca por “lésbicas e a moda” no Google tenha conteúdos mais ricos e diversos do que os atuais.
Novas estilistas lésbicas
Jal Vieira, estilista que desde 2011 comanda a marca
Jal Vieira Brand, faz questão de deixar claro que é uma mulher preta, periférica e lésbica, e sabe que sua vivência tem impacto direto em seu trabalho. Ao longo da vida, ela sentiu na pele as consequências do racismo e da lesbofobia. Sofreu bullying na escola e passou por muitas dificuldades até conseguir se assumir e poder explorar toda sua potencialidade.
Jal VieiraArquivo pessoal
Hoje, Jal faz parte do
coletivo de estilistas Célula Preta, e prioriza a contratação de mulheres, sobretudo pretas, para trabalhar com ela na produção das peças e nos desfiles. Ela acredita na importância dos coletivos para amplificar as vozes que foram e são abafadas pela sociedade patriarcal. Mas não participa e nem conhece movimentos desse tipo que reúnam mulheres lésbicas na moda.
Ela diz não considerar que sua sexualidade tenha sido um grande empecilho no universo da moda, especialmente quando comparado com as dificuldades que enfrentou por ser preta. Mas, ao pensar em quais mulheres lésbicas eram referências para ela, se deparou com a questão da invisibilidade.
“As pessoas acham meu trabalho legal, mas quando veem a pessoa por trás desse trabalho, parece que minha imagem não interessa. Sou uma mulher que não performa a feminilidade e o glamour que midiaticamente estão ligados à imagem da moda”, relata Jal, ressaltando que esse glamour não tem a ver com a realidade da indústria. E completa: “Se você for analisar os maiores nomes da moda no mundo, ou são homens gays que performam feminilidade, como
Marc Jacobs, ou a imagem do glamour exacerbado de uma Donatella Versace, por exemplo. É a invisibilidade dos nossos corpos, mesmo”.
Lívia Barros e Janaina Azevedo são um casal, e sócias na marca
Ken-gá, que surgiu em 2016 e estreou na Casa de Criadores em 2018. Elas dizem viver muito de perto a questão da invisibilidade lésbica na moda, e associam o problema à desigualdade de gênero e ao machismo na indústria. “Isso afeta as nossas possibilidades de prosperar na carreira. Temos menos indicações, é difícil conseguir apoio para uma marca feita por duas mulheres que são lésbicas, a gente fica muito atrás nessa corrida”.
A Ken-gá é uma marca que usa humor ácido para falar de empoderamento, política e comportamento de uma forma que normalmente é associada aos homens. Lívia conta que, no começo, havia certo mistério sobre quem eram as pessoas por trás da marca, e quando elas revelaram que eram duas mulheres, receberam muitos comentários nas redes sociais de seguidores surpresos que achavam que a marca pertencia “a duas bichas”.
No último desfile da Ken-gá, chamado “Boleia Mística”, a dupla se inspirou em Afrodite, uma caminhoneira de Cuiabá que assumiu ser mulher aos 68 anos. “O desfile retratava a invisibilização da mulher até o momento em que ela põe um ponto final e fala ‘eu existo, estou aqui e vou lutar pelo que eu quero’. Isso também diz respeito às lésbicas, que, como todas as mulheres, são invisibilizadas de uma forma ou outra”, explica Lívia.
Consumindo moda
Se em uma ponta da cadeia da indústria até muito recentemente era difícil encontrar criadoras de moda declaradamente lésbicas, na outra ponta há um número imenso de consumidoras que não se sentem parte desse universo.
“Por causa da lesbofobia e do machismo, a sociedade ainda associa a lésbica ao feio, ao fora de moda, ao brega. Construíram a imagem da lésbica agressiva, que vai bater, que cospe no chão”, explica
Ana Claudino, pesquisadora com foco em mulheres negras lésbicas, bissexuais e transgêneros, e criadora do canal de YouTube Sapatão Amiga e do podcast LesboSapiência.
Ana ClaudinoArquivo pessoal
Segundo Ana, o estereótipo cheio de preconceitos leva as lésbicas, especialmente as que fogem da feminilidade padrão, a pensar que a moda não é para elas, bem como os cuidados com a beleza e a aparência. “Eu mesma, até dois anos atrás, usava roupas escuras para me esconder, não me achava digna de colocar uma blusa colorida, cuidar do meu cabelo, passar hidratante no corpo”, relata.
Vale ressaltar que lésbicas são plurais, e algumas podem ter mais facilidade de se encaixar nas expectativas hegemônicas da sociedade, especialmente quando se identificam com um visual feminino dentro dos padrões estabelecidos ou quando são brancas e magras. “Uma lésbica bem caminhoneira, sapatão, com outras feminilidades, tem o corpo animalizado e atacado. Falta representatividade de corpos plurais, sapatonas gordas, negras, indígenas, pessoas com deficiências”, aponta Ana.
