O que está por trás da presença tímida da moda na COP30
Há uma contradição entre a presença da moda na COP30 e a maneira como uma das indústrias mais poluentes do planeta é considerada nas discussões da conferência. Organizações independentes e da sociedade civil tentam mudar o debate.
Moda na COP30 não é algo que se lê ou escuta com frequência na Zona Azul, a parte reservada da conferência onde acontecem as negociações oficiais. Por lá, monitores espalhados pelo espaço funcionam como em um aeroporto, com a programação rolando pela tela de acordo com o horário. Há também dezenas de coletivas de imprensa, reuniões, debates e atividades paralelas por dia. Nenhuma tem moda no título.
O grande objetivo da COP é costurar acordos que permitam que a humanidade descarbonize a economia e mantenha o aquecimento da Terra em até 1,5ºC. É notável, então, que uma parte relevante da engrenagem econômica apareça só como exemplo ou penduricalho em um ou outro painel sobre economia circular.
Um dos poucos eventos sobre moda na COP30: desfile-manifesto “Vestir Amazônia, Reflorestar o Clima”, organizado pela AssoBio e pela Riachuelo.
Foto: Leandro Santana

“Dentro da Zona Azul, percebemos a presença da moda de forma muito tímida e pontual. Na agenda mais robusta, ainda se fala muito pouco sobre o assunto”, diz Fernanda Simon, diretora executiva do Fashion Revolution Brasil. A organização tem participado de eventos independentes. Um deles foi um desfile-manifesto na Ilha do Combu, em 13 de novembro, com direção criativa de Sioduhi, estilista indígena do povo Piratapuya. Ao pôr do sol e com trilha sonora ao vivo da cantora Djuena Tikuna, modelos chegaram de barco, erguendo bandeiras ao vento e vestindo roupas e acessórios de marcas sustentáveis – como Nalimo, Yanciâ, Bossa Pack, Tucum, Nunghara, Veja BR, Leandro Castro e Flavia Aranha.
Choque de realidade
Recentemente, o Apparel Impact, instituto que trabalha para acelerar o impacto positivo na indústria de vestuário, calçados e têxteis, contabilizou a emissão de gases de efeito estufa da moda: foram 944 milhões de toneladas em 2024. Se a toada for mantida, a projeção é de 1,24 bilhão de toneladas em 2030 – um volume maior do que as emissões anuais do Japão.
A mais recente edição do Índice de Transparência da Moda Brasil, publicado pela Fashion Revolution Brasil e lançado durante a COP30, traz dados igualmente assustadores. “Vinte e duas das 60 grandes marcas que operam no Brasil emitem a mesma quantidade de gases de efeito estufa do que Portugal”, destaca Fernanda.
Outros dois relatórios também aproveitaram o timing da conferência no Pará para amplificar suas comunicações: o Fossil-Free Fashion Scorecard 2025, uma análise da ONG Stand.earth sobre descarbonização produtiva, e o What Fuels Fashion?, um estudo com mais de 200 marcas feita pelo Fashion Revolution internacional.

Look do desfile-manifesto “Vestir Amazônia, Reflorestar o Clima”, na COP30. Foto: a2ateliê
Leia mais: Moda na COP30, o que você precisa saber
Ambos apontam o mesmo problema: a matriz energética dos fornecedores das empresas de moda. Casas de tingimento, lavanderias e fábricas de beneficiamento de tecidos em países asiáticos, de onde vem a maior parte da matéria-prima do setor, ainda usam combustíveis fósseis, incluindo carvão – o que torna o ar da região tóxico e cria ambientes quentes demais para os trabalhadores.
Aqui entra o debate sobre transição energética justa. De um lado, há grifes bilionárias, principalmente europeias e estadunidenses, com modelos de negócio responsáveis por cerca de 10% do PIB de países menores, como Bangladesh, um importante produtor têxtil e de vestuário. Do outro, os trabalhadores expostos ao calor, à poluição e a condições de trabalho precárias, e governos de nações em desenvolvimento.
