Já provou vinho de talha? Saiba o que ele tem de tão especial
Fazer vinhos em grandes talhas de barro é uma tradição milenar no Alentejo, sul de Portugal. Resgatada por jovens vinhateiros, a técnica entrou para cartas de casas estreladas pelo mundo.
Durante uma viagem a Nova York, o winemaker português Pedro Ribeiro percebeu uma virada de chave na percepção dos profissionais do vinho. Em vez de tentar vender apenas clássicos de regiões famosonas como Bordeaux, Borgonha ou Toscana, sommeliers de grandes restaurantes apostavam em ofertas pouco óbvias. “Estavam mais interessados em apresentar vinhos obscuros de lugares como Eslovênia ou Geórgia.” À parte a onda de pagar de diferentão, o mundo se abria para outras uvas, outros terroirs, estilos e expressões. Mais diversidade e mais diversão. Pedro ficou com a pulga: que espaço teriam vinhos portugueses, em especial alentejanos, naquela nova trend da capital do mundo? No voo de volta a Portugal, veio a epifania. A resposta estava dada há mais de 2 mil anos: o modo ancestral de fermentar a bebida no Alentejo, sul do país, em lindas e grandes talhas de barro, algumas com capacidade para 2 mil litros: o vinho de talha.
Apesar de seguirem sendo elaborados caseiramente, em ânforas centenárias, os vinhos de talha eram considerados coisa do passado diante das maravilhas da enologia moderna. Era tipo o vinho de garrafão do pedaço, vendido a granel ou bebido diretamente das talhas nas tabernas. “Quando anunciei que engarrafaria e exportaria vinhos de talha, me chamaram de louco”, conta Pedro, enólogo e diretor geral da vinícola Herdade do Rocim.
Lançou os primeiros rótulos de talha em 2012 e, com marketing certeiro, alcançou o hype desejado. A coisa ficou chique. Os vinhos de talha do Rocim hoje estão em cartas de restaurantes estrelados – em algumas casas do chef francês radicado nos Estados Unidos Daniel Boulud, por exemplo. O sucesso levou outros produtores, grandes e pequenos, a voltar várias casinhas no tempo, adotar o método e recuperar o brilho de uvas esquecidas e de nome gozado da região, como as brancas Roupeiro, Perrum e Rabo de Ovelha. “Toda gente no Alentejo sempre teve em casa seu vinho de talha, mas não se dava valor comercial a ele. Mesmo as talhas de barro eram presenteadas. Hoje uma ânfora antiga chega a custar 2 mil euros”, diz o enólogo.
Coleção de talhas da vinícola José de Sousa. Foto: Reprodução Instagram @josemariadafonsecavinhos
O que os vinhos de talha têm de especial
Os vinhos de talha têm grande expressão de fruta, revelam belamente a tipicidade das uvas em seu terroir, carregam a mineralidade obtida pelo contato com o barro e também entregam alguns paradoxos. “São mais selvagens e mais rústicos, porém de grande frescor e elegância”, diz o produtor. Isso quer dizer que, se você é da turma que anda achando chato o sabor dos vinhos amadeirados e pesadões, vai ficar feliz. A bebida não passa por tonéis ou barricas depois de extraída das ânforas, o que coincide com a tendência de consumo de vinhos mais jovens e frescos.
Se você tem paixão por vinhos naturais, a talha também pode ser uma grande descoberta. A filosofia de mínima intervenção, de não maquiar o vinho com aditivos e técnicas industriais, é uma das grandes virtudes do modo ancestral. Em boa parte dos casos, a fermentação acontece com leveduras selvagens, presentes nas próprias frutas e no meio ambiente – e esse é um dos pilares da vinificação natureba. Se, ao método tradicional, unem-se outros conceitos como agricultura orgânica e sustentável, as talhas passam na prova de quem se preocupa com a saúde e com o meio ambiente.
Como é feito o vinho de talha
Os romanos conquistaram Portugal entre os séculos 2 a.C. e 5 d.C. No Alentejo, deram a régua e o compasso para a produção de vinhos, com uma técnica relativamente simples, porém laboriosa, que sofreu poucas alterações ao longo dos séculos. As uvas, brancas ou tintas, são colhidas, desengaçadas, levemente prensadas (até hoje com os pés, em muitos casos) e colocadas em grandes ânforas de barro, com casca e tudo. Permanecem ali por algum tempo e pronto: fez-se o vinho. Essa é a história bem resumida, pois alguns cuidados devem ser tomados para que a bebida se mantenha sadia e não haja acidentes.
