“AmarElo – é tudo pra ontem”: 7 personagens icônicos da história da cultura negra no Brasil

Com realização do Laboratório Fantasma, documentário que entrelaça o show do Emicida no Theatro Municipal de São Paulo com a história da cultura afro-brasileira acaba de estrear na Netflix. Saiba mais sobre algumas das personalidades retratadas no filme.


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Foto: Jef Delgado



“Por que isso não é ensinado nas escolas?”. É muito provável que essa pergunta tenha ficado martelando na cabeça de muita gente que assistiu ao documentário Emicida: AmarElo – é tudo para ontem. Disponível na Netflix desde 8/12, o filme dirigido por Fred Ouro Preto, com realização da Laboratório Fantasma e produção de Evandro Fióti, irmão e sócio de Emicida, mescla cenas da apresentação do rapper no Theatro Municipal de São Paulo, em 2019, com os últimos cem anos da história da cultura negra no Brasil.


Trailer oficial de AmarElo – É Tudo Pra Ontem

Ao longo de 89 minutos, somos apresentados a figuras importantíssimas na formação da cultura nacional. Personalidades de pele preta que, apesar da sua relevância internacional, seguem sendo ofuscadas por uma história que privilegia narrativas protagonizadas por pessoas brancas. Quem narra tudo é o próprio
Emicida, que faz questão de ovacionar cada uma dessas figuras, ao mesmo tempo em que as relaciona com as onze faixas do seu álbum mais recente, AmarElo, e com a sua própria trajetória como artista.

Nos são apresentadas tantas informações novas, que deveriam ser de conhecimento popular amplo, que a vontade é de assistir novamente logo após o filme acabar. Mas quem quiser saber mais sobre algumas das principais personalidades retratadas no documentário antes de dar o play mais uma vez, aqui está um resumo da história de sete delas:

Tebas

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Quadro “Cabeça de Negro”, de Cândido Portinari, recorrentemente associado a TebasGoogle Arts & Culture

Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas, é considerado um dos arquitetos mais importantes do século XVIII em São Paulo. Ele era especialista na arte de talhar pedras, técnica ainda pouco explorada na cidade que, até então, era erguida principalmente com taipas – barro comprimido em uma estrutura de varas ou taquaras. Seu trabalho era muito requisitado, principalmente pelas corporações religiosas, que detinham os recursos financeiros na época e contribuíram para a construção da capital de São Paulo nos primeiros anos da sua fundação.

Escravizado pelo mestre de obras português Bento de Oliveira Lima, ele só obteve a sua alforria aos 58 anos e exerceu seu ofício até 90 anos. Entre os seus trabalhos de destaque que seguem de pé estão as fachadas das igrejas do Mosteiro de São Bento, de 1766, e da Ordem 3ª do Carmo, feita em 1777. Apesar de ter tido seu trabalho valorizado ainda em vida, Tebas só foi reconhecido como arquiteto em 2018, pelo Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp).

No ano seguinte, foi lançado o livro Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, de Abilio Ferreira, Carlos Gutierrez Cerqueira, Emma Young, Ramatis Jacino e Maurílio Chiaretti, que analisa com profundidade seu legado e sua história. Em 20/11 deste ano, foi inaugurada uma escultura em sua homenagem na Praça Clóvis Beviláqua, face leste da Praça da Sé, projetada pelo artista plástico Lumumba Afroindígena e pela arquiteta Francine Moura.

Oito Batutas

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Os Oito Batutas foram um divisor de águas na música popular brasileira

Instituto Moreira Salles

Os Oito Batutas foram o primeiro grupo de música popular brasileira a conseguir projeção internacional. Considerado um divisor de águas na música nacional, o conjunto se uniu depois que Isaac Frankel, gerente do Cine Palais, um dos mais prestigiados do Rio de Janeiro, pediu para os músicos Pixinguinha e Donga formarem um grupo para se apresentar regularmente no cinema. O flautista e o violonista, então, convidaram China (violão e voz), José Pernambuco (canto e ganzá), Jacob Palmieri (pandeiro), Raul Palmieri (violão), Nelson Alves (cavaquinho) e Luiz Silva (reco-reco) para se unirem a eles.