De acordo com os dados do Fashion Revolution internacional, só 10% dentre 200 marcas analisadas divulgaram metas de energia renovável para a cadeia de valor e 18% têm metas para eliminar o carvão do processamento. A coisa vira um jogo de estátua: os fornecedores não querem investir em energia limpa por conta própria e os governos hesitam em limpar a matriz energética se não houver uma demanda industrial clara. As marcas, enquanto não são obrigadas a fazer nada, ficam paradas no meio.
Longe da COP, longe da meta
Alguns dias antes do início da COP30, o Fashion Industry Charter for Climate Action publicou uma carta aberta dirigida à presidência da conferência. No texto, as empresas signatárias apresentaram seus pedidos:
- Acelerar a transição para energia limpa nos principais países da cadeia de suprimentos;
- Ampliar o financiamento climático para viabilizar os investimentos dos países produtores e de pequenas e médias empresas;
- Avançar em adaptação e resiliência climática, com mais recursos para avaliação de riscos, proteção de trabalhadores e comunidades, e planos de adaptação conduzidos por cada país em regiões têxteis vulneráveis.
A iniciativa voluntária é liderada pela ONU e surgiu em 2018, durante a COP24. Hoje, reúne empresas de toda a cadeia da moda – produtores de matéria-prima, fábricas de tecidos, marcas, varejistas – alinhadas com o Acordo de Paris. Atualmente são 70 participantes, incluindo Adidas, Burberry, Decathlon, Hermès e Target. Nenhum é brasileiro.
“O dinheiro não foi mobilizado para investir em soluções de descarbonização há muito comprovadas, como energia renovável. Em vez disso, a sustentabilidade tem sido usada como ferramenta de marketing.” – Ruth MacGilp, porta-voz da Action Speaks Louder
“O Fashion Charter pede às empresas que estabeleçam objetivos para reduzir emissões, publiquem relatórios e trabalhem em um plano de transição”, diz Lindita Xhaferi-Salihu, líder de engajamento empresarial do grupo, em entrevista no pavilhão da ONU.
Mesmo com a crise climática já deflagrada, ela vê uma lista decrescente de parceiros. “O número de signatários têm diminuído, porque alguns acham que é muito trabalhoso”, explica, destacando que os compromissos de inventário de carbono ainda são voluntários. “Nessas empresas, você normalmente tem pessoas (da área) de sustentabilidade e são elas que precisam convencer as chefias. A sustentabilidade não é algo implícito no negócio.” Tanto que empresários ligados ao Fashion Charter nem vieram a Belém, como fizeram nas duas COPs anteriores, em Dubai e Azerbaijão: fora do eixo estratégico, não viram motivo para viajar.
Os principais objetivos da iniciativa são os mesmos da COP: zerar emissões de gases de efeito estufa até 2050 e alinhar o setor com as metas que limitem o aquecimento da Terra a 1,5ºC. Mas o cenário não está favorável: seria necessário cortar as emissões da moda em 45% até 2030.
“O dinheiro não foi mobilizado para investir em soluções de descarbonização há muito comprovadas, como energia renovável. Em vez disso, a sustentabilidade tem sido usada como ferramenta de marketing”, aponta Ruth MacGilp, porta-voz da Action Speaks Louder. Esta organização de ativismo climático, junto ao Stand.Earth e ao Fashion Revolution, elaborou um documento de resposta ao comunicado do Fashion Charter. “A clareza inegável da crise climática e de seus impactos na resiliência das cadeias de suprimentos pode forçar as marcas a mudar esse rumo – o que só é possível se elas redistribuírem parte de seus vastos recursos para substituir combustíveis fósseis por energia limpa e eletrificada”, continua.
Um problema chamado escopo 3
Um inventário de carbono – documento que categoriza as emissões em detalhes – divide as fontes de emissões de um negócio entre atividades diretas (que entram nos chamados Escopos 1 e 2) e indiretas (Escopo 3). Na moda, cuja cadeia de valor é longa e dispersa, a maior parte do impacto climático está no Escopo 3, que inclui todos os fornecedores e processos como a produção e o beneficiamento das matérias-primas.