Durante o processo de fermentação, que dura de uma a duas semanas, é preciso mexer o mosto ao menos duas vezes por dia com uma espécie de rodo de madeira. As cascas e outras partes sólidas das frutas formam uma massa compacta no topo da talha, chamada de manta, enquanto as leveduras, lá embaixo, continuam comendo o açúcar do mosto, produzindo álcool, dióxido de carbono e pressão. Quem esquece de mexer o vinho (e, às vezes, mesmo tomando essa precaução) produz uma bomba capaz de causar sérios estragos. “A talha do meu avô estourou. Foram cinco dias para limpar a casa”, conta a funcionária de uma vinícola alentejana.
Modas antigas para vinhos “modernos”
Há outras manhas ancestrais. Forrar o fundo da talha com os engaços (cabinhos) das uvas permite que, ao final do período de descanso, com as partes sólidas decantadas, o vinho seja filtrado naturalmente e verta límpido por uma torneira instalada na parte inferior da ânfora. A bebida é retirada e colocada de volta nas talhas até clarificar. Revestir o interior da talha com uma mistura de resina de pinheiro (pez louro) e cera de abelha é outro costume (as damas antigas usavam a mesma mistura para se depilar). Alguns produtores modernos dispensam essa técnica, por não gostarem dos aromas e sabores defumados que a resina passa para o vinho. Cobrir o líquido com azeite de oliva depois da fermentação, para evitar sua oxidação, é mais uma moda antiga, que alguns ainda seguem.
Quando as leveduras morrem e a talha não oferece mais riscos de explosão, o vinho fica maturando ali dentro e tem uma data mínima para ser retirado. O Dia de São Martinho, 11 de novembro, marca a hora de abrir as talhas e tem festa, com música e canto. Há produtores que preferem deixar o mosto descansar por mais tempo nas ânforas, para dar mais corpo ao vinho, e está tudo bem. Caso queira engarrafar antes do São Martinho, a vinícola perde o direito de usar o termo “vinho de talha” no rótulo, de acordo com as regras estabelecidas pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA).
Vinho recém-retirado da talha no dia de São Martinho, na Herdade do Rocim. Foto: Reprodução Instagram @rocim.universe
Vinho branco de talha também é vinho laranja?
Um alentejano tradicionalista pode ficar de cabelos em pé ao ver seu vinho branco de talha comparado a um vinho laranja qualquer. Os laranja, mais corretamente definidos como brancos de maceração (ou curtimenta, como se diz em Portugal), têm contato das cascas com o mosto durante o processo de vinificação. As películas, que ficam no “molho” durante algum ou todo o tempo de elaboração do vinho, garantem cor dourada ou âmbar, mais corpo e taninos aos brancos. Ué, não é exatamente o que acontece com os vinhos de talha do Alentejo?
“Pode-se dizer que fazemos vinhos dentro do estilo laranja, mas os vinhos de talha têm uma tipicidade muito particular. Itália e Geórgia fazem brancos de maceração bastante interessantes, só que os nossos têm características próprias, a começar pelo uso das nossas uvas regionais e passando pelo processo de vinificação tradicional alentejano”, diz Ana Cruz, enóloga da equipe da Herdade do Esporão, defendendo seu pedaço.
Não era beeeem assim que os romanos faziam
Pedro Ribeiro não vê problemas na comparação: “Não há que haver polêmica sobre esse assunto. Vinhos brancos de talha são obrigatoriamente vinhos laranja, porque sofrem contato com as cascas até pelo menos do início da fermentação ao dia 11 de novembro”. Tudo isso para dizer que, se você já se encantou com um vinho laranja em algum momento da vida, tem tudo para gostar dos brancos de talha do Alentejo.
Porém, como o mundo do vinho é sempre mais complicado do que se espera, há vinhateiros que preferem retirar as películas das uvas antes de partir para a fermentação do sumo na talha, processo chamado de bica aberta. A técnica é rara, mas tem defensores de peso, como o enólogo António Maçanita, que faz um branco de talha sem maceração na vinícola Fitapreta. O produtor explica que romanos tiravam as cascas da uvas, sim, antes de vinificar, inclusive as dos tintos. E que, em algum momento da história, alentejanos decidiram mudar o roteiro. Por pura comodidade: se na adega não houvesse um lagar (tanque de pisa das uvas) à disposição, era bem mais fácil tascar as frutas com casca dentro das talhas.