A primeira apresentação foi em outubro de 1919, atraindo uma multidão. Apesar do sucesso, houve quem considerasse um escândalo que um grupo com quatro negros em sua formação se apresentasse naquele cinema frequentado pela alta sociedade, ainda mais tocando música popular e vestindo roupas sertanejas. No entanto, isso não impediu que as apresentações seguissem lotadas e que pessoas de prestígio da época, como Ruy Barbosa, as frequentassem. Em pouco tempo, os Oito Batutas começaram a fazer turnê pelo Brasil – sempre muito aplaudidos – e pelo mundo.

As turnês pela França e Argentina foram algumas das mais marcantes. Em contato com músicos do mundo todo, logo começaram a se encantar por outros estilos e, em 1923, mudaram o nome de Orquestra Típica Oito Batutas para Jazz Band Oito Batutas, para passar a tocar músicas internacionais de sucesso sem abandonar o choro. Foi na Europa também que Pixinguinha conheceu o saxofone, que marcou a sua imagem para sempre. Continuaram juntos até 1931. Na sequência, Pixinguinha, Donga e João da Bahiana fundaram o Grupo da Guarda Velha.

Lélia Gonzalez

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Lélia Gonzalez é considerado um dos principais nomes da luta antirracista no Brasil

Divulgação

Lélia Gonzalez foi percursora do feminismo interseccional no Brasil. Filha de pai negro operário e mãe descendente de indígenas empregada doméstica, nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1935, sendo a penúltima de dezoito irmãos. A família se mudou para o Rio de Janeiro em 1942, quando seu irmão Jaime de Almeida foi convidado a jogar pelo Flamengo. Um diretor do time tentou colocá-la para trabalhar em sua casa, ainda criança, como empregada doméstica, mas Lélia reagiu até voltar a viver com sua família.

Formada em Filosofia e História, com mestrado em Comunicação Social e doutorado em Antropologia, foi professora e pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de 1978 a 1994, ano do seu falecimento. Nesse período, teve atuação fundamental em diversos movimentos antirracistas, sendo parte essencial na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) e da criação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ). Lélia também participou da formação do PT, foi do PDT, atuou das discussões sobre a Constituição de 1988 e integrou o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

É considerada uma das mais importantes ativistas negras brasileiras, sendo aplaudida, inclusive, pelo ícone do feminismo negro Angela Davis. “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, disse em visita ao Brasil, em 2019. O livro Por um feminismo afro-latino-americano, lançado em outubro pela editora Zahar, reúne ensaios acadêmicos, entrevistas, registros de palestras em congressos internacionais e artigos que saíram na imprensa em uma tentativa de unir a presença difusa de Lélia nos debates sobre raça e gênero.

Abdias do Nascimento

Abdias do Nascimento \u00e9 um dos principais nomes no movimento negro brasileiro
Abdias do Nascimento é um dos principais nomes no movimento negro brasileiro

Agência Senado

Abdias do Nascimento é reconhecido como um dos maiores defensores da cultura e da igualdade para a população afrodescendente no Brasil. Foi político, poeta, ativista social, artista plástico, escritor e dramaturgo. Um de seus muitos marcos foi participar da fundação do Teatro Experimental do Negro, em 1944. A iniciativa veio após assistir à peça O Imperador Jones, que aborda a questão racial nos Estados Unidos, com um elenco argentino completamente branco em Lima, no Peru. Os que interpretavam pessoas negras eram pintados com tinta preta, prática conhecida como “black face”.

O projeto foi criado com o objetivo de reabilitar e valorizar a herança cultural, identidade e dignidade humana da população afrodescendente no Brasil e é um dos maiores símbolos da luta antirracista no século XX. Além de contribuir para a formação profissional de atores e diretores negros, oferecia cursos de alfabetização e cultura geral a fim de conscientizá-los em relação à situação da população afrodescendente no país.