Exemplo: imagine uma bolsa costurada na Itália e vendida na França, feita com couro brasileiro. As emissões da criação do gado, do curtume e de todo o transporte fazem parte do Escopo 3, pois ocorrem na cadeia de valor – tem outro CNPJ, basicamente. Se a oficina de costura e a loja onde ela for vendida pertencerem à marca, essa parcela das emissões entra nos Escopos 1 e 2.
Esses estágios do Escopo 3 concentram as etapas mais poluentes e representam o principal desafio ambiental. Mas também são, tecnicamente, indiretos. É comum uma companhia destacar publicamente que suas operações são cada vez mais sustentáveis, e deixar em letras miúdas que estamos falando apenas dos Escopos 1 e 2, ou seja, das atividades diretamente realizadas por ela. Assim, todo o resto fica em segundo plano.

Look do desfile-manifesto “Vestir Amazônia, Reflorestar o Clima”, na COP30. Foto: a2ateliê
“Um fabricante me falou: ‘Nós estamos subsidiando a descarbonização de marcas no mundo ocidental’”, diz Lindita. Em outras palavras: o trabalho sujo da produção de moda fica na conta dos fornecedores, muito longe das vitrines.
E como os inventários de carbono são voluntários e as metodologias podem variar entre si, há um pedido interessante na carta aberta do Fashion Charter: que a indústria de moda una esforços para padronizar as medidas do tal Escopo 3, que engloba as atividades indiretas, ou seja, aquelas terceirizadas. “Um marco comum permitirá um acompanhamento mais transparente das reduções de emissões e reforçará a confiança no progresso”, escreveram os autores.
Algo que une Lindita e Ruth é a certeza de que o mercado pode e deve fazer muito mais. Especialmente quando se trata de financiar a adoção de energia limpa para os fornecedores e influenciar políticas públicas nos países onde eles trabalham.
Um exemplo positivo é a rede de fast fashion H&M, que aparece em primeiro lugar no relatório da Stand.Earth sobre esforços de descarbonização feitos por grandes empresas de moda. Em nota, ela diz ter investido 179 milhões de dólares em 2024, de forma direta e via empréstimos bancários, para financiar a transição energética de seus fornecedores. (No Brasil, o desafio ainda está na rastreabilidade: 45 das 60 marcas no Índice de Transparência da Moda Brasil não divulgaram uma lista com dados mínimos sobre quem fornece seus materiais.)
“O princípio de ‘nada sobre nós, sem nós’ deve orientar a adaptação climática. O engajamento significativo com representantes dos trabalhadores e das comunidades do entorno é a base de qualquer plano climático com credibilidade – não apenas por uma questão de equidade, mas de eficácia. Afinal, quem conhece melhores soluções do que as pessoas que vivem e trabalham diretamente com esses problemas?”, questiona Ruth.
“Se você leva seu parceiro na cadeia de valores em conta, vai e diz: ‘Como cocriamos essa solução? De que você precisa? Onde eu entro? Onde você entra?’”, fala Lindita, a executiva da ONU.
Para uma corporação que queira colaborar com o governo, ela recomenda analisar o plano climático daquele país, mais conhecido como NDC (Nationally Determined Contribution), que é um compromisso previsto no Acordo de Paris e atualizado a cada cinco anos. Segundo Lindita, as NDCs “sempre incluem uma parte condicional”, que depende de financiamento e da capacidade disponível para ser posta em prática. O mercado, portanto, poderia usar a NDC como ponto de partida para estratégias conjuntas. “No fim das contas, o que queremos é que cada país esteja preparado para o futuro”, afirma.
“A moda é uma indústria de trilhões de dólares com um papel enorme na aceleração da transição verde industrial. Mas, de forma crucial, também é um dos veículos culturais mais influentes do mundo. Todos nós nos vestimos todos os dias, então, gostem ou não os formuladores de políticas engravatados da COP, eles fazem parte do sistema da moda – e têm a responsabilidade de levar esse sistema a sério”, conclui Ruth.
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