Como escolher seu vinho de talha
Para identificá-los, basta procurar pela expressão “vinho de talha”, quase sempre grafada no rótulo. Só o Alentejo pode usar essa denominação. Mesmo quem produz na região, se não seguir as regras definidas pela comissão, não tem permissão de usar o termo “talha”. É comum encontrar rótulos identificados como “vinhos de ânfora” vindos de distintas partes do mundo e do próprio Alentejo. A Geórgia faz muito e a Espanha também tem seus bojos de barro, chamados de tinajas. Outras regiões portuguesas importaram talhas alentejanas e hoje produzem vinhos de ânfora à “moda romana”.
Curiosidade: não há mais quem fabrique talhas no Alentejo, por já não existirem olarias com fornos suficientemente grandes para cozinhar as gigantes de barro. Também não existe mais a profissão de gateador, o cara que sabia, caprichosa e demoradamente, remendar os vasos – fazer um gato. Hoje, quem quebra uma talha de mais de 100 anos tem bons motivos para chorar. A Herdade do Rocim, no entanto, tem o projeto de construir uma nova fábrica de ânforas e, assim, ajudar a perpetuar a tradição.
O que provar
Brancos
Fitapreta Branco de Talha: elaborado com as uvas Roupeiro e Antão Vaz, é um dos suprassumos da elegância em talha. Sem maceração das cascas, a obra do enólogo António Maçanita traz muito frescor, boa textura e acidez, além de notas terrosas emprestadas do barro. Delicado e perfeito para acompanhar pratos suaves do mar e queijos frescos. Na Evino.
Fitapreta: nobre representante dos vinhos de talha. Foto: Sergio Crusco
Esporão Talha Branco: a Herdade do Esporão usa resina de pinheiro para revestir as talhas, o que traz notas defumadas à bebida. Este Roupeiro de fermentação espontânea é um dos que evoluem bem em garrafa, ganhando notas amendoadas e de petróleo, sem perder a salinidade e a acidez típicas da uva. Tem um par tinto da uva Moreto. Na Wine Trader.
Esporão: resina de pinheiro confere notas defumadas. Foto: reprodução Instagram @esporaoworld
Bojador Vinho de Talha Branco: Tutti-frutti das uvas Perrum, Roupeiro, Rabo de Ovelha e Manteúdo. De lavoura orgânica e fermentação selvagem, traz linda cor âmbar. Na boca é cremoso e fresco, mais intenso do que os brancos ditos “normais”. Recomenda-se a harmonização com tudo o que é do mar, inclusive a moqueca baiana. Na Wine Lovers.
Quinta do Montalvo Ânfora de Baco: Alentenjanos que nos perdoem, mas é preciso falar de vinhos de talha, ou melhor, vinhos de ânfora, de outras regiões, como este branco de Lisboa, elaborado pelo método romano com a uva Fernão Pires. É untuoso, tem acidez solar e delicioso frescor, que vem junto com frutas amarelas e especiarias na boca. Na Belle Cave.
Tintos
Herdade do Rocim Amphora Vinho de Talha: Rocim não usa resina na produção de vinhos de talha e, por isso, eles vêm mais frescos e minerais, também com alguma salinidade e a boa acidez que faz salivar. Uma elegante opção, preparada com Moreto, Tinta Grossa, Trincadeira e Aragonez, uvas fermentadas com leveduras selvagens. Na World Wine.
Rocim: fresco e mineral. Foto: Divulgação
José de Sousa Puro Talha: a Adega José de Sousa tem uma coleção de mais de 100 talhas e mantém viva a tradição local. O Puro Talha é feito com Grand Noir, Trincadeira, Aragonez e Moreto. Robusto, seco e macio, traz um bosque de frutas vermelhas e negras maduras ao nariz e ao paladar. Um belo exemplo de talha do Alentejo. Na Decanter.
Cartuxa Tinto de Talha Biológico – A Adega Cartuxa, uma das gigantes alentejanas, também rendeu-se aos vinhos de talha e apresenta este exemplar de cultura orgânica (que faz par com outro rótulo branco). Feito com as uvas Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira, é macio, de taninos finos e grande elegância na boca. Na Casa da Bebida.
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