Com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), instituído pela ditadura militar em 1968, que proibia, entre outras coisas, a militância negra, Abdias decidiu se exilar nos Estados Unidos. Por lá, teve contato com os Panteras Negras, militou pelo pan-africanismo, que propunha a união entre as nações africanas e as culturas decorrentes da diáspora, deu aula em universidades e passou a se dedicar à carreira de artista plástico.

Voltou ao Brasil em 1981 e, em pouco tempo, criou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), que atua até hoje na recuperação da história e dos valores culturais da população afro-brasileira, além de promover respeito à identidade, integridade e dignidade étnica e humana deles. Foi eleito deputado federal do Rio de Janeiro no ano seguinte, quando se deu a reabertura política, pelo PTB, e seguiu para o senado em 1991 e 1996.

Em 2004, recebeu o Prêmio Toussaint Louverture pelos Extraordinários Serviços Prestados à Luta contra a Discriminação Racial, na sede da Unesco em Paris, em 2004. Morreu em 2011, aos 97 anos.

Ruth de Souza

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Ruth de Souza, a primeira mulher negra a protagonizar uma telenovela

TV Globo/ Divulgação

Primeira mulher negra a protagonizar uma telenovela, Ruth de Souza nasceu no Rio de Janeiro, em 1921. Também foi pioneira como artista brasileira a ser indicada ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional, no Festival de Veneza de 1954 por seu papel em Sinhá Moça. Sua estreia foi no teatro, em 1945, na montagem da peça O Imperador Jones, no Teatro Municipal, do Teatro Experimental do Negro.

Foram quase 40 novelas, 37 filmes e 19 peças de teatro em seus 73 anos de carreira. Por sua marca na história e sua forte atuação nessas áreas ao longo de quase toda a sua vida, é considerada a dama negra do teatro, da televisão e do cinema nacional. No carnaval de 2019, foi homenageada pela escola de samba carioca Acadêmicos de Santa Cruz com o enredo Ruth de Souza – Senhora Liberdade. Abre as Asas Sobre Nós. Faleceu alguns meses depois, em julho, aos 98 anos, em decorrência de uma pneumonia.

Wilson das Neves

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Wilson das Neves, um dos maiores nomes da história da MPB e do samba

Divulgação

Wilson das Neves foi baterista, compositor, cantor e percussionista. Nascido em 1936, no Rio de Janeiro, começou na música aos 18 anos ao ter aulas com o percussionista Edgar Nunes Rocca, o lendário Bituca. Requisitado, ao longo de sua carreira, participou de mais de 800 discos em parceria com grandes nomes da música, como Caetano Veloso, Gal Costa, Elza Soares, Elis Regina, Wilson Simonal, Jorge Ben, Gilberto Gil e Cartola. Não é à toa que é reconhecido como um dos maiores nomes da história da MPB e do samba.

Aos 60 anos, em 1996, ele se lançou como cantor com o álbum O som sagrado de Wilson das Neves. O trabalho foi aclamado e abriu as portas para outros três discos Brasão de Orfeu (2004), Pra gente fazer mais um samba (2010) e Se me chamar, ô sorte (2013), dos quais também foi compositor. Faleceu em 2017, aos 81 anos, em decorrência de um câncer.

Leci Brandão

Uma das mais importantes intérpretes da história do samba, Leci Brandão foi a primeira mulher a participar da ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro, em 1970. Ao longo de sua carreira, lançou 26 álbuns, sendo o mais recente o Simples Assim, de 2016.

Embarcou na política em 2000, quando se filiou ao PCdoB e foi eleita Deputada Estadual pelo Estado de São Paulo com mais de 85 mil votos, sendo a segunda deputada negra da história da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Reeleita em 2014 e 2018, tem uma atuação voltada à promoção da igualdade racial, ao respeito às tradições de matriz africana e à defesa da cultura popular brasileira.

Já foi membro da Comissão dos Direitos Humanos e vice-presidente da Comissão de Educação e Cultura e também atua em defesa das populações indígenas e quilombolas, da juventude e no combate à violência de gênero, à intolerância religiosa e à LGBTQfobia.

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