Jamine Miranda é mais conhecida como
@pretacaminhao. Historiadora e pesquisadora com foco em mulheres negras e lésbicas que não performam a feminilidade padrão, ela tem mais de 14 mil seguidores no Instagram. Lá, ela intercala posts com reflexões sobre suas vivências com fotos em que mostra seu estilo pessoal.
“Eu amo moda, minha construção como mulher negra e lésbica passa totalmente por isso. Gosto de saber como uma roupa foi pensada, a história por trás do tênis que eu gosto de usar. Tenho uma relação de amor com a moda, mas ainda há muitas questões a serem trabalhadas”, aponta Jamine, que sente que o amor pela moda não é exatamente correspondido.
Jamine Miranda, a @pretacaminhaoArquivo pessoal
O lugar da consumidora lésbica na moda, especialmente se ela não tem o visual determinado como feminino, é nebuloso. É comum que elas se enxerguem em uma espécie de limbo entre o que o mercado apresenta como moda masculina e feminina. “A vida inteira escutamos que o tipo de roupa que a gente gosta não é para a gente, que não pode isso ou aquilo”, explica Jamine.
Ao chegar na idade adulta, com dinheiro e liberdade para consumir o que bem entende, a frustração passa a ser outra. Para as mulheres que se identificam com o estilo “caminhoneira”, comprar na seção masculina das lojas não é uma solução, pois as roupas são pensadas para outra anatomia que não a delas. “Eu gosto de camisas de botão, mas tenho os seios maiores do que a barriga. As camisas masculinas são feitas para homens que em geral não têm seios. Para mim, se cai bem na barriga, fica apertado nos seios, então tenho que comprar um número maior, com caimento ruim”, detalha Jamine.
O resultado é que as mulheres de estilo caminhoneira têm que vestir “o que tem”, e não o que elas realmente gostariam de usar. “Eu como mulher que não estou nesse lugar da feminilidade padrão imposta, sinto que as coisas não são pensadas para o meu corpo ou meu estilo”, desabafa Jamine, sonhando com o dia em que vai encontrar peças com o visual que ela gosta e com caimento adequado para o corpo de mulher que ela tem.
As referências de moda e estilo de Jamine, na maioria, são mulheres estrangeiras, como a atriz e roteirista
Lena Waithe, a também atriz Danielle Cooper, a MC Siya, a estilista e rapper Eddy Knoxxy, da marca DVMN Pigeon e Allison Graham, blogueira do She Does Him. No Brasil, ela cita Pam Machado, mas sente que a moda lésbica, especialmente para as de estilo caminhoneira, está sendo construída agora, em um “trabalho de formiguinha”.
E o futuro?
Em comum, as mulheres entrevistadas têm uma visão moderadamente otimista para o futuro das lésbicas na moda. Lívia, da Ken-gá, percebe que nos últimos anos as mulheres se mobilizaram muito por mais espaço, e que isso ecoa também na vivência lésbica. Mas para resolver, de fato, a questão da visibilidade, ela acredita que é preciso tomar o poder na moda, que hoje está majoritariamente nas mãos dos homens.
Jal também vê que os avanços dos últimos anos podem ter um bom impacto na moda, mas ressalta que eles se dão, principalmente, dentro de uma pequena bolha. “Quando fui pela primeira vez na Parada LGBT, eu tinha 17 anos, e quase não se via mulheres ou homens se beijando. Hoje a gente vê, é comum, mas dentro da nossa bolha. Por outro lado, a violência contra LGBTQIA+ hoje é legitimada pelo governo. Os avanços são lentos, ainda há muito o que ser feito”.
Jamine agora se vê como uma referência de estilo para outras meninas e mulheres, que seguem sua conta no Instagram e gostam de seus looks. “Me sinto muito grata de estar nesse lugar, porque o que eu faço agora, eu gostaria de ter visto quando eu me entendi uma caminhoneira. Espero ser para as meninas e mulheres que me seguem o que eu um dia quis que uma mina fosse para mim”, diz ela.
Natalia aponta que é difícil pensar em futuro em meio à pandemia de Covid-19, que deixou tudo tão incerto, mas que vê em suas alunas e alunos uma vontade de explorar gêneros e identidades como possibilidades: “É um ato revolucionário você apenas existir na rua como lésbica, com uma performatividade de gênero sapatão. Estar presente, criar redes de apoio, criar uma comunidade… Isso tudo são ações políticas que as lésbicas estão escolhendo tomar e ficar mais visíveis, mais públicas. Então acredito que sim, no futuro, a gente vai ver na moda mais referências de mulheres lésbicas. Eu espero que sim”.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes